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9 - A Batalha de Montes Claros de 17 de Junho de 1665, na Perspetiva de um Engenheiro Militar
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A BATALHA DE MONTES CLAROS DE 17 DE JUNHO DE 1665, NA PERSPETIVA DE UM ENGENHEIRO MILITAR​

 

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José Paulo Berger  



 

Resumo

A Batalha de Montes Claros, travada no Alentejo, em 17 de junho de 1665, contra os espanhóis, no âmbito da Guerra da Restauração, foi entre as batalhas travadas em solo nacional, aquela que mais contribuiu para a preservação e manutenção da soberania e independência nacionais. A vitória indiscutível do exército português comandado pelo marquês de Marialva, em colaboração com o conde de Schönberg, conduziu à ratificação do tratado de Paz de Lisboa, três anos depois, garantindo a independência nacional e a integralidade territorial na Europa.

Sucede com frequência no estudo dos campos de batalha, que a mesma documentação de referência vá sendo utilizada consecutivamente, ao longo de gerações, por vários autores repetindo-se a sua referenciação, sem trazer, normalmente, qualquer novidade.

O estudo aqui desenvolvido pretende, com base na leitura e confrontação das fontes existentes, estudadas e analisadas em conjunto com o resultado de campanhas arqueológicas e de reconhecimentos ao terreiro do campo de batalha, estudo do armamento e da organização militar da época, apresentar uma outra visão daquele relevante acontecimento histórico que foi a Batalha de Montes Claros, aqui descrita na perspetiva de um engenheiro militar.

 

Palavras-chave: Batalha de Montes Claros, Restauração, Vila Viçosa, marquês de Marialva, conde de Schönberg, 

 

Abstract

The Battle of Montes Claros, fought in Alentejo on 17 June 1665 against the Spanish during the War of Restoration, was the battle fought on national soil that contributed most to the preservation and maintenance of national sovereignty and independence. The undisputed victory of the Portuguese army commanded by the Marquis of Marialva, in collaboration with the Count of Schönberg, led to the ratification of the Treaty of Lisbon three years later, guaranteeing national independence and territorial integrity in Europe.

It often happens in the study of battlefields that the same reference documentation is used consecutively, over generations, by various authors, repeating its references, without usually bringing anything new.

The study developed here aims, based on the reading and comparison of existing sources, studied and analysed in conjunction with the results of archaeological campaigns and reconnaissance of the battlefield, and the study of the weaponry and military organisation of the time, to present another view of that relevant historical event that was the Battle of Montes Claros, described here from the perspective of a military engineer.

 

Keywords: Battle of Montes Claros, Restoration, Vila Viçosa, Marquis of Marialva, Count of Schönberg,

 

 

 

Introdução

Analisar, interpretar e descrever uma batalha não é uma tarefa fácil. Existe um conjunto de fatores que devem ser dominados. Primeiro, conhecer os documentos deixados pelos nossos antepassados, compará-los e refletir sobre eles. A par, e tão ou mais importante do que dominar o que foi escrito sobre esta grande batalha, importa conhecer o território e o terreiro onde a batalha se travou. Estar lá, percorrê-lo e sentir o pulsar da batalha em cada vereda, em cada montículo e metro quadrado do espaço é fundamental para tentar perceber onde estava o dispositivo descrito, por onde se aproximaram as forças contendoras, por onde não podiam passar os cavalos e a artilharia, onde estava esta, e em que posições do campo de batalha se travaram os combates entre centenas de homens aguerridos durante aquele dia. Simultaneamente, devemos conhecer a organização militar, as táticas, os armamentos e dispositivos da época em que se combateu. Por fim, compreender um conjunto de referências, padrões e medidas que estão relacionadas com as escalas de distância, de tempo e movimento na época. Todo este conhecimento prévio é necessário para que a análise possa ser feita, a interpretação seja aprofundada e, naturalmente, para que a descrição, agora sob uma nova perspetiva, possa ser partilhada e discutida. 

Serve este parágrafo introdutório para referir que algumas das conclusões que serão apresentadas, naturalmente, poderão ser diferentes de muitas outras já debatidas sobre esta importante batalha da História de Portugal. 

Para melhor compreensão, relativamente à época da Batalha de Montes Claros e à organização e atuação das forças envolvidas nos combates, foram tidos em conta os seguintes parâmetros considerados nas corografias e compêndios militares e matemáticos da altura: 

- Distâncias, escalas e duração do dia e clima:

- Pé geométrico (33 cm); passo geométrico são 5 pés geométricos (1,65 m);

- Palmo (22 cm); vara, 5 palmos (110 cm); braça são 2 varas (220cm);

- A légua variava entre 5.555 e 6.173 metros;

- A distância a que se ouvia um tiro de pistola correspondia a 400 metros; a distância a que se ouvia um tiro de canhão correspondia a 2.400 metros;

- Distância de Estremoz ao campo de batalha de Montes Claros: 14 quilómetros;

- Distância de Vila Viçosa ao campo de batalha de Montes Claros: 7 quilómetros;

- O raiar da aurora às 4H15m; a noite fechada às 23H; duração do dia cerca de 18H45m;

- Vento Sueste de manhã; do Noroeste pela tarde;

- Organização da infantaria:

- A infantaria portuguesa estava organizada em terços/esquadrões (ou batalhas de várias companhias, manípulos, fileiras ou filas) com aproximadamente 550 homens;

- A inglesa organizada em regimentos com 500 homens;

- A francesa organizava-se em regimentos com 400 homens;

- A espanhola e a suíça em tércios, com pelo menos 1.200 homens;

- Distâncias e velocidade para a infantaria:

- Em marchas, 3 pés geométricos, de ombro a ombro, e 7, de peito a costas;

- Em evolução tática, 3 pés geométricos, de ombro a ombro, e 5, de peito a costas;

- Em combate contra infantaria, 3 pés geométricos, de ombro a ombro, e 3, de peito a costas;

- Em combate com cavalaria, 3 pés geométricos, de ombro a ombro, e 3, de peito a costas;

- Velocidade da infantaria, 70 a 100 passos por minuto (4,2 a 6 quilómetros por hora);

- Frente e claro do terço/esquadrão: 100 passos; profundidade: 30 passos

- Distâncias entre linhas: 300 passos;

- Organização da cavalaria:

