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12 - A Reconquista de Angola 1648
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A RECONQUISTA DE ANGOLA – 1648

 

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Abílio Lousada




Resumo

Depois de Francisco Barreto de Menezes vencer os holandeses em Guararapes, a frota de Salvador Correia de Sá e Benavides levantou âncora no Rio de Janeiro e irrompeu na Baía de Luanda, disposto a resgatar Angola. O desembarque acontece quando o grosso da força militar holandesa está a tentar submeter Muxima-Massangano e o inimigo é levado a crer que tem diante de si uma frota mais poderosa que a realidade. No 'meio' do processo … N'Ginga, a rainha da Matamba.

Palavras-chave: Angola; Reconquista; Salvador Correia de Sá e Benavides; Massangano-Muxima.

Abstract

After Barreto de Menezes defeated the Dutch in Guararapes, the fleet of Salvador Correia de Sá and Benavides weighed anchor in Rio de Janeiro and entered the Bay of Luanda, ready to rescue Angola. The landing takes place when the bulk of the Dutch military force is trying to subdue Muxima-Massangano and the enemy is led to believe that he has before him a fleet more powerful than in reality. In the 'middle' of the process… N'Ginga, the queen of Matamba.​

Keywords: Angola; Reconquest; Salvador Correia de Sá e Benavides; Massangano-Muxima.

 



Os Portugueses em Angola

Ao longo do século XVI, as rotas marítimas portuguesas, em crescendo para a Índia e o Brasil, exigiam a existência de portos de escala na costa ocidental africana. Neste contexto, depois de se explorar o curso do rio Zaire e de se contactar com o reino do Congo, que foi cristianizado, tornou-se necessário conhecer os reinos dos n'golas (reis), nos territórios mais a Sul. O processo foi iniciado por Paulo Dias de Novais (neto do navegador Bartolomeu Dias), em 1571, que recebeu de D. Sebastião Regimento de Donataria (povoamento) e de Capitania (conquista). Para esse efeito, saiu de lisboa, a 23 de Outubro de 1574, com sete navios, e aportou na baía onde fundou São Paulo de Loanda, no morro sobranceiro, em Fevereiro de 1575. Entretanto, relaciona-se com o poderoso rei do Congo, a Norte, e aproveitou as rivalidades deste com o reino do N'Dongo, a Leste, para iniciar a penetração para o interior.

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Fig. 1


Paulo Dias de Novais quebrou a resistência do N'Dongo em 1580, quando desbaratou os guerreiros do n'gola Kiluange na batalha de Massangano, nas margens do Kwanza, 150 km a Sudeste de Luanda. O Kwanza torna-se uma via fluvial militar e comercial fundamental entre Luanda e Cambambe, estabelecendo-se uma linha de fortins ao longo do seu curso. 

Massangano é o centro de todo o processo, um lugar determinante para esta história, sendo ponto de confluência de interesses estratégicos, militares e comerciais para portugueses, neerlandeses, brasileiros e africanos. Na verdade, Massangano foi testa de ponta e local de refúgio para portugueses, sítio perturbador e inatingível para neerlandeses, ponto de ameaça para n'golas e área de obtenção de mão-de obra escrava para luso-brasileiros. 

Situado na margem direita do Kwanza, onde confluem os rios Lukala e Kwanza, Massangano localiza-se numa língua de terra por cima do rio e domina pela observação todo o espaço envolvente num raio de 360°, só sendo possível de abordar por terra através de uma direcção. Com abundância de água e uma vegetação verdejante, a agricultura e a pesca eram actividades que permitiam suficiência alimentar horto-frutícola, peixe e carne. Nesse local protegido, Paulo Dias de Novais edificou uma fortaleza, para vigiar o rio, e uma igreja, que baptizou Nossa Senhora da Vitória, em honra do sucesso na batalha de 1580. 

Massangano tornou-se nos anos seguintes um centro militar e um entreposto comercial fortificado, de onde irradiava o poder da presença portuguesa na região. Estava apoiado, 40 km a Norte, pelo forte da Muxima (edificado em 1581, na margem esquerda do Kwanza), pelo de Ambaca (encravado no seio dos reinos n'gola, em Malange), 80 km a Leste, e pelo de Cambambe (datado de 1604 e a partir de onde o Kwanza deixa de ser navegável devido aos rápidos), 30 km a Sul. Mantinha ainda ligação fluvial e terrestre com Luanda. 

