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GUERRA CIVIL DE ESPANHA: A VIAGEM DO NYASSA A TARRAGONA

 

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José Luís Andrade



Resumo

A questão do tratamento dos refugiados frente-populistas por parte das autoridades portuguesas durante a Guerra Civil de Espanha tem sido um dos temas mais controversos da historiografia que lhe está associada. O assunto é geralmente abordado de uma forma que possa constituir mais um ariete para vilificar o regime do Estado Novo do que para clarificar os factos de forma isenta. Sobretudo propagada pela chamada campanha antifascista desenvolvida pela Komintern durante e após a Guerra Civil de Espanha, instalou-se uma narrativa de referência sobre o tema que, no entanto, é posta em causa pelo repatriamento de cerca de 1.500 refugiados frente-populistas, civis e militares para a Catalunha, por escolha do Governo de Espanha a oferta do Governo Português. Transportados no paquete Nyassa saíram de Lisboa a 10 de Outubro de 1936 rumo a Tarragona.

Palavras-chave: História Militar; Espanha e Portugal; Guerra Civil de Espanha; Tratamento de Refugiados; Operações Navais.

Abstract

The Portuguese authorities handling of front-populist refugees during the Spanish Civil War has been one of the most controversial topics in the historiography associated with the conflict. The subject is usually approached through an angle that turns out to be more of a battering ram to vilify the Estado Novo regime than to clarify the facts fairly and without bias. Mainly spread by the so-called anti-fascist campaign developed by the Komintern during and after the Civil War in Spain, the implanted narrative became a reference mark on the matter. However, it is called into question by the repatriation of about 1,500 front-populist refugees, civilians and military personnel to Catalonia by choice of the Government of Spain at the offer of the Portuguese one. They were ferried on the liner Nyassa and left Lisbon on October 10, 1936, towards Tarragona, having arrived there on the 13 th.

Keywords: Military History; Spain and Portugal; Spanish Civil War; Refugee Handling; Naval Operations.

 


Uma das distorções mais recorrentes na análise histórica (e ainda mais na jornalística) do papel de Portugal no conflito que devastou o país vizinho no segundo quinquénio dos anos trinta do século passado e que ficou conhecido como Guerra Civil de Espanha (doravante designado abreviadamente por GCE) diz respeito à questão dos «refugiados». Na maioria das vezes, o juízo envolvido nesta designação não traduz um conceito humanitário inclusivo, sendo quase sempre usado como marcação política, tendenciosa e parcial. Por exemplo, a historiografia dominante não o aplica aos refugiados espanhóis que fugiram da repressão do governo espanhol da Frente Popular, sempre vistos na perspectiva da luta de classes como «privilegiados, merecedores de todas as privações». O conceito é geralmente usado em exclusivo para com os simpatizantes do Governo de Madrid, «forçados a fugir para Portugal pela perseguição fascista às suas ideias». A questão destes acoitados e o seu tratamento por parte das autoridades portuguesas de então, foi manejada internacionalmente como uma das mais graves queixas que o ministro dos Negócios Estrangeiros de Madrid, Julio Álvarez del Vayo, e Maksim Litvínov (n. Meir Henoch Mojszewicz Wallach-Finkelstein), o seu homólogo soviético, levantaram contra Portugal no Comité de Londres que zelava pelo cumprimento da política de não-intervenção estrangeira na GCE. A denúncia específica era que as autoridades portuguesas entregavam sistematicamente aos sublevados todos os que «fugiam à barbárie fascista» e que haviam sido forçados a buscar refúgio em Portugal.

