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1 - Restauração – Uma Perspetiva Estratégica
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RESTAURAÇÃO – UMA PERSPETIVA ESTRATÉGICA

 

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António Paulo Duarte




Resumo

Toda a guerra aponta a uma totalização, fenómeno enxertado na ascensão aos extremos que caracteriza todo o combate bélico. Essa totalização brota da natureza limiar da guerra, uma fronteira entre a vida e a morte, o passado e o futuro, a vital e o abissal, o cognoscível e o incognoscível. Esse limiar apocalítico convida à máxima mobilização do humano, na sua sensibilidade e na sua racionalidade, na sua crença e no seu entendimento, em suma convida à totalização. a Guerra da Restauração era uma questão limiar – ganhando-a assegurava-se um reino, e que reino à altura, perdendo, seria o termo definitivo da dinastia nobiliárquica dos Bragança e da independência de Portugal. A Guerra da Restauração foi assim pela Monarquia Bragantina travada numa paleta em múltiplos modos – militar, diplomático, propagandístico, religioso. A ideia de combinar uma paleta existia, mas a sua integração e correlação era inviável, múltiplos constrangimentos inibiam-na e por essa via também não facilitava uma cognoscência com alguma virtualidade holística. Era um mundo fragmentado, materialmente e inteligivelmente, um mundo ainda estocástico que impossibilitavam uma qualquer ideia de “Estratégia total e integral". Em suma, o historiador poderá dizer que não havendo literalmente uma “Estratégia total e integral", na realidade, de algum modo, uma incipiente lógica “estrutural" da “Estratégia total e integral" habitava a visão portuguesa da Guerra da Restauração. 

Palavras-chave: Estratégia; Guerra; Guerra da Restauração; Diplomacia.

 

Abstract

Every war point to a totalization, a phenomenon grafted onto the rise to extremes that characterizes all armed combat. This totalization springs from the threshold nature of war, a frontier between life and death, past and future, the vital and the abysmal, the knowable and the unknowable. This apocalyptic threshold invites the maximum mobilization of the human being, in his sensitivity and his rationality, in his belief and his understanding; in short, it invites totalization. The Restoration War was a threshold issue – winning would ensure a kingdom, and that kingdom at the height; losing would be the definitive end of the noble Braganza dynasty and of Portugal's independence. The Restoration War was thus fought by the Bragantine Monarchy in a palette of various modes – military, diplomatic, propaganda, religious. The idea of combining a palette existed, but its integration and correlation was unfeasible, the constraints inhibited it and therefore did not facilitate a knowledge with any holistic virtuality. It was a fragmented world, materially and intelligibly, a world still stochastic that made any idea of a “total and integral strategy" impossible. In short, the historian could say that although there was no literal “total and integral strategy", in reality, in some way, an incipient “structural" logic of the “total and integral strategy" inhabited the Portuguese vision of the Restoration War.

Keywords: Strategy; War; Restoration War; Diplomacy.



 

O historiador António Cruz afiançava no prefácio de um pequeno volume publicado aquando dos “Centenários", em 1940, que: “em nenhuma outra época como na que se distende de 1640 a 1668 a Nação teve de encontrar aquém-fronteiras aqueles recursos de que carecia em absoluto para a vitória definitiva. Foi assim, como se diria nos tempos de correm, uma verdadeira mobilização total".[1]

Como historiador profissional, António Cruz, matiza, na forma como a apresenta, “se diria nos tempos que correm", a equiparação entre o levantamento nacional na Guerra da Restauração e a mobilização total das guerras mundiais, uma estando a decorrer no momento em que ele publicava o seu pequeno volume. Mas mesmo com a matiz que ele introduz, não haja dúvida, um anacronismo profundo parece ser evidente entre a mobilização nacional para a luta em defesa da Aclamação de D. João IV como rei de Portugal e a mobilização total decorrente das guerras mundiais. E, todavia?

A edificação dos conceitos tem um contexto histórico que os delineia e os fixa, não obstante, a ciência, ao pretender uma certa universalização, depende para o qual das palavras e das conceções, conceptualizações, que a sua própria sociedade, arquiteta. Não é subordinando tudo à linguagem dos coevos que se entende o passado, na realidade, tratando a história mais do advir que do passado, estritamente fixo, do movimento e do fluir da vida histórica, a interpretação destes processos só pode ser plenamente alcançada em cada época, com a linguagem própria de essa época. Acontece igualmente, que por múltiplas razões, os habitantes do passado, habitualmente, não têm o “olhar de águia" dos vindouros, que observam e desvelam fenómenos de antanho, nem sempre apreciados pelos coevos.

Afirmar como o faz António Cruz, que a Guerra da Restauração viu uma, como à altura se dizia, “mobilização total", é muito provavelmente, um exagero, mas reconhecer que a Aclamação implicou uma mobilização de múltiplos meios, com vista a alcançar-se o desiderato de assegurar o trono de Portugal à Dinastia de Bragança, espelha uma visão mais ampla da política de guerra dos primeiros reis da IV Dinastia, no sentido de que se esforçaram, dentro do seu quadro de inteligibilidade, por pôr ao seu serviço uma vasta gama de meios e ações com vista a impor aos seus inimigos um resultado condizente com as suas ambições políticas e régias. 

Assim, indo ainda mais longe do que António Cruz, este trabalho questiona primeiro e procura demonstrar subsequentemente que, acossados por uma realidade existencial, os primeiros monarcas bragantinos, desenvolveram uma política em vários tabuleiros internos e externos, visando assegurar a sua perdurabilidade, como a família a que pertencia por direito a realeza de Portugal. Estaríamos aqui perante uma “estratégia integral" muito “avant la lettre", termo obviamente inexistente ao tempo de D. João IV, D. Afonso IV e D. Pedro II, mas que, com os cuidados que a anacronia demanda, e o conhecimento polemológico impõe, não deixa de ser de maior utilidade para o conhecimento do estudo da guerra e da teoria da estratégia. A tese que aqui se defenderá afirma que face à existência de uma guerra existencial – estava em causa a perdurabilidade da Casa de Bragança e da sua Realeza em Portugal (e em sequência, a independência do país) – os atores envolvidos tenderão sempre a procurar mobilizar todos os recursos que conseguem conceber e de que são capazes de levantar para confrontar-se com o seu oponente/inimigo, aproximando-se à lógica contemporânea da “Estratégia total ou integral". 

Esta curta dissertação começa, primeiro capítulo, por refletir sobre a ideia de “Estratégia total ou integral", a sua origem e sua lógica, para seguidamente, apetrechados dos argumentos expostos, no segundo capítulo, apresentar as múltiplas mobilizações da Guerra da Restauração, evidenciando-as como uma aproximação entre aquela estratégia e a políticas ou políticas de guerra da Monarquia Bragantina. Um terceiro capítulo apresenta os elementos ou argumentos que questionam a ideia da possibilidade de uma leitura de como há uma “Estratégia total ou integral" na Guerra da Restauração. As conclusões, apoiam a ideia da existência de uma lógica, intrínseca às guerras, para lá da inteligibilidade do tempo, denotando uma tendência à produção de algo como uma “Estratégia total e integral", espelho de uma totalização inerente à dinâmica bélica e completam este texto. 

1. Uma perspetiva estratégica – o que é?

Abel Cabral Couto define estratégia, numa versão posterior aquela que existe na sua “magnum opus" Elementos de Estratégia, como: “a ciência e arte de, à luz dos fins de uma organização, estabelecer e hierarquizar os objetivos, e gerar, estruturar e utilizar os recursos, tangíveis e intangíveis, a fim de se atingirem aqueles objetivos num ambiente admitido como conflitual ou competitivo (ambiente agónico)". [2]

A estratégia, tal qual entendida por Cabral Couto, é uma perspetiva abrangente, com uma lógica total, integrada e englobante, fazendo face a uma oposição. Com efeito, diz este estratego, a estratégia é uma ciência e arte (abrangência), que estabelece e hierarquiza objetivos (integração e sincronização), estrutura, isto é, edifica, arquiteta, fabrica, recursos, tangíveis e intangíveis, e os utiliza (uma totalidade, englobante) para alcançar os desideratos propostos face à oposição (extrema e radical, na forma de um inimigo) que se lhes apresenta (uma lógica total, integradora, englobante, abrangente de conceção-ação). Este conceito lógico, integrador e total, é, porém, recente. Deve-se, talvez, ao estratego francês André Beaufre a sua primeira e mais consumada arquitetura. Beaufre define a estratégia do seguinte modo: “A Arte da dialética das vontades que utiliza a força para resolver o conflito, que entre elas se estabelece".[3]