A partir desta altura, o tráfico negreiro com o Congo e a conflitualidade com o N'Dongo são uma realidade. Os africanos, apoiados numa massa de guerreiros, no tiro de setas e arremesso de azagais, efetuavam ataques de surpresa ao som de batuques. Quanto aos portugueses, combatiam abrigados atrás de paliçadas ou de barreiras de terra, quando possível, ou formavam em quadrado, quando em campo aberto, valendo-se da organização para o combate e o poder de fogo dos canhões e arcabuzes. 

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Fig. 2

 

Entretanto, Paulo Dias de Novais, que pretendia o domínio das picadas, consegue a colaboração de africanos, obtendo carregadores, escravos, marfim e ferro, mas tem problemas complexos a ultrapassar: o clima árido e as dificuldades de progressão numa região agreste; a elevada mortalidade devido às doenças tropicais; o esclavagismo, que mina as relações internas e impede um povoamento sustentado; a hostilidade africana, que é recorrente. Além disso, desconhece as fontes de prata e de cobre que viu nos congoleses e pressente nos n'golas, a obsessão que o motiva. É neste contexto que morre, em 1589, quando se preparava para avançar para Cambambe, a Sul de Massangano.

 

O Triângulo Estratégico da Restauração

Ao longo da primeira metade do século XVII, a rotina ultramarina de Portugal, inserto na União Dinástica com a Espanha, prossegue. No Brasil, enquanto os bandeirantes desbravam o interior do território e os neerlandeses pressionam a costa, em Pernambuco é feita a exploração de açúcar. A Oriente, a rota das especiarias e o comércio no Malabar sofre as pressões das companhias comerciais inglesas e neerlandesas. Em África, prossegue o comércio esclavagista, os combates entre reinos autóctones e as «guerras pretas» entre portugueses e africanos, que têm na imposição de soberania e na obtenção de minérios o causus belli

É neste contexto que ocorre Restauração Portuguesa (1640), a ocupação holandesa do Pernambuco, Luanda e São Tomé (1641) e a reconquista portuguesa de Angola contra os holandeses e os africanos de N'ginga M'bandi (1648).

A aclamação de D. João IV como rei de Portugal, no 1.º de Dezembro de 1640, foi acolhida de imediato em todo o território português e nas possessões ultramarinas. E se relativamente à defesa do território continental, os apoios de Portugal foram os inimigos da Espanha (Inglaterra, França, Escandinávia, Províncias Unidas/Países Baixos), a recuperação dos domínios ultramarinos chocava, desde logo, com os interesses neerlandeses. 

Realmente, Haia e Lisboa, que na conjuntura continental buscavam um entendimento político e militar contra o denominador comum – Madrid – enveredaram, no que toca ao Império Ultramarino Português, por uma atitude de confronto, onde amiúde a realidade militar não refletia a 'vontade' negocial. O ponto marcante desta conduta centra-se no Tratado de Haia, de 12 de Junho de 1641, que estabeleceu tréguas e a manutenção do status quo ultramarino, favorável às Províncias Unidas. Ora, o percurso temporal mostrou que a Haia, por um lado, procurava consolidar e, em alguns casos, alargar o território e que Portugal, por outro, tentava a recuperação dos territórios, perdidos durante a ligação a Espanha.

Para as Províncias Unidas, depois das vantagens comerciais obtidas com o sucesso da Companhia das Índias Orientais (VOC) no Oriente, impunha-se reeditar o mesmo no Brasil, onde a Companhia das Índias Ocidentais (WIC) tinha ao seu dispor o usufruto das plantações açucareiras, facilitadas pelo trabalho escravo canalizado a partir de Angola. Aliás, Angola e Brasil estavam, por essa razão, intimamente ligados, dependendo o sucesso comercial deste do escoamento esclavagista a partir daquela. Por essa razão, Maurício de Nassau (1604-1679) ocupou Maranhão e Sergipe, no Brasil, e território angolano e são-tomense, na África Ocidental, durante as negociações de 1641. 

Portugal entendia a posse do Brasil e de Angola como condições fundamentais para sustentar a integridade territorial na metrópole, pois os proventos económico-financeiros advindos da terra brasílica, trabalhados com o braço escravo obtido em Angola, eram essenciais para financiar a guerra contra a Espanha. 