A narrativa dominante sobre a GCE reflecte uma visão quase uniforme baseada no mito de que a luta foi uma guerra de resistência do «povo espanhol», maioritariamente «republicano e democrático», contra a pulsão local do «fascismo internacional». No entanto, muitos historiadores destacados como Burnett Bolloten, Hugh Thomas e, mais recentemente, Stanley Payne reviram a sua leitura inicial para concluir, como mostram as recentes palavras deste último, que, afinal, a GCE resultou essencialmente de uma tentativa de «revolução colectivista marxista a que se opuseram pela força moderados e conservadores espanhóis». Mas o apetite por versões pré-mastigadas ou abreviadas bem como as teias ideológicas contemporâneas alimentaram o mito, com uma penetração facilitada num público cada vez mais crédulo e receptivo devido à ignorância e à apatia grassantes. Não por acaso, os relatos mais significativos nessas histórias são quase sempre baseados em «factos», «considerações» e «testemunhos» retirados de abordagens parciais, com propósitos facilmente identificáveis como inerentemente relacionados com o activismo ideológico e a sua propaganda.

O envolvimento de Portugal na GCE não é excepção a essa abordagem. Quando não é ignorado, muitas vezes é considerado, para todos os efeitos, em estreito alinhamento com a facção insurrecta. No entanto, essa presunção e as narrativas históricas dela decorrentes resultam geralmente de precipitação, mesmo má-fé, ou, na melhor das hipóteses, da vulgar atracção pegajosa de aderir ao relato que se foi impondo. Quando se procura dissecar a forma como essas narrativas se foram inculcando, o que surpreende é que raramente são mencionadas memórias e depoimentos de representantes oficiais dos poderes democráticos da época, nomeadamente de registos diplomáticos do Reino Unido e dos Estados Unidos em Portugal e Espanha. ​

A questão dos refugiados frente-populistas em Portugal

Para enquadrar corretamente o problema dos refugiados espanhóis simpatizantes do governo da Frente Popular que buscaram o exílio em Portugal durante a GCE temos de o encarar em dois períodos distintos: o primeiro, entre o pronunciamento militar (o chamado Alzamiento) de 17/18 de Julho de 1936 e 28 de Abril de 1938, data em que Portugal reconheceu o chamado Governo de Burgos, e o segundo, a partir dessa data até ao fim da guerra em 1 de Abril de 1939. Se a entrega de refugiados, conforme alegado pelo governo de Madrid, é questionável na primeira fase, na segunda correspondeu à prática padrão de acordo com os procedimentos do direito internacional. No entanto, mesmo que se prove que durante o primeiro período houve casos de entrega de «refugiados», cabe perguntar se os factos denunciados (mas nunca realmente provados) seriam a prática corrente do governo português ou apenas casos pontuais da responsabilidade das forças de protecção e vigilância da fronteira. Sobretudo quando é sabido que estas tinham efectivamente recebido instruções para impedir a entrada extraviada de fugitivos espanhóis a todo o custo. Mas, mesmo nesses eventuais casos, teriam os fugitivos entrado mesmo em território português, acabando processados, detidos e entregues aos rebeldes, ou teriam sido pura e simplesmente sido impedidos de atravessar a raia? 

A problemática dos refugiados frente-populistas, apresentada sempre sob uma capa do foro humanitário e esgrimida lâchement pelas forças interessadas no aviltamento político do Governo português de então, não poderá nunca obnubilar o facto sobejamente demonstrado do perigo que constituía para a ordem instituída em Portugal o pendor revolucionário de activistas da esquerda radical espanhola. Mas importa também saber se a abordagem assumida pelo governo português não foi feita na estrita observância das boas práticas do direito internacional. Por exemplo, o caso referido por César Oliveira em Salazar e a Guerra Civil de Espanha, em que menciona a «entrega de 54 refugiados às autoridades fronteiriças ao serviço dos rebeldes» correspondeu na realidade a uma legítima recusa de admissão e não a uma entrega.[1] O mesmo autor, embora reconhecendo que a questão dos refugiados atingira uma dimensão especialmente relevante durante a campanha dos sublevados para a conquista de Badajoz, sublinha que o problema já existia anteriormente, corrigindo Iva Delgado, que praticamente limita as ocorrências àquele episódio.[2] Segundo Oliveira, de Caminha a Vila Real de Santo António, registou-se uma entrada incessante de espanhóis fugindo ao conflito iniciado com a sublevação de parte das forças armadas espanholas,[3] que, no entanto, começou a abrandar abruptamente de Agosto a Dezembro de 1936. Em regra, os civis que conseguiam cruzar a fronteira, se não tivessem documentos de identificação válidos, eram encaminhados para uma triagem pela Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), enquanto a unidade militar mais próxima se encarregava de processar os militares ou membros das forças de segurança espanholas.