- A cavalaria portuguesa estava organizada em troços, de 6 batalhões, com 60 cavalos cada;

- A inglesa organizada em regimentos, a 2 batalhões, com 150 cavalos;

- A francesa organizada em regimentos, a 2 batalhões, com 60 cavalos;

- A espanhola, com unidades de cerca de 330 cavalos;

- Frente e claro do batalhão: 20 cavalos (40 passos); profundidade: 3 cavalos (20 passos);

- Velocidade da cavalaria: acompanhava a infantaria (4,2 a 6 quilómetros por hora);

- Distâncias para a cavalaria:

- Em marchas, 6 pés geométricos, de flanco a flanco, e 10, de cabeça a costas;

- Em evolução tática, 6 pés geométricos, de flanco a flanco, e 10, de cabeça a costas;

- Em combate, 6 pés geométricos, de flanco a flanco, e 12, de cabeça a costas;

- Distâncias e alcances para a artilharia:

- Em marchas, artilharia ligeira, 4 a 5 muares;

- Em marchas, artilharia pesada, 8 a 10 muares;

- Velocidade da artilharia, a ligeira acompanhava a infantaria; a pesada 2,1 a 3 quilómetros por hora;

- Alcance: bastante; mais do que 1 quilómetro, mas pouca direção.​


A batalha de Montes Claros, a 17 de junho de 1665

Estes considerandos, foram necessários para verificar que no dispositivo do movimento iniciado no terreiro de Santo António, nos arrabaldes a sudeste da vila de Estremoz, dispositivo esse preparado por Schönberg, chefe de estado-maior do exército de Portugal, para a marcha de costado, como tal com a organização do dispositivo já orientado para o combate. Pela seguinte ordem, o dispositivo do exército estava assim encadeado: uma guarda avançada de cavalaria, comando e estado-maior, grosso da cavalaria, auxiliares para a execução dos trabalhos de contra mobilidade, artilharia ligeira, grosso da infantaria, artilharia pesada, trem de apoio, vedorias e carriagem e bagagens. 

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Figuras 1 e 2 – Dispositivos dos exércitos português durante a marcha de costado e entrada em posição de combate que antecedeu a Batalha de Montes Claros, e do exército espanhol na sua tentativa vã de realizar atacar de surpresa.

 

Pelos parâmetros de medidas, atrás referidos, para os quantitativos mobilizados, só a coluna de marcha da infantaria teria uma extensão de 12 quilómetros. A da cavalaria mais 15 quilómetros. O tempo de escoamento de todas estas forças não corresponderia a menos de 7 horas e só porque à sua frente se deslocavam cerca de 500 infantes de todos os Terços de Auxiliares, sob o comando de António de Saldanha, mestre de campo dos Auxiliares da Comarca de Tomar, que levavam ferramentas para abaterem os valados e facilitarem a passagem pelos locais mais difíceis. Tais constatações permitem considerar, como já tinha sido levantado por relatos coevos dos defensores de Vila Viçosa, que parte das forças portuguesas tiveram que iniciar o seu movimento a 16 de junho, devendo o grosso do exército ter acampado, de 16 para 17 de Junho, já muito perto do local onde se realizou a batalha, com muita probabilidade, na região de Monte da Talisca – Monte da Senhora da Victória, atrás da Ribeira da Salgada, entre os lugares de Rio de Moinhos e do  Barro Branco, onde mais tarde o marquês de Marialva mandou construir o padrão e posteriormente a ermida dedicada à invocação de Nossa Senhora da Vitória.

Vamos agora ao relato dos acontecimentos. 

A Espanha, já completamente desligada das guerras de Flandres, Catalunha e Itália resolveu tentar um último esforço para reconquistar o nosso país, entregando o comando supremo das suas forças a Don Luis de Benavides y Carrillo, marquês de Caracena. Pretendia o Estado espanhol atacar os portugueses simultaneamente por terra e por mar, repetindo, porventura, o feito do duque de Alba, transportado pela armada do Marquês de Santa Cruz. Foram fornecidos a Caracena todos os meios necessários preparando-se em Cádis a concentração de uma forte armada (30 navios e 20 galés de guerra).

Em Portugal, o conde de Castelo Melhor, infatigável no seu zelo, conhecedor dos preparativos dos espanhóis, tratou também de organizar a defesa nacional, desenvolvendo múltiplas atividades nesse sentido, com extraordinária energia e tato. Teve o grande mérito de reconciliar os generais do Alentejo. Conseguiu a colaboração entre Marialva, Schönberg e D. Luiz de Menezes; retirou Gil Vaz Lobo de Elvas para governar Setúbal, fortificada por Luís Serrão Pimentel; nomeou Schönberg mestre-de-campo-general do Alentejo; guarneceu também e fortificou eficazmente Lisboa e outros pontos da costa portuguesa; contratou novas tropas estrangeiras (militares franceses e ingleses experientes). Procedeu ao reajustamento de efetivos, reforçando as guarnições do Alentejo à custa especialmente das unidades militares da Estremadura e do Algarve.

Em finais de abril o marquês de Marialva voltava ao governo do Alentejo. Em maio concentraram-se em Estremoz (praça que continuava a ser a base de operações nas planuras do Alentejo) cerca de 20.500 homens (15.000 infantes e 5.500 cavaleiros) apoiados por 20 bocas de fogo de artilharia de vários calibres.

No outro teatro de operações ativo, o do Minho, o exército do conde do Prado compunha-se de 12.000 infantes e 2.500 cavalos com 14 peças de artilharia. Em Trás-os-Montes, as forças do conde de S. João, e na Beira, as de Pedro Jaques de Magalhães, mantinham-se na expectativa, prontas para intervirem de imediato em apoio de qualquer um dos exércitos de cada uma dessas províncias quando ameaçadas. Quis o destino e a vontade dos espanhóis que fosse o Alentejo novamente o palco da campanha de 1665. 

Iniciou, então, o marquês de Caracena as suas operações partindo de Badajoz, a 22 de maio, com um exército de 23.000 homens. Contudo, porém, interrompeu a marcha no primeiro estacionamento, já próximo do rio Caia, fronteira entre Elvas e Badajoz. Após 15 dias de demora – talvez devida à necessidade de completar os mal fornecidos trens de víveres e forragens – prossegue, contornando Elvas, por norte, para, de seguida, voltar para sul, frente a Vila Viçosa. Aqueles 15 dias de intervalo de tempo na lentidão da incursão em território nacional, confirmando a linha de invasão pelo Alentejo, chegaram para trazer e concentrar nesta província as forças de Trás-os-Montes, da Beira, da Estremadura e do Algarve, que se juntaram ao exército de Marialva e de Schönberg, estacionado em Estremoz.