 

A Ocupação de Luanda pelos Holandeses e o Papel da rainha N'Ginga

Instalados no castelo de S. Jorge da Mina desde 1637, os neerlandeses avançaram, três anos depois, sobre Luanda, com 21 navios e 3.000 homens, sob o comando do almirante Cornelis Jol e do coronel James Henderson. Plantada num monte e pejada de fortes sobranceiros ao porto, a cidade resistiu durante três dias, até que o comandante português, Pedro César de Menezes, impotente, retirou com os moradores para Norte, a 23 de Agosto de 1641, e acomodou-se junto ao rio Bengo. Os neerlandeses instalaram-se em Luanda e, em Outubro, conquistaram Benguela, a Sul. Depois, ocuparam São Tomé e Ano Bom, a Norte. 

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Fig. 3

 

Senhores da cidade, os holandeses são aliciados com preitos de amizade pelos reinos e clãs angolanos e o próprio rei do Congo, Garcia Afonso II, estabelece relações de cooperação. Quanto aos portugueses, decidem retroceder para o interior da savana e recuperar o eixo Massangano-Muxima, onde vão resistir à ocupação neerlandesa e à coação dos n'gola até 1648. 

E, neste contexto, é importante falar numa personagem marcante em todo o enredo: N'Ginga M'Bandi (1582-1663), rainha da Matamba. Durante a soberania portuguesa de Luanda, foi inicialmente a negociadora em nome do irmão, o N'gola M'Bandi, revelando-se intransigente e causando boa impressão junto do governador João Correia de Sousa. Com a morte do irmão, por razões pouco claras, sucede-lhe em 1623 e alia-se aos portugueses contra o reino do N'Dongo, convertendo-se, inclusive, ao Cristianismo, sendo batizada Dona Ana de Sousa. Torna-se uma ameaça para os reinos vizinhos e assim permaneceu enquanto as trocas comerciais lhe eram favoráveis e o domínio interno do seu espaço de influência conveniente. Guerreira tenaz, excelente negociadora, estratega do seu povo e insubmissa, impõe-se. 

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Fig. 4

 

Mas entre 1625-1627, a rainha da Matamba rasgou os compromissos e desenvolveu uma guerra intrépida contra os portugueses, sendo copiosamente derrotada por Bento Banha Cardoso. Sistematicamente pressionada e perseguida, foi obrigada a retirar para o interior, acantonando-se na fortaleza natural de Pungo Andongo. Mas a sua irredutibilidade aumentou, na proporção directa da pressão naval neerlandesa na costa angolana. 

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Fig. 5

 

Durante a década de 1630, tentou incitar os povos vizinhos à guerra contra os portugueses, procurando uma aliança com os reinos do Congo, Kasange, Dembos e Kissama. A sua fama aumentou quando derrotou e ocupou o N'Dongo que, entretanto, se tinha aliado aos portugueses. Permaneceu então na expectativa até à invasão de Luanda pelos holandeses, a quem deu preciosa ajuda com informadores e guerreiros a partir de terra. O próprio reino do Congo se rebelou. Tal como fizera anteriormente com os portugueses, tornou-se aliada e estabeleceu acordos com os novos senhores da guerra e da terra, que lhe garantiram a não intromissão nos seus territórios a troco de angariação de escravos a canalizar para o Brasil. 

Contudo, apesar de desalojados de Luanda, a presença portuguesa em Angola era ainda uma realidade, tanto a Norte (Bengo) e a Sul (Benguela), mas sobretudo no troço do Kwanza que ligava Massangano-Muxima. As respectivas fortalezas tornaram-se um problema para os neerlandeses e uma preocupação para os n'golas. E a realidade é que os portugueses resistiram de 1641 a 1648 a sucessivas investidas por parte dos neerlandeses, pouco interessados em embrenhar-se demasiado pelo interior, e dos guerreiros de N'Ginga, pouco à vontade para se aproximarem de Luanda. 

A partir de 1645 a situação fervilha. 

No Brasil, a 3 de Agosto, 1.100 militares das Províncias Unidas, comandados pelo coronel Hons, caem numa sucessão de emboscadas, montadas pelo madeirense João Fernandes Vieira no monte das Tabocas, e são destroçados. As acções tiveram o condão de moralizar os luso-brasileiros e generalizou a guerra no Pernambuco.