De facto, com o fracasso do Alzamiento militar e mal iniciada a guerra civil, o fluxo de refugiados vindos de Espanha já era tão significativo que o Ministério da Guerra sentiu a necessidade de transmitir as seguintes instruções às unidades militares:

Os emigrantes [sic] devem permanecer detidos até que seja promovida concentração em qualquer localidade ou acampamento especial; nenhum subsídio em dinheiro será dado, mas alimentação e acomodação correspondentes à sua categoria social serão disponibilizadas. Para o efeito, os civis serão equiparados ao posto de soldado raso, podendo ser-lhes fornecida roupa branca quando tal for considerado indispensável.[4]

Se dúvidas houvesse sobre o destino a dar aos refugiados pelas autoridades portuguesas, esta circular dissipá-las-ia. Tem sido, por vezes, citada uma nota do Major Aviador António de Sousa Maya sobre «a necessidade de as instruções serem dadas verbalmente dada a sensibilidade do assunto»,[5] mas esta é uma prática normal em termos de confidencialidade da informação e foi sugerida a 31 de Agosto de 1936, ou seja, mais de quinze dias depois da queda de Badajoz, que é a data a que a maioria das denúncias reporta. 

No final de Setembro de 1936, cerca de 170 refugiados considerados como «vermelhos» estavam internados no Forte de Caxias. Desde o início da Guerra Civil de Espanha até ao final daquele mês, pelos seus próprios meios muitos outros haviam partido para França e outros países europeus. Quando não regressados a Espanha como acontecera com o General Juan García Gómez-Caminero, inspector-geral do Exército, que, encontrando-se em León aquando dos momentos iniciais do Alzamiento, depois de ter mandado entregar armas da tropa aos milicianos asturianos e leoneses que respondiam ao pedido de auxílio vindo de Madrid, decidiu refugiar-se em Portugal. Após uma curtíssima estadia no Forte de São Julião da Barra,[6] regressou a Espanha por Badajoz, dias antes da tomada desta cidade pelos rebeldes. Ou Ángel Galarza Gago, outro «irmão» maçon de nome iniciático Victor Hugo, antigo Director-geral de Segurança, com grande pendor para a violência e declarada hostilidade para com a Igreja Católica, que depois de se refugiar em Portugal, regressou a Madrid onde jogaria um papel importante nos massacres de presos políticos, particularmente em Paracuellos. 

No improvisado campo de concentração da Herdade da Coitadinha, próximo da Choça do Sardinheiro, entre o Ardila e a ribeira de Múrtega, em Noudar, Barrancos, no Alentejo, estiveram oficialmente internados 614 refugiados até 8 de Outubro de 1936, mas, segundo informação do comandante militar de Beja, o seu número pode ter ascendido a 806. No Forte da Graça em Elvas, em finais de Setembro de 1936, encontravam-se 136 refugiados espanhóis. Cerca de uma centena de homiziados políticos oriundos das fronteiras norte e nordeste haviam sido encaminhados para a delegação da PVDE no Porto. Além de em Caxias, também no Forte de São Julião da Barra, igualmente na orla costeira dos arredores de Lisboa, estiveram detidos oficiais superiores do Exército Espanhol, Guardia CivilCarabineros e Guardia de Asalto, em número que não ultrapassou as duas dezenas.