Muito se tem especulado sobre esta modificação de planos por parte de Caracena, por se ter desviado do caminho direto para Lisboa, indo sitiar uma praça-forte secundária, lateral e de pequeno relevo militar. Mas, a fixação de Vila Viçosa como primeiro objetivo parcial, intercalado na marcha sobre Lisboa, que era o objetivo último da campanha, tem a justificá-la razões táticas de certo peso relativas à segurança das linhas de comunicações e reabastecimento. Caracena não poderia, no seguimento da invasão, conservar, como linha permanente de comunicações, o traçado até ali seguido no seu itinerário, que contornara Elvas, ao norte, pela herdade da Torre dos Siqueiras, cerca de São Vicente e a sul de Santa Eulália. A ameaça constante de eventuais sortidas de Elvas e Campo Maior constituiria, de facto, embaraço grande para a circulação dos comboios de reabastecimento vindos pelo referido itinerário partindo das regiões de Badajoz e de Olivença, base principal das operações do exército espanhol. Seria também um manifesto perigo para as colunas de marcha das tropas invasoras, quando internadas no Alentejo, na sua ulterior progressão sobre Setúbal.

Tendo já, há algum tempo, as praças portuguesas de Juromenha e Olivença em seu poder (a primeira atuando como testa de ponte sobre o Guadiana e a segunda como base de operações à retaguarda) era lógico que o comandante espanhol empreendesse o sítio de Vila Viçosa, situada sobre o prolongamento da linha de invasão Olivença – Juromenha – Redondo – Évora – Montemor – Setúbal, que a dominava entre Évora e o Redondo, tentando assim abrir uma nova linha de etapas ou de comunicações alternativa com a Extremadura espanhola, fora do alcance de possíveis incursões lançadas a partir de Elvas.

O exército espanhol seguindo o itinerário Torre dos Siqueiras (São Vivente) – Fonte dos Sapateiros (Vila Fernando) – Venda de Orada (Alcraviça) com a sua guarda avançada atingiu Borba, a 9 de junho, e, no dia seguinte, aproximou-se de Vila Viçosa preparando-se para realizar o seu assédio e tomada. 

Alertado por este avanço, no dia 11, em Estremoz, o marquês de Marialva reuniu o seu conselho de guerra, formado pelos principais generais portugueses, tendo sido discutida a situação sob o ponto de vista estratégico. Decidem-se por tomar a ofensiva sobre o inimigo, atacando-o enquanto ele se encontrava parado e comprometido com o sítio de Vila Viçosa. Marialva estava consciente de que do ataque iria resultar uma inevitável batalha campal, de cujo resultado iria depender o destino final do País. Sem a suficiente competência delegada, para, numa só cartada, jogar o futuro da Pátria, aconselhado pelo conselho decidiu pedir imediatamente a expressa autorização régia, por intermédio do primeiro-ministro, o conde de Castelo Melhor. Quatro dias depois, por certo, ainda pela tarde ou na noite de 15 para 16 de junho, veio a ser recebida, no quartel-general de Estremoz, a resposta afirmativa de Lisboa concordando com a atuação planeada. 

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Figuras 3 e 4 – Dispositivo dos exércitos no início da Batalha de Montes Claros e durante o primeiro ataque espanhol.

 

Estavam obtidas as devidas autorizações que iriam lançar o exército nacional para um dos mais difíceis confrontos decisivos para o destino do país. Tomada a decisão, a 15 de junho já fora realizado o reconhecimento do itinerário Estremoz – Vila Viçosa e, a 16, passava-se a revista às tropas que antecedeu o início da marcha para o contacto.

Eram vinte e dois quilómetros de distância os que separavam o acampamento português, no terreiro de Santo António, arrabalde sudeste da vila de Estremoz, do estacionamento espanhol, em torno e contíguo a Vila Viçosa. Seriam cerca de seis a oito horas de marcha normal, tendo em atenção o ritmo de acompanhamento da artilharia pesada. 

Com os reforços chegados das outras províncias, naquele momento, o comandante do Exército do Alentejo dispunha de cerca de 22.000 combatentes, 16.500 infantes e 5.500 cavaleiros e as 20 peças de artilharia de vários calibres.

Através dos vários reconhecimentos realizados durante os dias antecedentes, o quartel-general português era conhecedor da posição de uma frente inimiga, estabelecida a cavaleiro da estrada direta de Estremoz a Vila Viçosa, reforçada com fortificação de campanha, entretanto erguida, e que cortava a meio o caminho de Borba a Vila Viçosa. Esta posição defensiva constituía-se como um obstáculo efetivo de envergadura para um possível ataque português, intentado pela referida direção. Mas, para Vila Viçosa existia um outro itinerário paralelo aquele, mais a sul, que ainda não havia sido fortificado pelos espanhóis.

Absolutamente consciente da situação, conhecedor da negligência do adversário, Marialva decide seguir por esse outro caminho, mais a sul, porque aparentemente estava desguarnecido de tropas. Seria-lhe possível, assim, tornear o flanco esquerdo da posição preparada pelo exército sitiante de Vila Viçosa, que se encontrava apoiada na linha de alturas Borba – Estremoz. Posteriormente poderia desenvolver o seu exército, com frente a nordeste, para depois tomar, como eixo de ataque, a direção norte coincidente com a linha Redondo – Vila Viçosa, que passava pela quinta dos Mascarenhas (fundada por Fernão Martins Mascarenhas, em 1614, e génese da atual povoação de Bencatel).