 6. Fortaleza Massangano.JPG   ​​​7. Kuanza visto do Forte-2.jpg

Fig. 6 e 7

 

Em Angola, o acontecimento inquietou a presença neerlandesa e animou os portugueses. De tal forma que Cornelis Hendricksz, o governador, recebeu instruções para vigiar atentamente os portugueses. Especial atenção foi exigida relativamente a Massangano, ao tráfego no Kwanza e a movimentos marítimos na costa de Luanda, onde se sabia que a rede de fortificações era precária para defender o mar aberto que tinham à sua frente. No campo português, César de Menezes ansiava por reforços a partir do Brasil, pois as armas e munições disponíveis eram insuficientes para persuadir à inação neerlandesa em Luanda, desagravar as tropas n'gingas a Leste e suster os Libolo a Sul. 

Depois de um efectivo desembarcado em Kikombo (Sumbe), a Norte de Benguela, ter sido desbaratado no percurso terrestre para Massangano pelas tribos jagas, Francisco Souto Maior, zarpou com cinco velas, a partir do Rio de Janeiro, aportou na Baía de Kikombo, seguiu depois até Cabo Ledo e, por terra, para Massangano, onde entrou como governador e com reforço de soldados, artilharia e munições. O importante reforço permitiu a Massangano e seus termos não só firmar posições como manter uma considerável actividade económica. E de tal forma que, em Março de 1646, as tropas portuguesas comandadas por Gaspar Borges de Madureira surpreenderam o exército da rainha N'Ginga e militares neerlandeses, a quem impuseram uma pesada derrota. 

 
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Fig. 8

 

Em Angola, tal como no Brasil, a guerra marcava a rotina. Então, a morte do enérgico Francisco Souto Maior, que tinha o objetivo de recuperar a suserania de Luanda para a coroa portuguesa, motivou os ocupantes a retomar a iniciativa. Em Janeiro de 1647, neerlandeses e n'gingas firmaram uma parceria e procuraram aproveitar o aparente desnorte do adversário, desencadeando um ataque conjunto: aqueles contra Muxima, onde são derrotados; estes contra Massangano, onde são detidos.

 

Do Rio de Janeiro a Luanda: a Acção de Salvador Correia de Sá 

Ainda em 1643, Salvador Correia de Sá e Benavides, Governador do Rio de Janeiro, apresenta na Corte de Lisboa um método de revolucionar Pernambuco e de reconquistar Angola, territórios indissociáveis. Sobre Pernambuco preconizava “que se obre de modo que se possa atribuir a omissão do governador [Teles da Silva] faltar com o castigo sem que se presuma que é ordem de Vossa Majestade, porque fazendo-lhe guerra nesta conformidade será muito o dano que recebam, pouco o proveito que granjeiam [os Holandeses] com o que pode suceder que com algum concerto [compensação monetária] larguem o que têm naquele Estado achando-se por este meio apertados". Sobre Angola, depois de frisar a má-fé negocial dos holandeses e de caracterizar as tréguas como fictícias, apelou a D. João IV para que, debaixo de uma aparência de paz, pensasse na sua reconquista, porque “a tardança pode ser de muito prejuízo porque sem ela se prejudica muito as fazendas do Brasil e aniquila o aumento da Real Fazenda, assim no Brasil como neste Reino" (Cit. Luís Norton).

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Fig. 9

 

Aproximava-se o final de 1647 e, enquanto a tensão na Europa, entre Lisboa e Haia, se agudizava, Salvador Correia de Sá foi nomeado governador de Angola, com a missão secreta de fundar uma nova Luanda no litoral angolano, a Sul da anterior cidade, e de restabelecer as ligações com Massangano. Entretanto, no Brasil, a guerra entre o predomínio naval das Províncias Unidas, ancorado no Recife, e a supremacia terrestre luso-brasileira, sustentada na Baía, assumia-se. Em Abril de 1648, o comandante militar holandês Van Schkoppe, depois de receber o apoio de nove vasos de guerra, tropas e víveres, saiu do Recife em direção ao Sul com 4.500 homens, distribuídos em sete regimentos e com 5 peças de artilharia, decidido as atacar as bases de abastecimento portuguesas e cortar-lhes as comunicações entre a Baía e o sul de Pernambuco. Acabou copiosamente derrotado nos Montes Guararapes. 

Nessa altura, Salvador Correia de Sá tinha uma frota organizada no Rio de Janeiro, constituída por 15 navios e 1.400 homens e iniciou a navegação do Atlântico para Angola, a 12 de Maio. A viagem decorreu a contento e, na noite de 26 de Julho, ancorou na baía de Santa Cruz de Kikombo, onde tomou conhecimento da situação portuguesa em Angola: a pressão holandesa, a obstinação da rainha N'ginga, a renitência dos congoleses e o desespero da guarnição e habitantes de Massangano. 