Dito desta forma, a fórmula surge em demasia abstrata, todavia, nesta abstração há uma robusta substância que a aproxima de uma totalidade – ele resulta de “vontades" em “dialética" (luta) que mobilizam a “força" para alcançar o seu desiderato. Estes três termos, de algum modo contém cada um uma totalidade própria que engendra uma totalidade maior (absoluta, por nada estar fora dela, uma integralidade). A vontade de um coletivo ou a vontade de dois coletivos, que mobilizam o que entendem por “força" (inerentemente poder), para digladiando-se (a luta forja uma forma de unidade própria, um sistema), visam dirimir a contenda que os opõe. Há aqui simultaneamente uma lógica total (integradora, holística) e uma lógica absoluta (radical, extrema). É por isso que Beaufre concebe uma partitura estratégica complexa e abrangente - a estratégia é uma unidade, no vértice estando a “estratégia total", a combinatória de todas as estratégias, estas subdividiam-se na “estratégia geral", de acordo com a área de ação (militar, económica, política ou diplomática). Cada uma destas áreas deve ser estruturada de acordo com a charneira entre conceção (estratégia genética) e ação (estratégia operacional). O modo estratégico é a forma como se define a ação dominante da estratégia, sendo que há um modo direto (centrado no emprego de forças militares) e o modo indireto (focado na manipulação de outros instrumentos que não os militares, os políticos, económicos e diplomáticos). A arte da estratégia total é a combinatória harmónicas das diversas estratégias.[4]  

Este modelo beaufriano e cabralcoutiano é da segunda metade do século XX. Não só não existe nas estratégias mais tradicionais, do século XIX e da primeira metade do século XX, como é em absoluto inexistente no século XVII (a sua aplicação estrita seria um anacronismo), em que nem o conceito existia (ou se vislumbrava ainda muito vagamente).[5] Ele apresenta-se num contexto histórico específico – o da guerra subversiva e contrassubversiva – mas, perpassando essa especificidade, o que caracteriza a “Estratégia total e/ou integral" é a natureza da luta – que exige a mobilização, a edificação, a arquitetação de todos os meios com que se possa adquirir a força e poder com que levar a bom porto o desiderato pretendido, face a uma sólida oposição. Nesse sentido, nem a definição de estratégia de André Beaufre, nem a de Abel Cabral Couto se sujeitam a uma dada época, mas abrem-se à possibilidade de interpretar a realidade das “estratégias", das políticas ligadas às guerras, das guerras de antanho, quiçá, mesmo em períodos muito arcaicos.

Mas será plausível pensar a possibilidade de a luta demandar sempre uma certa ideia de integralidade? Na realidade a história da estratégia até André Beaufre e Abel Cabral Couto não é mais que sucessivas edificações de integralidades. A “Grande Estratégia" de Liddell Hart, mas que reflete a experiência das guerras mundiais e da mobilização total, referido pelo historiador António Cruz, é uma forma de absorção de essa totalidade no caso específico de uma guerra extrema entre blocos de nações, que prefigura, na realidade, a ideia de “Estratégia total e integral" posterior. Diz Liddell hart: “coordenar e dirigir todos os recursos de uma nação, ou grupo de nações, para a consecução do objetivo político da guerra [“to co-ordinate and direct all the resources of a nation, or band of nations, toward the attainment of the political object of the war – the goal defined by fundamental policy"].[6]

Como Beaufre ou Cabral Couto, Liddell Hart pensa a “Grande Estratégia" de forma abrangente e integrada, uma totalidade, mobilizando múltiplos elementos que compõe os instrumentos necessários a coagir o inimigo à vontade do seu opositor. A diferença essencial resulta da tipologia da guerra, não, como em André Beaufre e em Abel Cabral Couto, uma paz-guerra ou uma guerra em tempo de paz, mas uma conflagração direta, entre vastas forças belígeras, complementadas, por um lado, por uma vasta retaguarda logística, e por outro lado, por outras ferramentas de ação supletivas – bloqueios económicos, ações de propaganda global, outras, passíveis de utilização. Na realidade, enquanto a “Grande Estratégia" serve a guerra total, eis aqui a lógica da totalização, a “Estratégia total e integral" serve as guerras subversivas. As formas de guerra delineiam a estratégia coeva, mas a sua totalidade está sempre presente. 

Chegados aqui, pode-se questionar se este fenómeno não é arquetípico do século XX e das suas guerras integrais? E se pelo contrário, a estratégia militar clássica, dita em estratégia, tout court, “estratégia militar" não será esta uma demonstração de que essa totalização não existe na realidade? Na realidade, mesmo a dita “estratégia militar" (estratégia “tour court" na era de Clausewitz e Jomini), à sua medida, era igualmente uma totalização. Nas sociedades europeias do dealbar do século XIX, de um ponto de vista económico, social e cultural, pouco desenvolvidas, quando comparadas com as suas sucessoras do século XX, o elemento militar alicerçava-se essencialmente na capacidade de mobilizar homens para a guerra. A Revolução Francesa ao criar o cidadão e ao arquitetar uma política de massas, engendrou a conscrição militar nacional, o exército de massas e a mobilização militar da sociedade, adquirindo uma imensa capacidade de, pelo uso da força armada, revolver a Europa toda. No essencial, no longo período das guerras da Revolução e napoleónicas, o homem, dotado de vontade própria, e a massa foram o elemento fulcral da totalização da guerra nesse período. Por isso, para os Estado monárquicos, a criação de uma nação de cidadãos, dotados de vontade para serviram nos exércitos nacionais se tornou um elemento crucial da política de Estado e da estratégia nacional. Tome-se como exemplo o caso da Prússia, esmagada em 1806. O historiador Peter Paret observa que o desafio cognitivo da guerra, implicou a recriação do Estado monárquico prussiano, assimilando a nova figura do cidadão, consciente da sua afinidade com a Nação e dotado de vontade em servir um exército revigorado por reformas que o incluíam e se alicerçavam numa cultura de conhecimento e mérito.[7]

Eis como, considerando as condições coevas, a natureza das possibilidades de entendimento da realidade da época e de inteligibilidade do que se entende por guerra, se pode observar que conflagrações existenciais tendem à totalização da lógica beligerante, e quanto mais vitais, mais se elevam necessariamente a uma integralidade radical na edificação da porfia. As formas distintas respondem a realidades próprias, mas a natureza da conflitualidade bélica, tende, necessariamente a ascender aos extremos[8], ou por outras palavras, a tender à totalização, esta sempre condicionada por fatores culturais e económico-sociais, não obstante estes constrangimentos jamais, a não ser em situações de estrita impossibilidade, obviam a tendência natural de totalização.

Duas observações têm de ser acrescentadas ao que até agora foi afirmado. Uma relaciona-se com a ideia de totalidade, ao conceito de total e ao seu significado. A outra com a natureza limiar da guerra, como esta se afirmar como um espaço e um tempo de extremização, a ideia de “ultima ratio regis/regum" uma velha locução latina que espelha bem este prisma, que pode alcançar limites inimagináveis, porque radicalmente extremos, na realidade e na vida. 

O conceito total tem origem no latim, “totalis", remetendo para a ideia de completo e inteiro, aparecendo na língua portuguesa, refere o Dicionário Houaiss, no século XV, com o sentido que lhe dava a língua latina.[9] Um dicionário etimológico de língua inglesa refere que a palavra, em inglês, tem origem na língua francesa, no século XIV, que foi recuperá-la do latim. Como com o português, o significado original referia-se a algo completo ou inteiro.[10] Outros termos com ele relacionados e hoje de frequente uso são porém muito mais recentes, avisa o Dicionário Houaiss, “totalidade", “a condição de integralidade ou universalidade", de 1813 e “totalização", “ato ou efeito de perfazer um todo", de “totalizar", termo este que se utilizou e utilizará com frequência, apenas de 1881, em pleno período da Revolução Industrial.[11] Na língua inglesa, assim afirma o dicionário etimológico já referenciado, expressões similares ao português “totalidade" datam igualmente do século XIX, 1818, “Totaled; totaling. In the sense of "make into a total".[12] Há uma distinção fundamental entre a ideia de total e a noção de totalidade ou totalização. A primeiro pressupõem unicamente o completo, o inteiro, na realidade, o que está completamente formado. As segundas conceções, pelo contrário, assumem não o completo, mas o que pode ser completado, não o inteiro, à partida, mas aquele que se vai edificando até se tornar inteiro. Na realidade, a totalidade e a totalização remetem para a conceção de um sistema. Totalidade ou totalização pressupõem níveis de integração e de completamento virtuais, potenciais, assumem a possibilidade de uma mais vasta abrangência e integralidade, no devir, num horizonte futuro. É esta ideia que viabiliza a conceção de uma “Estratégia total e integral", esta estratégia pressupõe na realidade que a totalização se configura no futuro, ela não existe no presente, mas edifica-se, engendrando-se, de um presente fragmentado, ou mais provavelmente, segmentado, que num processo de conjugação e de convergência, funde uma ação total, num futuro, o mais previsível possível, e torna o seu ator, capaz de sobrepujar a resistência que um oponente lhe opõe. Se esta visão está correta, seria impensável pensar-se uma “estratégia", de este cariz, no século XVII, em que predominaria uma inteligibilidade marcada por uma razoável dose de fragmentação, de impossibilidade de pensar uma edificação da integralidade.