Contudo, o anterior movimento dos reconhecimentos, do seu serviço de recolha de informações, parece que acabou por alertar Caracena que se preveniu contra o projeto português. E, assim, por uma manobra de quase contraofensiva deliberada, pensou surpreender o exército português em flagrante em pleno deslocamento. Com o objetivo de desbaratá-lo na marcha que levava, planeou a ação do seu exército através de um ataque simultâneo e evolvente, com as forças previamente desenvolvidas em linha de batalha, que atuariam sobre a testa da coluna de marcha portuguesa no momento em que esta saindo do apertado vale por onde se deslocava desembocaria na vasta planura a norte da serra da Ossa, terreno chão, orlado de montes brancos (os depósitos geológicos dos mármores famosos da região por causa dos quais se atribuía o nome de Montes Claros àquela planície). Tal manobra, contava ele, seria essencialmente favorável à valorização da superioridade numérica da cavalaria espanhola. Em conformidade, dispôs que se adiantasse a cavalaria pela esquerda para atacar a frente inimiga, enquanto a infantaria se dirigiria pela direita, escondida por algumas pequenas elevações, para deter de flanco o seu avanço, apoiar o ataque e completar a derrota dos portugueses.

Cerca das 5 horas da manhã, despertadas as tropas portuguesas e retomada a marcha pelo caminho Estremoz – Alandroal, saindo do acampamento estabelecido próximo do lugar de Barro Branco em direção à quinta dos Mascarenhas, a guarda avançada atingiu, por volta das 9 horas da manhã, o Convento da Luz, situado a meio percurso sobre esta estrada, mas já na planície de Montes Claros. A lentidão do avanço das unidades devia-se à marcha de costado (ou de flanco), densa e perigosa formação preparatória de combate, executada dessa forma e organizada por Schönberg por motivo da previsível proximidade ao inimigo.

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Figura 5 e 6 – Dispositivo dos exércitos na Batalha de Montes Claros durante o segundo ataque espanhol e no início do contra-ataque português que constituiu a terceira e definitiva fase da batalha.

 

Não se tendo ouvindo, na noite antecedente, de 16 para 17 de junho, o tiro das batarias de defesa de Vila Viçosa, ordenara o chefe do estado-maior, o conde de Schönberg, que  madrugada do dia seguinte (17 de junho), fosse enviado à frente da coluna um forte destacamento de exploração constituído por 6 batalhões de cavalaria (cerca de 360 cavaleiros), a fim de detetar e vigiar os movimentos do exército espanhol, prevenindo assim a coluna de marcha portuguesa de eventuais surpresas perigosas que se pudessem registar antes do desenvolvimento para batalha. Porém, uma má compreensão da ordem por parte do comandante da cavalaria, Dinis de Melo e Castro, primeiro conde das Galveias, origina falha na execução desta medida tão criteriosa e exigente para a garantia da segurança próxima de toda a coluna. E, assim, quando o chefe do estado-maior, marchando na vanguarda do exército português, alcançou, cerca das 9 horas da manhã de 17 de junho, as imediações do terreno chão do Convento da Luz, reconheceu, após breve confusão, que as forças de cavalaria, visíveis a cerca de 1,5 a 2 quilómetros de distância, entre as alturas do Monte da Vigaria, para o lado de Vila Viçosa, pertenciam ao exército inimigo. Pouco tempo depois, evidenciando estar próximo um ataque, surgiram por trás deste, massas volumosas da cavalaria espanhola, que começaram a desembocar a sul na planície de Montes Claros.

Perante a iminência do perigo, esforçaram-se os generais e mestres de campo portugueses, sobretudo o conde de Schönberg, por efetuar, rápida e atempadamente, o desdobramento da primitiva coluna de marcha de costado em colunas parciais, para que, no final do desenvolvimento, ficassem em formação de combate segundo o dispositivo clássico utilizado pelos portugueses – infantaria escalonada em duas linhas, ao centro, e cavalaria nas alas. Porém, no flanco direito, frente à ameaça da cavalaria espanhola, fez-se concentrar a maior parte da cavalaria; ao centro, com a vasta planície em frente, postaram-se na primeira linha alguns batalhões de cavalaria e vários terços de infantaria; na ala esquerda, que se estendia por um terreno de vinhedos, quase impraticável às manobras da cavalaria, outros terços de infantaria ficaram cobrindo o acesso a uma pequena colina (Monte do Mouro) onde a maior parte da nossa artilharia pesada tomara posições. Nos intervalos da vanguarda posicionaram-se algumas peças de artilharia ligeira; em que duas delas, guardadas por 100 mosqueteiros, tomaram posição no viso de um pequeno outeiro com um casal à direita da linha de batalha protegendo aquele flanco. Assim disposto, à medida que se ia posicionando, o exército de Marialva contabilizou 15.000 infantes, 5.000 cavaleiros e 20 peças de artilharia.

Entretanto, à frente, Caracena fora posicionando também o seu exército de quase 23.000 homens. Concentrou no flanco esquerdo as grandes massas de cavalaria estrangeira que deviam carregar o centro português e separá-lo do flanco direito. A artilharia distribuiu-a nos lados e no cume de algumas alturas que dominavam a planície. No seu flanco direito, a infantaria, também em massa, devia atacar a esquerda portuguesa, cuja cavalaria, mal podendo manobrar por entre os vinhedos, seria forçada a deixar à infantaria espanhola a vantagem da superioridade numérica.

O plano de Caracena era hábil e simples, pois, valendo-se da costumada separação da cavalaria portuguesa pelas duas alas (e que lhe dividia a força), contava esmagar-lhe o centro e o flanco direito, antes que a cavalaria portuguesa da esquerda, imobilizada e portanto sem anulada, tivesse tempo de acudir à direita da linha de batalha.

Schönberg, porém, logo que se apercebeu do intento do general espanhol, fez deslocar a cavalaria do flanco esquerdo (que tinha a sua ação impedida pelas vinhas) para o flanco direito. A maior parte desses batalhões vieram reforçar a cavalaria portuguesa na direita, tendo sido destacados para junto das duas peças de artilharia no outeiro. E foi a rapidez dessa oportuna manobra, em que as unidades portuguesas estavam já bem treinadas, o fator decisivo que veio a garantir, desde o início a possibilidade de uma vitória para o lado português.

À distância de tiro a artilharia iniciou o combate que se desenrolou imediatamente. Ato contínuo os troços da cavalaria espanhola de Farnesio carregaram com grande ímpeto sobre a direita portuguesa, conseguindo empurrar a primeira linha de cavalaria sobre a infantaria do centro, de tal forma que os terços do Alentejo comandados por Tristão da Cunha, Francisco de Moura e Furtado de Mendonça, com parte da cavalaria da ala direita ficaram logo desbaratados. Contudo, a carga foi detida face à firmeza dos piqueiros portugueses que a contrariaram, apoiados pela metralha do fogo terrível da artilharia, situada a menos de 50 passos, permitindo que a eles acudisse a cavalaria da segunda linha e que se restabelecesse a linha de combate, fazendo recuar a cavalaria espanhola.