Estava a frota portuguesa ancorada na baía de Kikombo quando, na noite de 1 de Agosto, ocorreu uma gigantesca calema que afundou o navio-almirante São Luís e, com ele, quase 300 marinheiros. Uma tragédia que, aparentemente, reduzia a missão a 'águas de bacalhau'. Puro engano. Oficiais, soldados e marinheiros instaram o comandante para se abandonar o nefasto local e zarparem para Norte: “ou o céu, ou Luanda" tornou-se palavra de ordem. Salvador Correia de Sá passou-se para o navio-capitão e seguiu viagem, com um esquema em mente.

Enquanto isso, o triunvirato holandês de Luanda, Ouwman, Lems e Thijmen Pietersen, decidem que Massangano e a presença portuguesa ao longo do Kwanza é um problema que urge resolver. A solução residia em atrair os portugueses para campo aberto e esmagá-los em batalha, pois Massangano e Muxima revelavam-se inexpugnáveis. A oportunidade aconteceu e coube a N'Ginga informar os holandeses que um forte contingente português, composto por mais de 400 soldados brancos e centenas de tropas negras e carregadores, deixara Massangano e dirigia-se para o forte M'baka, no interior. 

A tropa portuguesa foi, assim, surpreendida, a meio caminho, por 4.000 guerreiros n'gingas. De imediato, formou quadrado e empunhou armas. Iniciava-se o combate quando, de repente, o quadrado se vê abordado por 300 militares holandeses comandados pelo major Thijmen. Obrigados a dividir as suas forças entre os n'gingas, que lutavam ferozmente, e os holandeses, que cuspiam fogo de forma implacável, os portugueses foram chacinados.

Logo que a notícia chegou a Massangano, a consternação tomou conta dos habitantes. A queda da fortaleza revelava-se inevitável. Mas Thijmen decide que a conquista do forte da Muxima é prioritária, protelando o ataque a Massangano. E é quando, em meados de Agosto, prepara o assalto ao forte da Muxima que o comandante holandês recebe a suplicante mensagem de Ouwman e Lems para regressar rapidamente a Luanda: a cidade estava debaixo da ameaça de uma colossal frota portuguesa.

Ardil defronte de Luanda 

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Fig. 10

 

De facto, a 12 de Agosto, com 11 navios, alguns de grande porte, e pouco mais de mil homens, Salvador Correia de Sá está ao largo de Luanda, em atitude ameaçadora. Em terra, surpresa geral. A frota era considerável e não estava de passagem. E, entre os holandeses, da surpresa passou-se a preocupação, pois perscrutando melhor, na armada faltava o navio-almirante, o que significaria que o grosso dos navios ainda estava a caminho. Tratou-se de uma conclusão errada, mas os indícios assim a justificavam. Ainda por cima, os efetivos capazes de defenderem a cidade (os 300 homens de Thijmen) estavam no interior da savana a tentar submeter Massangano-Muxima. Era necessário, com urgência, fazê-los regressar. 

Esta situação não passou despercebida a Salvador Correia de Sá. Apesar de a cidade ter oito fortificações defensivas e 250 homens, enviou emissários a terra a exigir uma rendição honrosa. Ouwman e Lems pediram oito dias para pensar (tempo previsto para o regresso das tropas de Thijmen); Salvador Correia de Sá concedeu três – de 12 a 14 de Agosto. 

Durante esse tempo, o ardil prossegue; o comandante português entrega uma carta a mensageiros negros da urbe para a levarem a Massangano, onde se exaltava a poderosa armada que tinha sob o seu comando, exagerando ainda o número de soldados, artilharia e munições. Confiava que a carta fosse parar nas mãos dos governadores holandeses da cidade; assim aconteceu. Ouwman e Lems caíram no engodo e a confusão instalou-se. Agora não havia dúvidas, a frota portuguesa à vista era só a vanguarda!