Não obstante, um elemento, mitiga esta leitura sobre a ideia de totalidade – elemento, na verdade uma realidade, quase que imperativa, que, pela sua dimensão e dinâmica, forja, mesmo numa inteligibilidade fragmentada, um percurso de uma totalização. A guerra, como limiar, como fronteira, como raia ou estrema, entre duas realidades extremadas, edifica, uma dinâmica limite, de totalização, que de algum modo atravessa a vida humana e a sua história. Com efeito, a guerra põe em diálogo e em dialética a vida e a morte. Se, como parece indicar Giorgio Agamben, a linguagem nasce para nos fazer confrontar com a morte e saber aprender a morrer,[13] pode-se dizer que a guerra é outra forma de nos confrontar com a morte, e sabendo manipulá-la, a transformar em vida, num incessante diálogo, em que a dimensão abissal dialoga com a medida vital. A guerra é um extraordinário exercício de diálogo entre o abissal e o vital. Por isso, nesta dinâmica entre a abissalidade e a vitalidade, se forja um processo de totalização, tendendo a uma convergência, mesmo que fragmentária, de múltiplos elemento de reação. É neste sentido, que lendo a Guerra da Restauração, nos podemos aproximar de uma ideia de “Estratégia total e integral", muito incipiente, quiçá, mesmo, puramente estocástica, mas que no seu fundo mais profundo, reflete a natureza totalizadora da guerra e o modo como as sociedades, para a confrontar, tendem a convergir de alguma forma os esforços para lhe reagir. 

2. A Guerra da Restauração – Uma “Paleta" de Instrumentos “Bélicos"

António Cruz, na obra referenciada, em que equipara o levantamento das armas da Guerra da Restauração à “mobilização total" das guerras mundiais, propõe então, apresentá-la ao público, essa epopeia, em oito retalhos. Afirma o autor, que ao invés de fazer um estudo sobre esses vinte e oito anos de história, optou por selecionar alguns episódios, no seu conjunto vão muito para além da estrita dimensão castrense. O primeiro dedica-se à reação às tensões decorrentes da inserção de Portugal na Monarquia dos Áustrias e à vontade de independência do coletivo nacional que se consuma na Aclamação de D. João IV. O segundo, sobre a Aclamação e a legitimação política de D. João IV, nas Cortes de janeiro de 1641, ambos os capítulos com o cunho de afirmar, ao modo da época em que são escritos, a dimensão nacionalista desse processo. O terceiro capítulo trata da figura de D. João IV, o que hoje denominaríamos da liderança. O quarto capítulo, da reação e do papel da Igreja, em prol de Portugal, essencialmente centrado na Igreja do Porto. O quinto capítulo, o da ação militar, focando essencialmente a Batalha das Linhas de Elvas. O sexto capítulo, curiosamente intitulado, a “Guerra de Além-Fronteiras" lida com a diplomacia, na figura do Embaixador Sousa Coutinho. O sétimo capítulo alude aos portugueses que, estando no estrangeiro a 1 de dezembro de 1640, se esforçaram por retornar ao país para participar na luta pela independência de Portugal, de algum modo retornando a alguns aspetos da ação castrense. O último capítulo fala dos que traíram a pátria. O interessante deste pequeno volume, feitos de quadros fragmentários, sobre a Guerra da Restauração, é o seu amplo apanhado de atos, ações e personagens. A guerra não se reduz ao combate bélico estrito, da luta participam a religião, a diplomacia, a economia, a política, sempre presente e que atravessa todo o livro e as suas personagens, em geral grandes figuras da época. A guerra exposta na obra de António Cruz é uma vasta paleta, de fragmentos, que se interligam, às vezes, de combinações, de inter-relacionamentos, internos e externos, em suma, de uma atividade que está para lá do lado estritamente bélico.[14] Como o autor não pretende teorizar sobre a natureza da guerra, na realidade, nem demonstrar tese que não seja a postura nacionalista dos Restauradores de 1640, o seu breve volume evidencia a imperatividade de olhar a luta pela independência nacional na Guerra de Restauração de uma forma ampla e mais vasta que o simples jogo militar, mesmo este, também dotada das suas especificidades.

Na realidade, as primeiras ações, os primeiros atos do primeiro monarca da dinastia de Bragança foi a de reforjar e reconstituir o Estado, com óbvio enfoque na criação de um instrumento armado e numa política de guerra. Uma nova arquitetura do Estado surge quase imediatamente, os Conselhos de Estado, uma tendência a criação de uma administração para a gestão do aparelho estatal, ainda muito incipiente. O Conselho de Guerra, o primeiro e mais relevante desses órgãos, surge logo a 11 de dezembro de 1640, se bem que o seu regimento só apareça em 1643, para organizar a guerra; o Conselho de Guerra seria um desdobramento do Conselho de Estado, órgão máximo na época, sede e sinal de predomínio da elite nobiliárquica na condução e gestão do Estado; a Junta das Fronteiras, fundamental, dado o papel relevantíssimo da fortificação na arte e na gestão da guerra de seiscentos, é também criada imediatamente a seguir à Aclamação, e a Aula de Esquadria e Artilharia, criada no Paço da Ribeira em 1641, que daria mais tarde lugar a “Aula de Fortificação e Arquitetura Militar" (1647), antepassado longínquo da atual Academia Militar, e um espelho da introdução da ciência na arte bélica. O Conselho Ultramarino (1642); para assegurar o domínio do mar, o comércio e a guerra naval (essencial à fazenda, às finanças); (a relevância do ultramar, mas também da guerra na ação mercantil); A Junta dos Três Estados (1643), elemento essencial ao financiamento a guerra, superintendendo na cobrança e gestão de tributos; e que composta pelos três estamentos da sociedade asseguraria a legitimidade do Estado em adquirir recursos internos para alimentar o esforço de guerra.[15]

O historiador Fernando Dores Costa observa que a modalidade de governação por Conselhos representa uma inovação na forma de administrar o Estado.[16] Na realidade, aquilo que caracteriza estas novas estruturas da monarquia é a sua natureza e lógica administrativa e burocrática, o Estado deixando de operar apenas no tempo da excecionalidade, para passar a uma gestão do quotidiano; fenómeno muito incipiente, mas que prefigura a criação do aparelho político-administrativo contemporâneo. A gestão da Guerra e do seu aparelho militar, a diplomacia, com a sua gestão mais ou menos permanente das relações entre entidades ditas soberanas, a garantia de um fluxo de recursos mais ou menos previsíveis que alimentem a máquina da guerra, tudo convida a uma continuidade da ação do aparelho estatal, que lhe assegure as condições da sua perdurabilidade. Os Conselhos de Estado refletem essa necessidade a que a guerra dá uma certa imperatividade. 

No que respeita à guerra, dois instrumentos da sua gestão tornam-se fundamentais, um clássico, o aparelho da força militar, ao qual se junta um muitíssimo novo na sua configuração, a diplomacia e os diplomatas, em representação permanente do soberano. 

A organização do Exército é fundamental, para o qual se recupera as ordenações militares de D. Sebastião, arquitetando-se um aparelho bélico em três níveis: O Exército de Linha, os Terços Auxiliares e as Companhias de Ordenanças. O território é organizado em regiões militares, sob a direção de Governadores de Armas. É tradição da história da Restauração de Portugal salientar a criação de um Exército de Linha de 20.000 infantes e 4000 cavaleiros. Não obstante, Fernando Dores Costa observa a imprescindibilidade de considerar as Cortes como elemento axial da legitimidade política da criação e organização do exército, ora as Cortes de 1646 reduzem essa força a 16.000 infantes e 4000 cavaleiros.  Para a ligação e a defesa e do fluxo comercial entre a metrópole e o ultramar é criada a “Junta da Companhia do Comércio do Brasil", mas tarde, “Companhia Geral de Comércio" para o Estado do Brasil (1649), a qual deveria manter duas esquadras permanentes de 18 navios de guerra cada uma, num total de 36 navios, assegurando o comércio e a proteção da navegação entre a metrópole e a colónia.[17]

A organização do Exército permite igualmente uma maior profissionalização do exército – a progressiva definição de uma hierarquia de comando, ao serviço do Estado Monárquico, nomeadamente na classificação e hierarquização dos postos de comando e da relação dos chefes com o centro do poder do Estado. O cargo de Condestável é substituído pelo de Capitão-General das Armas do Reino e o de Fronteiro-mor pelo de Governadores de Armas, sendo criados os cargos de Mestre de Campo General (aproximadamente a comandante de campanha, um comandante operacional, segundo as conceções contemporâneas) e de Tenente-General de Artilharia.[18] Estes novos postos de comando, no sentido mais atual de posto, são marcadamente mais profissionais que os anteriores que correspondiam a uma arquitetura castrense mas com uma dimensão marcadamente mais política e social, onde obviamente predominava a nobreza.