Ao mesmo tempo, na ala esquerda portuguesa, os tercios espanhóis continuavam a pressionar a infantaria de António de Saldanha (fazendo também parte dos terços do Alentejo), rechaçavam dois regimentos franceses e um inglês e ameaçavam chegar à segunda linha. 

Schönberg, porém, infatigável, depois de ter conseguido levar a cavalaria da esquerda ao flanco direito equilibrando a linha de combate, junta aí todos os terços disponíveis voltando com eles ao flanco esquerdo, com a intenção de suster ali todo o avanço da infantaria inimiga, ou pelo menos que o esforço servisse para o tentar demorar. Simultaneamente, por seu turno, ininterruptamente, as peças de artilharia da vanguarda portuguesa metralhavam quase à queima-roupa a cavalaria espanhola que carregara o centro e a direita portuguesa, sustendo-lhe a cavalgada e anulando-lhe essa primeira vantagem. 

Reconstituídas rapidamente, tanto a cavalaria espanhola como as tropas portuguesas da ala direita, os cavaleiros de Farnesio e do conde Rebat efetuaram uma segunda carga sobre o centro e a direita portugueses, rompendo-lhes de novo a primeira linha da infantaria, desbaratando a cavalaria e chegando no seu ímpeto ao contacto com os terços de auxiliares da segunda linha, que foram empurrados até à terceira linha de reserva. Mas esta manteve-se firme, e deslocando-se Schönberg com alguns desses terços da reserva e da esquerda até à ala que tão em perigo se encontrava, a ponto de estar quase partida por completo, mudou a fisionomia ao combate, porque, então, os espanhóis já fatigados tinham começado a abrandar aquele ímpeto.

Em vão Caracena envia ordens a Correa para que, com parte da cavalaria da direita os socorra ou pratique um movimento envolvente sobre a esquerda dos portugueses, que permitisse alguma folga para se recomporem aqueles que tinham sustido todo o peso do combate no extremo oposto.

Foi a fase culminante crítica da batalha. Comandavam na primeira linha o próprio marquês de Marialva, general em chefe, o general da artilharia D. Luiz de Menezes, o de cavalaria Dinis de Melo e Castro e outros oficiais superiores. Schönberg, depois de ter restabelecido o equilíbrio da esquerda, acorrera ao centro da segunda linha. Toda a artilharia da retaguarda rompeu também fogo. Entretanto, no flanco direito português a segunda linha de infantaria ia sustentando, desesperadamente, todo o peso da refrega. Marialva, apreensivo e receando que o flanco esquerdo não pudesse aguentar a pressão da infantaria espanhola e se rompesse também acabando por comprometer a brilhante defesa da segunda linha, no centro-direita, desguarneceu essa ala, por estar a ser a menos solicitada desde o começo da ação, e acorreu à esquerda com alguns terços quase frescos, restabelecendo o combate a seu favor.

A cavalaria espanhola carregou de novo, mas não pode penetrar as compactas filas de piqueiros da infantaria portuguesa, que se mantiveram corajosamente firmes até que a cavalaria portuguesa, vitoriosa na ala oposta, se apresentou por aquele lado, decaindo então o ânimo da cavalaria espanhola que abandonou o campo de batalha em desordem. Fatigada pelas suas duas anteriores infrutíferas cargas, simulou uma retirada para contra-atacar uma terceira vez. Mas o tenente-general D. João da Silva de Sousa, no centro da segunda linha de infantaria, ainda sem ter entrado em ação com o terço de Lisboa, o de Trás-os-Montes e o resto dos terços do Alentejo, e com os batalhões e companhias de cavalaria do Alentejo em expectativa na ala direita da sua posição, conseguiu observar o andamento dos movimentos da cavalaria espanhola e avisar atempadamente o general da cavalaria Melo e Castro. Aproveitando a oportunidade, este general português lançou toda a sua cavalaria em perseguição da inimiga que, apanhada assim de surpresa, atacada pela retaguarda, nada preparada para aquela reviravolta, debandou completamente, seguindo o leito da ribeira de Lucefece em direção ao Alandroal, retirando por ali para Espanha, passando o Tejo em Juromenha. O combate degenerou numa matança horrível, pois a cavalaria portuguesa atropelou sem piedade regimentos inteiros, tendo os vencidos que procurar a sua salvação fugindo para os montes que se avistavam apenas a partir do mosteiro de Nossa Senhora da Luz.

Fora o golpe decisivo.

Marialva, logo que se apercebeu do descalabro da cavalaria espanhola envolveu fortemente a infantaria adversária, que estava ainda empenhada na refrega com a vanguarda portuguesa, à esquerda, e com a segunda linha portuguesa ao centro a segunda linha portuguesa, ao centro. Vendo-se cortada a meio e dividida, a infantaria espanhola, num terror pânico, desordenou-se também. Centenas de prisioneiros caíram em poder dos portugueses. Quatro tercios espanhóis tentaram ainda retirar em boa ordem sobre a Serra da Vigaria mas, rodeados pelas tropas portuguesas, depuseram as armas. Do alto daquela serra, Caracena vendo a batalha perdida retirou também com todo o seu estado-maior, para Vila Viçosa. 

A batalha durara cerca de 7 horas desde o início das manobras preparatórias para o posicionamento inicial dos exércitos até à decisão final, em que as forças espanholas foram completamente vencidas e apanhadas em debandada geral.

Entretanto, em Vila Viçosa, uma sortida feliz dos sitiados destroçava o corpo de cerca de 1.800 arcabuzeiros que tinham ficado de guarda aos acampamentos e tomaram toda a artilharia de sítio utilizada pelo exército espanhol.

Esta derrota dos espanhóis, em 17 de junho de 1665, foi geral em todas as frentes e anulava logo, desde o começo da invasão, a tão desejada vontade espanhola de alcançar e ocupar Lisboa ainda esse ano.