O tratamento dispensado pelas autoridades militares foi, em geral, bastante razoável. Por exemplo, o General Domingos Oliveira, Comandante Militar de Lisboa e o grande apoio militar de Salazar que lhe havia sucedido como chefe de governo, tinha determinado que «os emigrados políticos fiquem, por deferência, no interior da Fortaleza [São Julião da Barra, hoje residência oficial do Ministro da Defesa]. Devem receber comida correspondente à sua posição. Podem comunicar com o exterior, telefonar, escrever e receber visitas».[7] Segundo César Oliveira, o número de refugiados da Frente Popular cujo número preciso pôde ser apurado é de 1.350 indivíduos, referindo-se aos do Forte de Caxias e da Graça (Elvas) e Herdades da Coitadinha e da Russiana, junto ao posto de vigilância da GF do mesmo nome, no extremo nordeste de Barrancos. Os detidos em outros lugares e localidades não foram incluídos neste cômputo. ​

A origem dos refugiados

É preciso ter em conta as ameaças à segurança pública e à integridade territorial que o Governo português sentia nas zonas fronteiriças e os cuidados que teve para evitar que a agitação revolucionária que se vivia em Espanha na primavera de 36 alastrasse a Portugal. Portanto, mesmo antes do início da GCE, a fronteira estava mais guardada e protegida. Quando eclodiu o conflito, grandes bandos de partidários da Frente Popular, oriundos maioritariamente da bacia mineira de Rio Tinto, na província de Huelva, aproximaram-se instintivamente da fronteira portuguesa, evitando o contacto armado com as colunas improvisadas que os rebeldes haviam enviado contra eles desde Sevilha. Por exemplo, o chefe do posto da Guarda Fiscal da Amareleja relatou que «uma coluna comunista composta por 500-600 homens estava concentrada perto da ribeira do Ardila; impedida de entrar em Portugal, seguiu pela linha da fronteira para Norte; outra coluna com numerosos civis e Carabineros comandados por um capitão […] fez saber que resistiriam até ao fim, não se rendendo às forças portuguesas porque sabiam que seriam entregues aos nacionalistas».[8]

De onde veio a maioria dos refugiados que entraram em Portugal nessa altura? Para acharmos uma pista significativa, é necessário olhar para a Guardia Civil e para a atitude díspar que teve em relação ao Alzamiento. Nas maiores cidades, como Madrid ou Barcelona, talvez considerando o que acontecera com a Sanjurjada em Agosto de 1932, a Guardia Civil esteve ao lado do Governo e foi até o factor chave para derrotar a insurreição militar. No entanto, em áreas remotas do interior, as suas forças sentiram-se ameaçados pelo assédio de elementos hostis mobilizados pelos sindicatos de extrema-esquerda ligados aos partidos e facções anarquistas, socialistas e comunistas. A atitude dos destacamentos da Guardia Civil dispersos pelo interior acabou sendo determinada pela disposição das guarnições locais, pela vulnerabilidade das famílias dos guardas e pela tenacidade do poderio frente-populista presente no terreno. Ora tanto o noroeste da província de Huelva como a província de Badajoz estavam entre as regiões mais desestabilizadas pela propaganda revolucionária. Após a queda de Huelva para os insurgentes em 29 de Julho de 1936, muitas das guarnições da Guardia Civil e de Carabineros ao sul da área mineira da província, que no início do levantamento militar haviam hesitado, tentando passar despercebidas, decidiram juntar-se aos rebeldes dissociando-se das autoridades governamentais.