No outro espectro da linha está uma revolução europeia – a emergência da política externa – uma expressão do sistema de guerra europeu. Na realidade, a diplomacia europeia, quando se considera a representação permanente de um embaixador em terra alheia, numa corte distinta daquela a que ele pertencia, é um fenómeno recentíssimo na Europa de então. Os primeiros traços deste procedimento datariam do século XV em Itália e do Século XVI, no Ocidente da Europa, sendo Portugal um dos países pioneiros no processo. A historiador Ana Leal Faria afirma que no início do século XVI o “princípio da reciprocidade" entre Estados parecia ter sido adquirido em Portugal, Espanha, Inglaterra, Roma e França, criando-se a partir daí, uma rede de representações diplomáticas, durante esse século e o subsequente.[19]  A diplomacia torna-se uma nova arte do Estado Português. Na realidade o quadro global da Guerra da Restauração é particularmente feliz para a Aclamação de D. João IV e a luta que esta impõe à monarquia bragantina. 

Ela acontece, na realidade, e aproveita a vasta cornucópia de guerras que passaram à história como a “Guerra dos Trinta Anos", um composto de guerras, Intra Império (com a Dinamarca, com os Suecos, contra os exércitos imperiais – Habsburgos da Áustria e de Castela/Espanha), entre os Franceses e os Habsburgos espanhóis, estes também com a Casa de Orange, outros, que opuseram vários, muitos oponentes, nem sempre em simultâneo, às vezes, faseadamente, e que tiveram o epicentro no espaço alemão. A esses conflitos, outros se ajuntaram como a luta que opôs os portugueses e os holandeses, no Brasil, na Ásia (Ceilão, Indonésia, Macau, etc.), em África (Luanda), numa longuíssima disputa militar, colonial e comercial, e que há várias décadas o historiador C. R. Boxer afirmou que merecia bem mais a denominação de ser a “Primeira Guerra Mundial Europeia" que a própria, essa enorme matança fundamentalmente travada na Europa,[20]e que interage no seu termo com as guerras que confrontam holandeses e ingleses (as Guerras Anglo-Holandesas, 1652-1654; 1665-1667; …). Na realidade, o século XVII é um século de guerras e é um século fértil para o amadurecimento da diplomacia ao modo europeu. Três lógicas belígeras se inter-relacionam e interagem entre si; a) a questão da criação de um Estado Monárquico, expressando.se em conflitos internos – a nobreza/aristocracia/burguesia (?) face à monarquia (a Fronda em França, a guerra civil inglesa, 1640-1649; a própria Restauração Portuguesa, a revolta da Catalunha …); b) a problemática religiosa (político-religiosa) – os protestantismos contra o Catolicismo, e entre os protestantes; c) as rivalidades comerciais e coloniais, a disputa pela posse de territórios além-mar e pelo controlo de fluxos mercantis, guerra e comércio correlacionando-se, e refletindo-se na questão da “liberdade dos mares".[21] Como um paradoxo, as negociações políticas permanentes surgem como uma forma de resolução de conflitos, em suma, a guerra mobiliza a negociação política, estimula a dinâmica diplomática, acelera a criação de processos político-diplomáticos. 

D. João IV muito celeremente despacha para alguns países chave representantes nacionais, com vista a assegurar a sua confirmação como Rei de Portugal, e apoios externos que sustentam a luta pela independência nacional. A conjuntura internacional era claramente favorável à uma política diplomática ativa, considerando as condições da “Guerra dos 30 Anos" com as duas coroas austríacas empenhas numa multiplicidade de Frentes (Império, Flandres, Catalunha, França).[22] D. João IV enviou plenipotenciários a países que pudessem assegurar a sua legitimidade, em primeiro lugar, e o apoio, posteriormente, a Portugal, como sendo um Reino independente, com o rei próprio. Assim embaixadas foram enviadas à França, Holanda, Roma (um imenso fracasso dado o apoio do Papado à Monarquia Católica), Inglaterra, Dinamarca e Suécia. A receção das embaixadas pelos cortes de cada um desses países já era uma vitória, porquanto permitia afiançar um reconhecimento de facto do Rei D. João IV (o único falhanço foi com o Papado, que recusaria praticamente até ao termo da guerra em receber um enviado de Lisboa de forma oficial, mas recebeu, de forma não oficial o embaixador Francisco de Sousa Coutinho em 1655).[23] Não interessa a este breve estudo descrever e estudar de forma minuciosa o papel da diplomacia portuguesa na Guerra da Restauração, mas salientar o seu papel decisivo na conclusão do conflito. Nesse sentido é de observar a centralidade da França, como apoio decisivo a Portugal, na Guerra da Restauração, nomeadamente em suporte técnico-militar,[24] assim como a dimensão matrimonial a esta relação diplomática associada, com todo o seu carácter de legitimação da Monarquia Bragantina,[25] e o papel da Inglaterra, como mediador da paz, na fase final da conflagração, na realidade, com uma política de contenção, entre as ambições de Lisboa, entusiasmadas com as vitórias militares de 1663 (Ameixial) e 1665 (Montes Claros) e a ameaça francesa de extorquir a Flandres à Monarquia Católica. A resolução do conflito português, clarividentemente impossível de resolver favoravelmente a favor da Monarquia Católica, conjugado com a ameaça de Luís XIV às possessões que esta tinha na Flandres, e que não convinha à Inglaterra as cedesse aos franceses, levou a conclusão da paz em 1668, com o reconhecimento da Monarquia Bragantina e a independência de Portugal.[26]

A questão diplomática remete efetivamente para a problemáticas das alianças, e para a a integração de Portugal no sistema dito vestefaliano. Apesar do fracasso de integrar as conversações  que levaram aos acordos ditos de Vestefália, a Casa de Bragança assegurou desde muito cedo acesso a uma rede de relações diplomáticas que a fez ser um ator sério na edificação do sistema dito vestefaliano, sendo de particular relevância a relação criada com a França, que como todas as relações entre poderes soberanos tinha subtilezas, e situações de cinismo político, que apesar disso não impossibilitaram o apoio permanente francês à luta pela independência de Portugal, em boa medida porque estruturalmente nunca interessaria a política externa francesa o retorno à unidade ibérica. A intervenção inglesa na Guerra da Restauração é tardia, não desvaloriza a relevância francesa e apenas concorre para a paz, na exata medida em que a resolução da conflagração entre a Monarquia Bragantina e a Monarquia Católica permitia à primeira atingir em toda a plenitude o seu objetivo máximo, o reconhecimento, por parte da segunda, da legitimidade e do reconhecimento pleno da soberania dos Bragança e de seu Reino. Nesse sentido, dar valor a uma suposta relevância da aliança anglo-lusa, confundindo uma situação peculiar e temporalmente delimitada (século XVIII – primeira metade do Século XX), com uma realidade estruturante, pelo que respeita aos apoios da Inglaterra à Restauração Portuguesa, só contribui para alimentar o “mito" da aliança inglesa. 

A Restauração é igualmente um reforjar da identidade nacional, que passa por uma nova união dos grandes com os pequenos, e que se relaciona com o desejo de uma maior autonomia / independência nos destinos próprios do Reino. O reconhecimento da Restauração foi em geral aceite por todo o território continental de Portugal e pela maioria das possessões portuguesas espalhadas pelo globo.[27] Esta circunstância espelha uma forte aceitação da ideia de um rei próprio a governar o próprio reino. Na realidade, a distância a que a Monarquia Católica estava de Lisboa e de Portugal facilitava a acusação de esta ser tirânica, a que uma memória antiga de um rei próprio de uma dinastia própria provavelmente robustecia a vontade de os grandes (na realidade, uma nobreza média, a grande nobreza nacional estava agora sediada em Madrid) e de os pequenos em retornar a ter um rei português em Portugal.[28] Obviamente, o apelo a D. João IV para liderar a rebelião e a Restauração do Reino impunha-lhe igualmente um refazer do “contrato" que ligava ao rei aos seus súbditos, nunca esquecendo que a sociedade da época, era composta de estamentos específicos. A “reinstituição de um Rei natural" pressupunha o termo de uma “diluição na indiferenciação comunitária" e para além da diferenciação comunitária que a independência pressupunha, assegurava igualmente uma distinção da nobreza dessa comunidade,[29] e correspondia como á época se dizia, a “uma libertação dos fidalgos.[30] A Restauração também é nesse sentido, um reforjar daquilo a que hoje denominaríamos de identidade nacional e neste processo de reestruturação um outro elemento da política de guerra deve ser introduzido, o dos sinais, numa época em que esses sinais carregavam ou não múltiplos auspícios, na medida em que a sociedade cria no papel quotidiano das forças sobrenaturais.[31]

Assim sendo ganha todo o sentido a outorga da Coroa de Portugal a Nossa Senhora da Conceição: “Estando os procuradores dos Povos, e estados do reino juntos, quis el Rei celebrar, nas solenes Cortes em que jurassem todos […] a Senhora da Conceição por Protectora do Reino, e que fôra concebida sem mácula alguma de pecado original no primeiro instante de seu ser, para o que se juntaram a tarde 25 de março de 1646 na Capela Real estando com todo o ornato devido; pelo que mandou el Rei pôr às portas da cidade de Lisboa pedras com título e escritura que declara este juramento".[32]