As consequências desta magnífica vitória teriam sido decisivas se a política de Lisboa, com a intenção de invadir a Galiza, não a tivesse negligenciado por não explorar o seu sucesso. De facto, em julho, Schönberg prosseguira na ofensiva, entrando com o exército português em Espanha e destroçando vários corpos de cavalaria. Mas, em setembro, Castelo Melhor ordenar-lhe-ia que passasse ao Minho com cinco regimentos estrangeiros, enquanto os generais de Trás-os-Montes, Estremadura e Beira e o conde de Miranda, governador do Porto, organizavam terços e destacavam contingentes para se constituir no Minho o exército que iria operar na Galiza.

Em resumo, nesta batalha de Montes Claros o exército português, de força aproximada à do exército espanhol, inicialmente foi rompido duas vezes nas suas primeiras linhas, mas as reservas compensaram, em ambos os casos, a situação. Schönberg desenvolveu uma atividade excecional para a inversão do cariz da batalha. Pela ação da cavalaria portuguesa a retirada da cavalaria espanhola transformou-se em fuga e o marquês de Marialva desenvolveu um movimento envolvente em que empregou toda a sua infantaria contra a infantaria castelhana, quando esta já passara à defensiva. 

O número dos mortos e feridos ultrapassou mais de 4.000. Foram feitos aos espanhóis cerca de 6.000 prisioneiros. Mais de 3.500 cavalos e toda a artilharia de sítio, bandeiras, armas, bagagem, víveres e muitos outros objetos foram abandonados no terreiro do campo de batalha e tomados pelos portugueses. 

O exército português teve cerca de 2.700 baixas.

 

Ordem de Batalha das Forças Portuguesas 

Infantaria:

1.ª linha, ala direita (com a Cavalaria): o Terço da Armada e o Terço de Cascais;

1.ª linha, ao centro: 6 Terços do Alentejo, o Terço do Algarve, 1 Terço da Beira, 1 Terço de Trás-os-Montes, 2 corpos dos regimentos de franceses e 1 regimento de ingleses;

1.ª linha, ala esquerda (com a Cavalaria): 1 Terço de Trás-os-Montes e 1 regimento inglês;

2.ª linha: o Terço de Lisboa, 3 Terços do Alentejo, 1 Terço de Trás-os-Montes, 2 Terços da Beira, 1 Terço de franceses e 3 corpos do regimento de alemães e italianos;

3.ª Linha ou Reserva da Infantaria: o Terço Auxiliar de Avis, o Terço de Valença, 1 Terço de Trás-os-Montes e o Terço de Auxiliares de Évora;.

Cavalaria:

1.ª linha, ala direita: 4 Troços da Cavalaria do Alentejo e 2 Troços da Cavalaria de Lisboa;

1.ª linha, ala esquerda: 3 regimentos de cavalaria francesa, 1 regimento de cavalaria inglesa e 1 Troço de Cavalaria de Trás-os-Montes;

2.ª linha, ala direita: 2 Troços da Cavalaria do Alentejo e as Companhias do Quartel de Moura;

2.ª linha, ala esquerda: 1 regimento de cavalaria francês e 1 Troço de Cavalaria da Beira;

3.ª Linha/Reserva da Cavalaria (nos flancos da Infantaria): 1 Troço de Cavalaria do Alentejo.

Artilharia:

Bocas de fogo: 15 peças de 4, 6 e 7 arráteis, 3 peças de 12 arráteis e 2 peças de 24 arráteis.

Fig7.jpg​Figura 7 – Ordem de batalha do dispositivo do exército português antes do início da batalha de montes claros


A batalha de Montes Claros na perspetiva de um engenheiro militar

A Batalha de Montes Claros, que foi dura, sangrenta e demorada, iniciou-se com um duelo de artilharia, seguido de três fases. Na primeira, os espanhóis atacaram de surpresa, investindo com a cavalaria o flanco direito português que resistiu reforçado pela cavalaria deslocada do flanco esquerdo para o direito. Na segunda a nova carga da cavalaria castelhana, bombardeada pela artilharia e sustida pela infantaria portuguesa, foi incapaz de penetrar o dispositivo, sendo obrigada a retroceder. A terceira, culminou com o rompimento do contacto da cavalaria espanholo que é perseguida e com envolvimentos da infantaria portuguesa aos tercios castelhanos que, impotentes, também romperam o contacto e se renderam. 

Como já tinha sido praticado na batalha do Ameixial (em 8 de junho de 1663), a de Montes Claros voltou a apresentar dois modelos militares diferentes. O modelo espanhol, com as armas combatentes individualizadas, isto é, a cavalaria concentrada num flanco e a infantaria posicionada ao centro e alongada para o flanco oposto. E o modelo francês, materializado pelos portugueses, que apresentava ao longo de todo o dispositivo a combinação das três armas (infantaria, cavalaria e artilharia), de modo a permitir a ação de conjunto, ressaltando ainda a preocupação em dispor de uma reserva que, no momento oportuno, pudesse contribuir para decidir a contenda. Estes modelos diferenciaram-se na prática no seguinte, quanto:

- à organização: tercios de Espanha versus esquadrões/batalhões de Portugal e aliados; 

- ao choque: da cavalaria espanhola contra o fogo da artilharia e infantaria, nos claros; 

- à manobra: posição estática dos quadrados dos tercios contra a manobra no campo de batalha de esquadrões e batalhões mais versáteis.

Neste contexto, parte da vitória portuguesa explica-se pelo contrariar e resistir a um conjunto de ações operacionais e táticas em desuso praticadas pelos espanhóis: o quadrado emassado e rígido dos tercios e a ação desgarrada e frontal da cavalaria, que não procurou nunca tirar partido do envolvimento do dispositivo português, por não estar habituada a efetuá-lo. 

Mas parte dessa vitória também encontra explicações nas condutas operacional e tática desenvolvidas pelas forças portuguesas e suas aliadas, vejamos então: 

- o desenvolvimento dos princípios da iniciativa e da manobra, executando com uma marcha de costado para o contacto a partir de Estremoz, o movimento que obrigou a agir o marquês de Caracena; 

- a possibilidade de chegar primeiro ao terreiro do campo de batalha mantendo a flexibilidade do dispositivo adotado, que permitiu operacionalizar, de forma coordenada, a atuação da artilharia, que levou o combate à distância; 

- a infantaria, que resistiu heroicamente, mantendo a posição; 

- a cavalaria, que voltava aos combates na planura, à medida que os piqueiros portugueses sustinham as cargas contrárias; 

- a liderança, sendo notável, para os padrões da época, a convergência de esforços entre o comandante em chefe, o marquês de Marialva, e o comandante do contingente estrangeiro, Schönberg, especialmente este que acompanhou as contingências da batalha, e movimentou taticamente as forças de modo a deter o ímpeto do ataque espanhol e passar ao ataque logo que possível. 