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Fig. 11

 

Escoado o tempo de ultimato, a 15 de Agosto (dia de Nossa Senhora da Assunção), iniciou-se a batalha de Luanda. Os holandeses, enganados quanto ao real efetivo português, concentraram homens e meios em apenas três fortes – Santo António, Nossa Senhora da Guia e São Paulo – decididos a resistir até à chegada da tropa de Thijmen e dos guerreiros n'gingas. Confiavam que após os desembarques, os portugueses precisassem de tempo para recuperar e se organizarem. Por parte dos portugueses, a pressão mantém-se e o logro da chegada iminente do grosso da frota amplia-se. Uma vez desembarcados, atacam com rara ferocidade, divididos em diversos grupos e ao longo de diversas frentes. Enquanto as barricadas e as trincheiras em redor de Luanda eram ultrapassadas e Salvador Correia de Sá se tornou senhor de Luanda, os holandeses passaram a resistir a partir da fortaleza de São Paulo. 

Salvador Correia de Sá sabe que tem de subjugar o forte antes da entrada em Luanda do reforço militar vindo da região de Massangano-Muxima. Canalizando a artilharia capturada nos fortes abandonados, o cerco português ao forte de São Paulo durou até 18 de Agosto, registando-se uma luta feroz de parte a parte. Altura em que a guarnição sitiada, sem notícias de Thijmen, içou uma bandeira branca. Seguiram-se os termos da rendição, na maioria definidos pelos vencidos, com Salvador Correia de Sá a revelar-se magnânimo e condescendente, conquanto aceitassem embarcar no alto-mar. 

A pressa é a conselheira do comandante português. Quanto aos residentes, têm a opção de escolher entre sair da cidade e acompanhar os holandeses ou submeterem-se. Como curiosidade, no tratado de rendição, assinado em 21 de Agosto, constava no seu artigo 7.º que o major Thijmen Pietersen e todos os oficiais e soldados, bem como todos os que estivessem espalhados pelo território, seriam abrangidos pelos termos do tratado, desde que o quisessem reconhecer.

Em Massangano e arredores sabe-se que Luanda está em vias de capitulação: N'Ginga M'Bandi acautela-se, os portugueses ganham ânimo e Thijmen hesita. Os 300 homens só chegam às imediações da cidade a 27 de Agosto, avistando a bandeira portuguesa a tremular nas fortalezas. São intimados a baixar armas e a submeterem-se ao acordo assinado por Ouwman e Lems, sendo aconselhados por estes a renderem-se. Incrédulo, cansado e enganado, Thijmen e os seus apresentaram-se no local de embarque que lhe foi indicado. Ao fim de sete anos, e de forma algo inglória, terminava a presença neerlandesa em Angola, que lhe faria sucumbir o Brasil.

E Depois da Reconquista

Depois da reconquista de Luanda e da expulsão dos homens das Províncias Unidas, Salvador Correia de Sá recuperou São Tomé e revelou-se intransigente com os reinos africanos limítrofes. A começar no Congo, que foi duramente castigado e reduzido a uma obediência castradora das suas prerrogativas de grande reino, além do Libolo e Kissama. N'Ginga M'Bandi recolheu para a Matamba, onde manteve alguma liberdade de acção e aguardou pelo eventual regresso dos neerlandeses. Impotente, em 1655 solicitou a paz e dois anos depois, convencida por padres capuchinhos italianos, retomou a fé cristã. Em 1659 firmou um tratado político e económico com os portugueses. Morreu em 1663, já com idade avançada.

Quanto a Loanda, passou a chamar-se São Paulo da Assunção de Loanda, enquanto celebração da reconquista a 15 de Agosto, e o forte de São Paulo (Aardenburg no curto tempo de domínio das Províncias Unidas) passou a designar-se São Miguel, nome do Arcanjo protector da armada com que Salvador Correia de Sá e Benavides reconquistou Luanda. Forte que é hoje Museu das Forças Armadas Angolanas.

 


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Abílio Lousada

Militar Historiador e Mestre em Estratégia, co-Director da Revista Portuguesa de História Militar. Membro do Conselho Científico da Comissão Portuguesa de História Militar e membro fundador da Associação Ibérica de História Militar. Autor/co-autor de 18 livros e de mais de 70 artigos sobre História Militar e Estratégia. Prémio Defesa Nacional e Jornal do Exército​


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Como citar este texto:

LOUSADA, Abílio – A Reconquista de Angola – 1648. Revista Portuguesa de História Militar – Dossier: Restauração Portuguesa (1640-1668)​. [Em linha] Ano V, nº 8 (2025​); https://doi.org/10.56092/XVUZ4106 [Consultado em ...].​





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