A consagração pública, em plenas cortes e com todos os seus representantes presentes demonstra a solenidade e a relevância com que se acolheu o reino à proteção da “Mãe de Cristo" e que tipo de juramento solene o produziu. Não se trata de uma mera adjuntiva psicológica, mas de uma entrega que tanto contém de simbólico, como daquilo a que hoje definimos como psicológico, como, indo muito mais além, de uma realidade material e materializável a que sociedades envolvidas pela sobrenaturalidade dão realidade concreta. Naturalmente, observando o valor dos símbolos nas sociedades sobrenaturais, o papel da divulgação daquilo que se considera verdadeiro e justifica e legitima a ação política é igualmente de relevo. A Monarquia Portuguesa não se coibiu e promoveu igualmente a divulgação das suas razões Europa fora, em textos de variada índole, que legitimavam e afirmavam a razão verdadeira da Restauração Portuguesa, naquilo a que hoje chamar-se-ia de propaganda.[33]

A paleta de instrumentos com que o poder restaurador de Portugal prosseguiu a luta pela independência de Portugal, como se observa, é ampla, e consubstancia aquilo a que hoje se denominaria de “Estratégia total e integral". Na realidade, para além do tradicional uso da força armada, os monarcas da dinastia bragantina mobilizaram outros instrumentos, como a recém inventada rede diplomática, de representantes de uma Estado, permanentemente sediados no país de reciprocidade, a economia (conceito inexistente tal o qual o conhecemos hoje), na preocupação com a sustentabilidade financeira da guerra, a religião, como instrumento de legitimidade, mas também de proteção da comunidade, e a propaganda, interna e externa. Não obstante, seria estultícia afirmar Ipsis Litteris a aplicação de uma “Estratégia total e integral". O que aqui se afirma é que a natureza totalizante da guerra tende a configurar, em todas as circunstâncias, a mobilização dos instrumentos à disposição dos atores e que eles deles tenham cognoscência e os possam aplicar à luta. Nesse sentido, existe uma tendência à elaboração de uma ação mais integral que na contemporaneidade, sim, criou uma inteligibilidade suficientemente complexa para engendrar a conceção de uma “Estratégia total ou integral". Todavia, sendo a história uma interpretação com o conhecimento do presente sobre o passado, não se pode deixar de observar que no que concerne à Guerra da Restauração, a Monarquia Portuguesa, desenvolveu um conjunto de ações diferenciadas e de carácter amplo para alcançar, na sua plenitude, os objetivos propostos para a contenda, a independência de Portugal e o seu reconhecimento pelo seu oponente e pelos soberanos da Europa, e nesse sentido é talvez relevante reconhecer que pese toda a distância que nos separa dessa época, em termos de inteligibilidade, houve algo, que se pode aproximar de uma “Estratégia total e integral", numa lógica mais visceral e inerente, não ciente, a conduzir a porfia. 

3. Constrangimentos à Paleta de Modos de Ação Bélicos em Seiscentos

A Guerra da Restauração, sendo uma guerra, ou seja, uma luta bélica, deve ser por aqui que se deve começar a ponderar os constrangimentos à paleta de modos de ação. António Cruz diz que: “Reviveu El Rei D. João IV o conceito de Nação Armada. Para isso bastou-lhe restaurar a orgânica das Companhias de Ordenança de D. Sebastião. Essas correspondiam à tradição nacional: vinham do tempo que em tropas dos concelhos acompanhava o monarca nos fossados em certos dias medievos da génese da Nacionalidade (…)."[34]

Há aqui uma certa razão de ser, havia uma certa tradição de levantamento comunitário na forma como a guerra medieval era feita em Portugal e como esse hábito teria perdurado nas leis sebásticas de mobilização da sociedade para as armas. 

É, contudo, lograr grandemente em erro ver nas ordenanças sebásticas um equivalente a conscrição nacional do século XIX e XX. Por tradição, as comunidades tinham moldes de autodefesa local, em toda a Europa, e na Península, pela tradição da reconquista e depois com a criação do “império ultramarino", mas essas forças assim organizadas não compunham um sistema de conscrição generalizado e eram fundamentalmente “milícias" de defesa local, a que as dificuldades de mobilização de uma força regular, impunha recorrer com frequência para aumentar os efetivos necessários a cada campanha. As ordenanças e as milícias eram essencialmente forças localmente mobilizadas e tendo por fito, no essencial, a proteção do território onde habitavam, mas as necessidades de recursos humanos para o exército de linha e a proximidade de certas povoações à zona de campanha facilitava a sua incorporação no exército profissional de campanha. Não obstante, mesmo com esta possibilidade de mobilização local, o efetivo foi sempre bem menor do que o previsto e a proporção de desertores, massiva, cerca de 30 % dos efetivos. Ainda assim este modelo adequava-se ao tipo de guerra que Portugal travava com a Monarquia Católica, e na realidade era similar aquele que se encontrava nos campos de batalha europeus à época.[35] Acresce a tensão que se produzia entre a mobilização e o trabalho agrícola, a relação dos poderes militares com as administrações das Câmaras locais, a arbitrariedade que a necessidade e a lógica estamental inseriam nas mecânicas da mobilização.[36]

Na realidade a Guerra da Restauração pode ser dividida em três períodos, o primeiro entre 1643 e 1647/48 vê ações ofensivas portuguesas de pequena dimensão adentrar-se em território inimigo na raia, por iniciativa própria ou em reação a também pequenas ofensivas inimigas mobilizando uns quantos milhares de efetivos; de 1648 a 1657, a guerra reduz-se no essencial a incursões, de parte a parte, na raia, em geral sobre a forma de “entradas",  na sua grande maioria com base em forças de cavalaria, muito similares às razias medievas ou aos “raids" da literatura tática portuguesa da 1ª metade do século XX; depois de 1657, com a perspetiva, primeiro, e depois, com o termo da guerra entre a Monarquia Católica e a Monarquia Cristianíssima, temos então um período de “grandes campanhas" que começam com  sucesso da tomada de Olivença em 1657 por forças dos Habsburgos espanhóis. Esta fase corresponde, subsequentemente, à contraofensiva portuguesa, fracassada, no assalto à Badajoz, e na sua sequela, o assédio a Elvas, no inverno de 1658-1659 e que termina com a Batalha das Linhas de Elvas, a libertação da praça e a derrocada militar hispano-austríaca. A estes eventos, suceder-se-ão mais duas campanhas, que começam com invasões pelo exército da Monarquia Católica, aqui, sim, verdadeiramente, uma invasão, e termina com a vitoriosa reação portuguesa, nas batalhas do Ameixial (1663) e de Montes Claros (1665). Esta visão geral não impede que aqui e ali, ao longo da raia, não se travam, pontualmente, combates, em geral de pequena ou muito pequena escala. Localmente interessantes, não tem na verdade, grande relevância. A guerra tem assim um carácter, na realidade pontual, primeiro, pela sua típica sazonalidade – guerreia-se em tempos de clima ameno – na primavera ou no outono e só excecionalmente a guerra escapa e estes pressupostos, mas igualmente, porque a disponibilidade de meios materiais e humanos é muito limitada e em consequência, há um desbaratar de meios em operações militares muito agressivas, como o assédio de Elvas ou as duas invasões de 1663 e 1665, que terminando em ambos os casos em derrota, fazem completamente colapsar as armas hispânicas. É por isso que em 28 anos de guerra, na realidade, o número de ações militares de alguma envergadura é muitíssimo limitado. A guerra é longa, mas pode-se afirmar, dirão os estudiosos mais atentos, que durante o período, uma lenta lentidão, uma morosidade pasmosa, parece acompanhar a Guerra da Restauração, um tempo parado, muito intermitentemente excitado por curtas fases de pugnacidade e intensificação.[37]

É o momento para ir mais longe, muito mais profundamente, para lá da narrativa, entrar em dimensões estruturantes da realidade histórica da época, por forma a tornar mais inteligível os constrangimentos imensos que condicionavam extraordinariamente qualquer fórmula de integração das políticas de guerra. Elas podiam interligar-se, mas dificilmente combinar-se e ainda mais integrar-se. 