Mas para que o exército português pudesse atuar como atuou, existiram muitas outras causas que contribuíram para a memorável vitória em Montes Claros, e que, na perspetiva de um engenheiro militar, à laia de conclusão, vão aqui ser expostas:

 - a projeção internacional que Portugal ganhara ao não deixar-se subjugar pela Espanha e a luta para conseguir recuperar a maioria dos territórios ultramarinos perdidos durante os 60 anos da dinastia Filipina;

- a estabilidade governativa, conseguida por Luís de Vasconcelos e Sousa, 3.º conde de Castelo Melhor, que em nome do Rei D. Afonso VI, concentrara nas suas mãos o poder sobre a máquina da administração pública mantendo a tendência centralizadora que a Restauração impunha;

- o extremo cuidado com a organização e sustentação dos exércitos dos vários teatros de operações e a escolha de comandantes credenciados e capazes que atuassem em sintonia perfeita na preparação das operações e no campo de batalha;

- a recolha de informação além-fronteiras, que se revelava fundamental às decisões relativas às campanhas, permitindo enviar ao Alentejo os exércitos da Beira e de Trás-os-Montes, mantendo apenas no Norte o do Minho;

- a disponibilização das forças de Setúbal e de Lisboa, para reforço ao exército do Alentejo, concentrado em Estremoz, permitida pelo atraso de uma ameaça marítima a Lisboa, 

- a decisão imediata de recuperar Vila Viçosa, mesmo que a operação provocasse uma batalha de grandes dimensões;

- a superioridade obtida pela utilização de novas táticas de combate e o inerente reforço moral conseguido com as vitórias nas batalhas do Ameixial e Castelo Rodrigo;

- a utilização de militares e forças estrangeiros, mesmo sendo de devoção protestante, mas reconhecidos pelos seus méritos em campanha. no treino e organização de forças militares;

- a escolha acertada da praça-forte de Estremoz para base das operações no Alentejo;

- a reparação das fortificações das praças alentejanas e o seu reforço com terços de combatentes vindos de outras comarcas, como foi o caso de Vila Viçosa;

- a eliminação de locais de fornecimento de águas, negando-as ao exército invasor, cujos homens e animais foram sofrendo as agruras do estio alentejano;

- a dificuldade que Caracena teve em formar o exército espanhol e o tempo gasto nessa diligência, que permitiu a vinda para o Alentejo de terços e terços de auxiliares portugueses de Trás-os-Montes, da Beira, de Lisboa, da Estremadura e do Algarve, e de cuja movimentação o comandante espanhol não ficara plenamente consciente;

- a não concretização da invasão marítima de Lisboa que poderia ter servido como diversão à invasão do Alentejo;

- a fragilidade resultante da separação de meios, com Caracena a manter o cerco a Vila Viçosa ao mesmo tempo que saía da proteção do seu campo fortificado para arriscar-se a travar batalha em campo aberto, na planura de Montes Claros, contra um exército praticamente da dimensão do seu, e sobre o qual tinha a informação concreta da sua dimensão, que supunha ser menor;

- a saída das forças militares portuguesas, do terreiro de Santo António, em Estremoz, para Montes Claros, que não terá ocorrido de 16 para 17 de junho, mas sim de 15 para 16 de Junho, tendo ficado acampadas, provavelmente, na região de Monte da Talisca – Monte da Senhora da Victória, atrás da Ribeira da Salgada, entre o Barro Branco e Rio de Moinhos, a cerca de 7 quilómetros de Vila Viçosa e a 3 quilómetros da planura de Montes Claros (só a esta distância teria sido possível passar a tempo do dispositivo de marcha de costado para o dispositivo de combate, que iria conter a primeira carga da cavalaria espanhola) e que é possível inferir a partir da lápide (padrão evocativo da batalha) existente na Ermida de Nossa Senhora da Vitória mandada construir pelo marquês de Marialva, para cumprimento de um seu voto expresso nas vésperas da Batalha de Montes Claros, e que é esclarecedor como mostra o principio do texto nala inscrito que seguidamente se transcreve:

«NO ANNO DE I665 

«REINANDO EM PORTUGAL EL REI D AFONÇO VI DO NOME - D. ANTONIO LVIZ DE MENEZES DO SEV CONSELHO DE ESTADO E GVERRA, MARQVES DE MARIALVA CAP.M GENERAL DESTA PROVINCIA DE ALEN TEIO GOVERNADOR DAS ARMAS DA CORTE DE LX.A CASCAES, E PROVINCIA DA ESTREMADVRA E VEDOR DA FAZENDA REAL. 

«OFERECEO A DS NOSSO S.OR ESTA HERMIDA QVE FVNDOV DEDICADA A INVOCACAÕ DAS ALMAS EM SATISFAÇÃO DO VOTO QVE FES ESTANDO P.A SAIR A CAMPANHA COM O EXERCITO SOCORRER A PRACA DE VILLA VIÇOZA E PROMETEV SE O S.OR DOS EXERCITOS LHE CONCEDESE VICTORIA CONTRA AS ARMAS DE CASTELLA A FVNDARIA NO LVGAR DA BATALHA EM MEMORIA, COM MISSA TODOS OS DIAS PELLOS QVE MORRESSEM NA PELLEIA FABRICANDO A DO QVE AVIA MISTER….»;

- o domínio, por forças de cobertura, da região do Cabeço do Mouro, quase ligado à Serra de Borba, que garantiam a segurança do flanco esquerdo da coluna e das linhas portuguesas evitando as naturais tentativas de contornamento;

- a segurança do flanco direito das linhas portuguesas apoiadas na Ribeira de Lucefece, pela dificuldade da sua transposição e torneamento, por ser terreno acidentado com muitos regatos e sanjas entre os bacelos das vinhas;

- a rápida ação de manobra para transporte de forças de uma ala para outra de forma a fazerem face às ameaças imediatas dos ataques espanhóis (que se deve ao esforço e visão que Schönberg teve na batalha e na organização prévia da coluna de movimento para o contacto);