Este é um mundo vazio. Em 1640 Portugal continental, calcula-se, teria entre um milhão e duzentos mil habitantes a um milhão e novecentos mil, a dois milhões de habitantes. Os historiadores e os demógrafos não conseguem calcular com precisão a população, os dados de que dispõem são esparsos e pouco concretos. Na realidade, a avaliação da população é elaborada no essencial com base nos fogos que listas de tributação coevas numeram e a partir daqui, através de uma presunção do número médio de habitantes por fogo se chega à população de Portugal, o total final depende da mediana, que varia com os pressupostos que calculam a totalidade dos habitantes de cada fogo. É preciso dizer igualmente que há dados que indicam um declínio demográfico entre 1620 e 1640, o ano em que se atinge o pico da queda, com efeito, em 1620 haveria cerca de 475.000 fogos, na data posterior, apenas cerca de 466.000. Assim, sendo, e jogando com uma média, também, Portugal teria talvez mais provavelmente um milhão e meio de habitantes.[38] A Monarquia Católica, por sua vez, teria ao longo do século XVII, passado de seis milhões a oito milhões de habitantes, não obstante com momentos de declínio demográfico, fruto de anos de má colheitas agrícolas e do retorno de pestilências com especial destaque para a Peste Atlântica, sofrendo ainda os efeitos da expulsão de 300.000 mouriscos no século XVI, a que se junta o impacto severo das múltiplas guerras que luta pela hegemonia na Europa lhe impôs.[39] Quer Portugal, quer a Espanha eram espaços vazios com um limitado recurso de homens disponíveis para a guerra. O historiador Azar Gat nota que nas civilizações rurais e pré-industriais, o número de habitantes que em média podia ser contabilizado para servir a força bélica, rondava habitualmente o um por cento, sendo que em casos excecionais poder-se-ia alcançar os dois por cento. E dá como exemplo, números, que vão desde o Império Romano a Luís XIV.[40] Se este autor está correto, o potencial mobilizável por Portugal, na metrópole, ficar-se-ia pelos 15.000 a 30.000 combatentes, e que na verdade condiz mais ou menos com o que sucedeu. Com um potencial de meios humanos para o exército muito limitado é óbvio que havia um constrangimento elevadíssimo nas operações militares que se poderiam fazer e no ritmo que as campanhas militares podiam engendrar. Uma grande campanha, mesmo vitoriosa, esgotaria facilmente todos os recursos disponíveis, e a sua exploração, como hoje se diria, “estratégica" seria sempre muitíssimo limitada, assentando no essencial no sucesso que esta significava politicamente. Na realidade, os sucessos de armas de maior vulto, quer espanhóis (Tomada de Olivença, defesa de Badajoz), quer os portugueses (Batalhas das Linhas de Elvas, Ameixial e Montes Claros), raramente exploravam de forma “estratégico-militar" o sucesso, e quando o faziam, faziam-no de forma muito limitada. 

Se o mundo era vazio, de um ponto de vista demográfico, também era por haver uma limitadíssima capacidade de circulação, criando um mundo muitíssimo distante. No Porto soube-se da Aclamação, por um próprio que trouxe a notícia, a 6 de dezembro, e finalmente, por carta de Lisboa, dos Governadores do Reino, a 8 de dezembro, quase uma ou mais de semana depois do acontecimento.[41] Madrid ficou “pasmada" a 7 de dezembro quando as notícias vindas de Lisboa informaram da Aclamação e da instituição de um Rei no Reino de Portugal.[42] As distâncias, em seiscentos eram colossais, dando muito liberdade de ação às comunidades locais face ao centro, principalmente se este era bastante distante das periferias. Esta realidade também significada que a vida se movia com uma outra lentidão, própria de sociedades onde a circulação de comunicações e a capacidade de rapidamente transmitir indicações, ou mais ainda, ordens, tomava muito tempo ou era impossível. Ana Leal Faria refere que a correspondência entre os embaixadores e plenipotenciários portugueses e o monarca e sua administração demorava em média entre quarenta a quarenta e dois dias e dois meses, de viagem. O contrário, diz, acontecia também, por exemplo, entre a embaixada francesa e Paris.[43] Os representantes diplomáticos recebiam instruções gerais, com alguns pontos enquadrantes fundamentais, mas tinham, como não podia deixar grande latitude na gestão da política externa do país que representavam, e capacidade de iniciativa, tendo por isso, de ser, dentro do possível, indivíduos de elevada confiança dos monarcas e da administração central do reino.[44] Era impossível ir mais longe na delineação de uma missão diplomática, ir além de orientação muitos gerais, de enquadrantes muito genéricos. Qualquer ideia de integração das políticas diplomáticas e militares eram impossíveis, a não ser de uma forma muito genérica. 

Situação muito semelhante acontecia com os comandantes chefes do exército. Pese as campanhas se processarem na raia, a distância entre Lisboa e a fronteira alentejana eram relativamente longas, sendo que para outras partes do país, como o Minho, a distância se alongava muito mais, não permitindo um fluxo de ordens e outras formas de indicação imediatas. De Lisboa seguiam orientações gerais, que depois os comandantes em chefe e os conselhos de guerra (militares) transformação em ações operacionais, como hoje se diria. Havia, como com os representantes diplomáticos, uma mais vasta latitude na tomada de decisões. Um caso típico deste modo de agir aconteceu aquando do assédio castelhano de Elvas, aquando da nomeação do D. Luís António de Meneses, Conde de Cantanhede, como Governador de Armas do Alentejo, tendo por grande experiência militar o ter sido Vedor da Fazenda, dotado de experiência organizacional. Efetivamente, chegado a Extremoz, soube pôr-se nas mãos do mais considerado cabo de guerra português, presente no Alentejo, André de Albuquerque Ribafria, colocando-o do seu lado, para transformar as orientações reais (da Regente, a Duquesa de Mântua), abastecer e dar socorro a Elvas, assediada, em uma ordem operacional. O autor destas linhas, numa obra publicada sobre a Batalha das Linhas de Elvas, seguiu a ideia historicamente transmitida de que o exército português do Conde de Cantanhede, mobilizado com os mais díspares recursos, incluindo um elevado número de tropa pouco preparada de ordenanças e milícias, marchou sobre Elvas para a libertar do cerco, tal e qual, as cartas enviadas a seguir à batalha pelo Governador de Armas e pelo Governador da Praça de Elvas, D. Sancho Manuel, futuro Conde de Vila Flor, davam a entender à Rainha os havidos acontecimentos e a historiografia futura assim os promoveu. Na verdade, atualmente, o autor destas linhas tem a convicção de que o exército de socorro, que transportava consigo 2.000 cabeças de gado, visava unicamente criar uma brecha para abastecer a praça de Elvas, para que este pudesse suster por mais tempo o cerco, e que foi a violência do golpe assestado, quase de surpresa, e a desintegração das forças assediantes, que modificaram a circunstância da ação bélica portuguesa. E sendo o resultado uma vitória estrondosa, os chefes militares portugueses, ambos nobres, delinearam a história, para melhor se valorizarem face à Rainha Regente e assim essa história passou e subsequentemente foi alimentada por uma historiografia marcada por um forte sentimento nacionalista e pela ideia napoleónica da batalha decisiva.[45]

A historiadora Joana Maria Fraga estuda na sua dissertação o modo como D. João IV e a Casa de Bragança, como a nova dinastia reinante em Portugal, procurou se apresentar, se promover e assegurar a sua legitimidade na Europa e em Portugal. Para isso, a historiadora utilizou 87 imagens – gravuras e pinturas – produzidas entre 1640 e 1668, sendo que as gravuras estão inseridas em livros ou em coleções existentes em arquivos e bibliotecas.[46] Algumas destas gravuras podem ter mais do que uma cópia, como acontece com uma gravura alemã (ou holandesa) que descreve, por imagens e texto, o derrube do governo filipino em Lisboa e a Aclamação de D. João IV.[47] Para o que aqui se discute, e considerando que pode acontecer que nem todas as fontes existentes tenham sido mobilizados para o estudo de Joana Maria Fraga, o número de material disponível é extraordinariamente baixo para uma “estratégia", assim hoje de diria, de propaganda internacional, mesmo considerando que estas pinturas e gravuras eram feitas para uma elite política (e social), eram apresentadas a um público limitado, aquele que era alfabetizado, o que na Europa, no século XVII, seria ainda bastante reduzido. Esta afirmação não pretende afiançar que esta propaganda não teria impacto, decerto que tinha, mas de que num tempo de circulação lenta e distâncias longas, e populações reduzidas, haveria sempre imensas limitações ao seu efeito final. Ajudaria com certeza a promover lentamente uma ideia, a apresentar uma nova realidade, mas com a morosidade natural e a possibilidade de conhecer de uma era em que as distâncias eram gigantes. A capacidade de difundir mensagens em escala gigantesca era quase impossível no século XVII, uma lógica de massas não só impensável para as sociedades coevas, como tecnicamente inexequível. A difusão de informação era à época demasiado lenta, para poder ter efeitos “politico-estratégicos" decisivos. 