- a posição mais favorável das linhas portuguesas em pontos mais altos dum terreno quase plano cujo declive descia uniformemente para o lado do inimigo;

- o posicionamento acertado da artilharia, tanto à frente da primeira linha na separação entre os esquadrões de infantaria e os troços da cavalaria da ala direita portuguesa (com as peças de acompanhamento), como nos pontos mais elevados (com as peças de maiores calibres) de onde o tiro era feito para maiores distâncias, e a sua postura disciplinada em bater com metralha, e o mais tarde possível, para quebrar o choque da cavalaria espanhola; por antítese à artilharia espanhola (parte da qual ficara em Vila Viçosa) e que devido à sua péssima colocação não teve praticamente qualquer utilidade na batalha; 

- a ação do vento, que ao início da manhã estava de sueste, mas que posteriormente mudou para de noroeste levando as cortinas de fumos da pólvora das armas de fogo em direção às forças espanholas dificultando a visibilidade e a sua ação de comando;

- a capacidade em manter as linhas firmes e sempre refeitas após os ataques espanhóis;

- a manutenção de forças em reserva e a constituição de novas reservas sempre que estas m empenhadas, 

- a oportunidade que permitiu à cavalaria portuguesa da primeira linha no flanco direito encetar a perseguição à cavalaria espanhola, ação que viria a constituir-se como o momento em que toda a cavalaria portuguesa passou à ofensiva, afugentando a cavalaria espanhola e permitindo que a infantaria portuguesa pudesse então passar também à ofensiva cercando a envolvendo a infantaria castelhana que já não dispunha do apoio da sua cavalaria para lhe fornecer a proteção de flanco necessária.  

- a ação de comando de Schönberg e dos generais portugueses que demonstraram inequivocamente as suas capacidades de liderança; o primeiro a quem coube a responsabilidade tática da organização das forças, do movimento e do dispositivo da batalha e o esforço de ter de assistir no centro das duas linhas portuguesas com forças volantes para acudir onde mais fosse necessário reforçar a primeira linha; ao marquês de Marialva que, com os outros generais, se posicionara com a primeira linha das tropas, para que com os seus exemplos e ação direta todos aguentassem o embate e se movessem para a frente, quando chegado o momento para tal.

Estas são as súmulas das conclusões do estudo aprofundado sobre a Batalha de Montes Claros, que aqui sumariamente se apresentaram, sob o ponto de vista de um Engenheiro Militar.

Consequências da Batalha de Montes Claros

A Batalha dos Montes Claros foi fundamental para que Portugal visse assegurada a sua independência e integridade territorial permitindo chegar ao século XXI como um País livre, independente e soberano. Com efeito, e após uma série de vitórias militares, a Batalha de Montes Claros veio confirmar um processo irreversível de aspiração à plena independência. 

A Espanha havia empenhado nesta empresa grandes recursos que lhe faltavam e a irrefutável vitória portuguesa fez-lhe perder toda a esperança em reconquistar Portugal. Além disso, três meses depois, a 17 de setembro de 1665, morreria Filipe IV, e o seu falecimento daria ensejo a perigosas dissensões na família real espanhola não compatíveis com a continuação da guerra. 

O resultado desta Batalha, após o qual se caiu num pequeno período de escaramuças sem história de relevo, teve importante significado e consequências vinculativas para os dois lados. 

Para Portugal foi a vitória militar da Restauração que abriria definitivamente o caminho para um tratado de paz com a Espanha, o que permitiria terminar com os enormes sacrifícios humanos, financeiros e materiais associados a esta guerra. 

Para a Espanha, a batalha contribuiu decisivamente para a convicção, tanto da Corte como da nobreza espanhola, de que seria impossível a submissão de Portugal pelas armas, e por consequência seria inútil o prosseguimento da luta. 

No plano internacional, a vitória portuguesa em Montes Claros acentuou o propósito da França e da Inglaterra em promoverem o estabelecimento de um tratado de paz entre Portugal e Espanha. 

O quadro político, nacional e internacional, levou assim à assinatura do Tratado de Paz em Madrid a 5 de janeiro de 1668, ratificado em Lisboa a 13 de fevereiro do mesmo ano. O tratado previa uma paz perpétua entre os dois Estados, permitia o restabelecimento da circulação de pessoas e mercadorias e das relações comerciais entre os súbditos dos dois países tais como eram no tempo de D. Sebastião. Determinava a reparação dos danos sofridos pelos particulares em consequência do estado de guerra e a restituição imediata de prisioneiros de guerra e do armamento capturado, designadamente das peças de artilharia. As terras e praças indevidamente ocupadas eram também restituídas, com exceção de Ceuta. As duas Nações comprometiam-se ainda a auxiliarem-se mutuamente contra os seus inimigos. 

É assim possível afirmar que, com a inequívoca vitória portuguesa na Batalha dos Montes Claros, terminou mais uma ameaça à restauração da independência portuguesa e se abriu definitivamente o caminho à existência de um País livre. Os recursos humanos, patrimoniais e financeiros existentes no País puderam, a partir de então, ser geridos apenas pelos portugueses, deixando de ser utilizados pelo governo de Espanha. Contudo, Portugal não foi ressarcido com as indemnizações de guerra pelos prejuízos causados pela Espanha, tal como justificadamente pretendia o conde de Castelo Melhor. Com efeito, com a sua queda política em consequência da crise política de 1666 a 1668, ficou sem efeito esta pretensão portuguesa. 

 


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Papeis Militares – Collecção de manuscritos, peças officiaes e noticias, sobre o Exercito, depois de 1640, consulta na Biblioteca do Gabinete de Estudos Arqueológicos da Engenharia Militar da Direção de Infraestruturas do Exército, Lisboa, (cota 1608).

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José Paulo Berger

Coronel do Exército, engenheiro militar, chefe do Gabinete de Estudos Arqueológicos da Engenharia Militar da Direção de Infraestruturas do Exército e professor da unidade curricular de Fortificação e Arquitetura Militar, na Academia Militar.​


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Como citar este texto:

BERGER, José Paulo – A Batalha de Montes Claros de 17 de Junho de 1665, na Perspetiva de um Engenheiro Militar Revista Portuguesa de História Militar – Dossier: Restauração Portuguesa (1640-1668)​. [Em linha] Ano V, nº 8 (2025); https://doi.org/10.56092/IGVL6961 ​[Consultado em ...].​



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