E, todavia, os homens de Estado da Restauração procuraram agir em vários tabuleiros, utilizar uma paleta de meios mais vasta que o simples manuseio de uma força armada para salvaguardar a posse de um país de que se consideravam os verdadeiros detentores. Para além da guerra, usaram de forma célere, quase imediata à Aclamação, a diplomacia, arte muito nova à época, procurando legitimar a sua causa, mobilizando ideias, através de mecanismo que hoje denominamos de propaganda, visaram por ao seu serviço o país e o povo que nela vivia, através da sua mobilização como protetores das suas terras e como combatentes do exército real, mas também tributando-o, com justificação e legitimidade, em princípio com a sua autorização (através das reuniões das Cortes), de forma a financiar as armas nacionais. Neste molde, poder-se-ia falar de uma efetiva “Estratégia total e integral", a combinação de meios para atingir os fins políticos da guerra. Não obstante, se a ideia de combinação estava presente, a sua integração e a capacidade de fazer convergir essa combinação num todo era impossível. O espaço e o tempo eram demasiado longos e extensos para que uma qualquer integração fosse viável. Simplesmente, a distância que a lentidão da circulação criava inibia uma qualquer integração da ação, os acontecimentos num dado sítio, estavam imensamente separados dos eventos em outro local, que estivesse minimamente distante do primeiro – o que significava na realidade todo o espaço que não estivesse acessível a contacto efetivo de duas pessoas em trecho curto. Assim, os representantes diplomáticos tinham de avaliar o que fazer ou dizer em acordo com umas instruções gerais que lhes eram dadas à partida e com alguma outra que, entretanto, fosse chegando ao fim de semanas e meses de viagem. Os chefes militares, de igual modo, agiam segundo algumas orientações que lhes tinham sido transmitidas à partida da sede do poder em Lisboa, sendo quase impossível combinar ações, para além de umas vagas instruções, entre Elvas e Valença, dadas as distâncias. O mundo do século XVII era um espaço fragmentando, de espaços ensimesmados em redor de si próprios. 

Era plausível entender que a política de guerra deveria combinar várias ações em vários tabuleiros. Era inviável integrar essas ações, combinando-os de forma a criar uma lógica sinergética.  A guerra impõe a mobilização de um compósito de meios, estimula uma totalização – e nesse sentido, a Guerra da Restauração levou a Casa de Bragança a mobilizar todos os meios de que tinha consciência, para assegurar a sua perdurabilidade na governação e administração do Reino de Portugal. Mas uma integração dos meios numa estratégia mais convergente era-lhes inviável. As condições materiais, infra-estruturais, vedavam-lhes essa possibilidade e assim sendo, também tornavam ininteligível qualquer conceção de totalidade que estimulasse o raciocínio a pensar um modelo concetual de “Estratégia total e integral". Se se pode defender que Portugal aplicou uma “Estratégia total e integral" é apenas, quiçá, como uma metáfora da forma como a totalização da guerra impôs à Monarquia Bragantina uma paleta de ações, visando atingir o objetivo de assegurando o reino para a dinastia, assegurar para Portugal a sua independência. 

Conclusão

Os estrategos da Guerra da Restauração terão desenvolvido uma “Estratégia total e integral"? Ou uma “Estratégia total e integral" é um prisma anacrónico em qualquer leitura em que se disseca a Guerra da Restauração? A história estuda o passado, mas com a linguagem do tempo em que ele escreve. Nenhum historiador, por mais devotado que seja a uma história dominada pelo contexto da época, pela sensibilidade coeva, escreve a história na língua desses tempos. O historiador narra segundo os cânones do presente, ou nos que mais longe levam a inovação, com a linguagem do futuro. Nesse sentido a história do passado e a interpretação do advir histórico deve ler-se com as ferramentas do presente e aquelas mesmo que o presente cria no seu trilho para o futuro. Assim sendo, aplicar a ideia de estratégia ao passado, salvaguarda as devidas precauções com o conceito, não é absurda para uma interpretação de como as sociedades responderam aos seus inimigos. Nesse sentido, as duas questões postas merecem uma resposta, que não sendo definitiva permite tornar mais inteligível, nas suas subtilezas, a ação política e militar do Estado monárquico bragantino à época e simultaneamente, avançar na compreensão das dinâmicas belígeras da época e das atuais, que se encontram em todos os estudos relativos ao passado. O estudo do passado visa responder às questões do presente que apontam ao futuro. 

Toda a guerra aponta a uma totalização, fenómeno enxertado na ascensão aos extremos que caracteriza todo o combate bélico. Essa totalização brota da natureza limiar da guerra, uma fronteira entre a vida e a morte, o passado e o futuro, a vital e o abissal, o cognoscível e o incognoscível. Esse limiar apocalítico convida à máxima mobilização do humano, na sua sensibilidade e na sua racionalidade, na sua crença e no seu entendimento, em suma convida à totalização, a fazer convergir toda a sua entidade para a luta, mobilizando todo o seu ser, ascendendo a novas formas de ação, a totalizar toda a energia na defrontação. Esta totalização é visceral à guerra e em todas as sociedades, de uma forma ou de outra, tenham a capacidade de entender ou de não entender a ideia de totalização (o conceito, de acordo, com alguns dicionários, nasce no século XIX), está presente e atuante em todas as formas de digladiação. A “Estratégia total e integral" é a expressão contemporânea, ou uma das formas, como a totalização da digladiação se exprime e se exprimiu no século XX. 

Neste sentido, há como que sempre, uma espécie de forma “estratégica total e integral" em todas as guerras, principalmente naquelas que adquirem um carácter existencial. E em consequência dessa realidade, os atores envolvidos, principalmente aqueles sobre o qual cai o risco de deixarem de existir, tenderão a procurar mobilizar toda as suas fontes de poder e de energia – de que tenham consciência – para travar a luta em que estão envolvidos. 

A Monarquia Bragantina resultou de uma “rebelião" contra o monarca que à época reinava sobre o território reclamado como posse dinástica pelos braganças. É certo que o faziam contra o que clamavam ser uma tirania e que, por conseguinte, lhes legitimava a ação. Todavia, o debate da legitimidade do ato de tirar a um rei a posse de um reino era suficientemente arriscado para que os primeiros Bragança não sentissem sobre si o risco de uma definitiva punição. Para eles, a Guerra da Restauração era uma questão limiar – ganhando asseguravam um reino, e que reino à altura, perdendo, seria o termo definitivo da dinastia nobiliárquica. A Guerra da Restauração foi assim pela Monarquia Bragantina travada numa paleta com vários modos – militar, diplomático, propagandístico, religioso (hoje denominar-se-ia a esta parte da paleta como ideológica, mas é preciso ter em conta que a nossa civilização não tem nenhum sentido do sobrenatural que ainda movia as sociedades da Europa Moderna), económico-financeiro. Esta paleta exigia a mobilização da sociedade em prol da dinastia, a adesão dos súbditos e dos vassalos, que assegurasse as condições para sustentar a frente interna e externa da guerra, mas também a aquisição de apoios externos – em França, principalmente, nos Estados Gerais da Holanda, em Inglaterra, etc., - e tinha uma frente religiosa, por um lado, que a Igreja legitimasse internamente a dinastia, por outro lado, a frente externa do Papa que muito difícil foi de convencer. Neste sentido, e considerando a vastidão da paleta, poder-se-ia dizer que estávamos perante uma “Estratégia integral e total". 

A realidade histórica é, porém, mais complexa e as dinâmicas de totalização inerentes à guerra eram temperadas por um conjunto vasto de constrangimentos. A massa humana das sociedades era pequena, Portugal tinham provavelmente um milhão e meio de habitantes, a Monarquia Católica, cerca de seis a oito milhões, uma vastidão de territórios vazios, entre comunidades parcas e pouco habitadas. Acresce a circulação muito limitada, dadas as condições de transporte e movimento de pessoas e bens. Era um mundo lento, de grandes morosidades e de movimentações difíceis. A parca demografia condicionava exércitos e campanhas. Exércitos de pequenas dimensões só conseguiam, por muito boa vontade que tivessem, de fazer campanhas limitadas no território e de curta duração. Mesmo um vencedor numa batalha ou campanha tinha dificuldades em explorar estrategicamente o sucesso, dado o resultado, não poder ser bem aproveitado pelo seu próprio esgotamento, mesmo que o inimigo tivesse sofrido muito mais. As campanhas da Guerra da Restauração, aquelas com maior empenho de efetivos e sucesso bélico, em geral consumavam-se no próprio sucesso, não porque os comandos não soubessem explorá-lo, mas porque em geral estavam esgotados pelo seu próprio sucesso. A Guerra da Restauração prolonga-se por 28 anos, mas na realidade, muito provavelmente, a ação bélica em si, é muito mais curta em termos do tempo expendido. De igual modo, as representações diplomáticas, dada a demora com que conseguiam contactar o centro monárquico do poder, estavam de algum entregues a agir, com base em parcas instruções e orientações, ficando muito do que fazer à ponderação dos embaixadores. 

Qualquer capacidade de integrar uma “Estratégia total e integral" seria um verdadeiro milagre. A ideia de combinar uma paleta existia, mas a sua integração e correlação era inviável, os constrangimentos inibiam-na e por essa via também não facilitava uma cognoscência com alguma virtualidade holística. Era um mundo fragmentado, materialmente e inteligivelmente, um mundo ainda estocástico que impossibilitavam uma qualquer ideia de “Estratégia total e integral". Não obstante, a natureza totalizante excitava a tendência à mobilização de um todo e estimulavam o uso de uma paleta de ações variadas. Em suma, o historiador poderá dizer que não havendo literalmente uma “Estratégia total e integral", na realidade, de algum modo, uma incipiente lógica “estrutural" e visceral da “Estratégia total e integral" habitava a visão portuguesa da Guerra da Restauração.   

 

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NOTAS​

[1] Cruz, António, Portugal Restaurado, Porto, Livraria Civilização, 1940, (sem página). 

[2] Couto, Abel Cabral, “Posfácio", em Pensar a Estratégia: do Político-militar ao Empresarial, António Horta Fernandes e Francisco Abreu, Lisboa, Sílabo, 2004, p. 215.

[3] Beaufre, André, Introdução à Estratégia, Lisboa, Sílabo, 2004, p. 36. 

[4] Idem, pp. 43-45 e 57-58. 

[5] Para uma síntese, Duarte, António Paulo, “Estratégia e Guerra", em Barroso, Luís, Duarte, António Paulo e Ferreira, Pedro, Coord., e Org., Entender a Guerra Hoje. Estratégia, Guerra, Política, Lisboa, Guerra e Paz, 2024, pp. 189-207. 

[6] Hart, B. H. Liddell, Grandes Guerras da História, São Paulo, Ibraza, 1991 [1954], p. 406 e Hart, Liddell, H., Strategy. 2ª ed., London, Meridian Books, 1991[1954], p. 322. 

[7] Paret, Peter, The Cognitive Challenge of War, Prussia, 1806, Princeton e Oxford, Princeton University Press, 2009.

[8] O conceito de ascensão aos extremos deve-se a Clausewitz, mas é muitas vezes interpretado numa perspetiva estritamente negativa, como ascensão da destruição, o que seria em si absurdo, aporético, como é que a destruição em si, e por si, estritamente, se ampliaria e ascenderia? Na realidade, a ascensão aos extremos só é plausível, como Clausewitz observa, com um acréscimo contínuo de energia, ou seja, num processo igualmente edificador. Por isso a visão de que estamos perante um processo entre o vital e o abissal, radical, totalizador. Clausewitz, Carl Von, Da Guerra, Lisboa, Relógio d´Água Editores, 2022, pp. 24-27.

[9] Instituto António Houaiss de Lexicografia de Portugal, Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, Lisboa, Círculo de Leitores, Tomo VI, 2003, p. 3549. 

[10] Online Etymology Dictionary, “Total", Etymonline, in https://www.etymonline.com/word/total, consultado em 26 de maio de 2025.

[11] Instituto António Houaiss de Lexicografia de Portugal, Tomo VI, 2003, p. 3549.

[12] Online Etymology Dictionary, “Total", Etymonline, in https://www.etymonline.com/word/total, consultado em 26 de maio de 2025.

[13] Agamben, Giorgio, Ideia de Prosa, Lisboa, Cotovia, 1999, p. 126. 

[14] Cruz, António, Op. cit., passim. 

[15] Santo, Gabriel do Espírito, Restauração, 1640-1668, Lisboa, Quidnovi, 2008, pp. 36-37; Costa, Fernando Dores, Guerra da Restauração, 1640-1668, Lisboa, Livros Horizonte, 2004, pp. 24-28. Lousada, Abílio Pires, A Restauração Portuguesa de 1640. Diplomacia e Guerra na Europa do Século XVII, Porto, IESM e Fronteira do Caos Editores, 2012, pp. 185-190.

[16] Costa, Fernando Dores, Op. cit., p. 25. 

Idem, p. 34-37. 

[17] Serrão, Joaquim Veríssimo, História de Portugal. A Restauração e a Monarquia Absoluta (1640-1750), s/l), Editorial Verbo, (s/d), pp. 117-121, mais precisamente a p. 120 para o armamento da companhia. 

[18] Santo, Gabriel Espírito Santo, 2008, p. 37. 

[19] Faria, Ana Leal, Diplomacia Portuguesa, Organização da Atividade Diplomática Portuguesa da Restauração ao Liberalismo, Os Arquitetos da Paz, 2ª ed., Carnaxide, Tribuna da História, 2023, p. 77. 

[20] Boxer, C. R., O Império Colonial Português, 1415-1825, (s/l), Edições 70, (s/d), p. 117. 

[21] Sobre esta cornucópia de defrontações veja-se para uma síntese, Chandler, David G., Atlas of Military Strategy, The Art, Theory and Practice of War, 1618-1878, London, Arms and Armour, 2000 (1980), pp. 18-19 e 24-29. 

[22] Faria, Ana Leal, Op. cit., p. 77. 

[23] Idem, pp. 133 e ss. 

[24] Idem, Ibidem, pp. 138-139 e 146-148. 

[25] Fraga, Joana Maria Ribeirete de, Three Revolts in Images: Catalonia, Portugal and Naples (1640-1647), Dissertação de Doutoramento, Universidade de Barcelona, Departament D´Història Moderna, 2012-2013, [policopiado], p. 202. 

[26] Valladares, Rafael, La Rebelión de Portugal, 1640-1668. Guerra, conflicto y poderes en la monarquia hispánica, Junta de Castilla y León, 1998, pp. 170-220. 

[27] Valladares, Rafael, Op. cit., p. 33. 

[28] Idem, p. 26-30. 

[29] Costa, Fernando Dores, Op. cit, p. 15. 

[30] Idem, p. 16. 

[31] Idem, ibidem, p. 19. 

[32] Arquivo Nacional da Torre do Tombo, “Nossa Senhora da  Conceição  Padroeira de Portugal em documentos da Torre do Tombo", Exposições Virtuais, Nossa Senhora da Conceição, Padroeira de Portugal, em https://antt.dglab.gov.pt/exposicoes-virtuais-2/nossa-senhora-da-conceicao-padroeira-de-portugal/, consultado em 28 de maio de 2025.

[33] Fraga, Joana Maria Ribeirete de, Op. cit., pp. 197-202 (fundamentalmente para a Guerra da Restauração), e ss. 

[34] Cruz, António, Op. cit., p. 82. 

[35] Uma síntese pode encontrar-se num pequeno volume da pena do autor destas linhas, Duarte, António Paulo, Linha de Elvas. Prova de Força, 1659, Lisboa, Tribuna da História, 2003, pp. 19-20. 

[36] Lousada, Abílio Pires, Op. cit., pp. 189-202-203. 

[37] Na verdade, não há uma completamente consolidada conceção das fases da guerra, sendo esta objeto de variadas cronologias, sendo, todavia, correto afirmar que para a historiografia da Guerra da Restauração, os anos que vão de 1657/1658 a 1667, são vistos como de intensificação forte da conflagração, nomeadamente na duplicação ou mais das forças empregues por ambos os lados na luta. Sobre a evolução da guerra e suas características, siga-se, Santo, Gabriel Espírito, 2008, Costa, Fernando Fores, 2004 e Lousada, Abílio Pires, 2012, igualmente, Freitas, Jorge Penim, A Cavalaria na Guerra da Restauração. Reconstrução e evolução de uma força militar, 1641-1668, Lisboa, Prefácio, 2005. 

[38] Serrão, João Vicente, “Quadro Humano", em António Manuel Hespanha, Coord., O Antigo Regime (1620-1807), em José Mattoso, Dir., História de Portugal, 4º Vol., (s/l), Editorial Estampa, (s/d)., pp. 50-51. 

[39] Uma síntese em Chandler, David G., Op. cit., pp. 22-23.  

[40] Gat, Azar, War in Human Civilization, Oxford, Oxford University Press,2008, pp. 474-475.

[41] Cruz, António, Op. cit., p. 69. 

[42] Valladares, Rafael, Op. cit., p. 30. 

[43] Faria, Ana Leal, Op. cit., p. 109 

[44] Idem, p. 104. 

[45] A obra em causa, já referenciada é de Duarte, António Paulo, 2003 e 2005 (2.ª edição). 

[46] Fraga, Joana Maria Ribeirete de, p. 190. 

[47] Idem, p. 192. ​​

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António Paulo Duarte

Professor Auxiliar da Academia Militar, História Militar. Investigador do Centro de Investigação, Desenvolvimento e Inovação da Academia Militar (CINAMIL) (Academia Militar). Professor Auxiliar Convidado do Instituto Universitário Militar (IUM).  Investigador do Instituto de História Contemporânea (FCSH/UNL). Membro do Observatório Político. Doutor em História Institucional e Política Contemporânea (FCSH/UNL). Estuda as temáticas da Estratégia, História Militar e História da Guerra.


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Como citar este texto:

DUARTE, António Paulo​ – Restauração – Uma Perspetiva Estratégica. Revista Portuguesa de História Militar – Dossier: Restauração Portuguesa (1640-1668)​. [Em linha] Ano V, nº 8 (2025); https://doi.org/10.56092/WCHJ7752​ [Consultado em ...].​



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