Um dos casos de resistência isolada mais digno de menção aconteceu em Encinasola, localizada no extremo noroeste da província de Huelva, em frente à vila portuguesa de Barrancos. Apesar de encurralados em território hostil, a Guardia Civil e os Carabineros assumiram o controlo da povoação desde o início do Alzamiento, mantendo a ordem até à chegada das forças rebeldes, o que só aconteceria cerca de dois meses depois, a 24 de Setembro de 1936. Como o comandante posto, um tenente, tinha ido a Huelva para receber orientações da hierarquia (tendo posteriormente regressado a Encinasola por território português), à frente das forças estava um cabo de Carabineros. A 11 de Agosto, face a um iminente ataque das forças frente-populistas que cercavam a vila, parte da população civil refugiou-se em Portugal após a destruição de um pontão para retardar o avanço do inimigo.[9] A 26 de Agosto, as forças rebeldes, vindas do Sul, ocuparam finalmente a aldeia de Rio Tinto e, dois dias depois, após a tomada de Aroche, chegaram à fronteira portuguesa de Ficalho por Rosal de la Frontera.[10]

Com a chegada das forças rebeldes àquelas zonas fronteiriças, a situação mudou em Encinasola. As pessoas que se haviam refugiado em Portugal voltaram, e os sitiantes tornaram-se fugitivos, buscando, por sua vez, abrigo em Portugal. Muitos deles, temendo represálias, fizeram-se acompanhar pelas famílias. Sendo muitos mais do que os refugiados que fugiram para Portugal pelo Caia e por Campo Maior durante e imediatamente depois da tomada de Badajoz pelos rebeldes, esta é a origem do grosso dos espanhóis reunidos e internados nos campos da Herdade da Coitadinha e Choça do Sardinheiro, junto ao posto da Guarda Fiscal da Russiana de Cima, que tinham atravessado a fronteira pelas zonas confinantes de Barrancos, Amareleja e até Sobral da Adiça.​

O Repatriamento dos Refugiados

Se a esmagadora maioria viera da Andaluzia e das zonas fronteiriças da Extremadura, também havia um número significativo que viera da Galiza e das regiões de Zamora e Salamanca. Todos buscaram no país vizinho refúgio para escapar às ondas de choque originadas pela revolta militar conservadora que, ao falhar, se transformaria rapidamente em guerra civil. Portugal era um porto seguro para os apoiantes dos rebeldes ou mesmo dos «neutros» da teoricamente chamada «terceira Espanha». No entanto, para os simpatizantes da Frente Popular que buscavam abrigo provisório perante o avanço das colunas do Exército de África e que, talvez com a consciência pesada, temiam a sua acção vingativa pelos crimes cometidos, o desconforto e a insegurança eram notórios. A verdade é que a questão dos refugiados espanhóis preocupava o governo português. E após alguma reflexão, quer por razões humanitárias quer por questões de segurança interna, o Governo português decidiu patrocinar o repatriamento para território detido pelo governo da Frente Popular daqueles que assim o desejassem.

Comunicada a intenção a Madrid através da embaixada de Espanha, Lisboa informou Madrid de que se encarregaria de todas as despesas inerentes à operação, solicitando apenas a indicação do porto de destino. No mesmo dia em que as forças do general rebelde José Henrique Varela libertavam o Alcázar de Toledo, o governo espanhol aceitou a oferta indicando Tarragona como ponto de desembarque. Em mensagem datada de 6 de Outubro de 1936, o Secretário-Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros informou o Chefe do Gabinete do Ministro do Interior que «sobre a situação dos refugiados espanhóis em Portugal, o Governo espanhol, por Nota de 28 do mês passado, aceitou a oferta que lhe foi dirigida pelo Governo português».[11] Um navio comercial português seria disponibilizado para transportar os refugiados para a cidade portuária de Tarragona, na Catalunha, o local designado pelo Governo espanhol para o efeito. A Nota oficial refere que «aqueles que não quiserem beneficiar do repatriamento patrocinado pelo governo português ou que não estiverem dispostos a sair às suas próprias custas para qualquer outro destino estrangeiro poderão permanecer em Portugal, mas compreensivelmente terão cumprir as regras que o Governo português lhes vier a impor».[12]

O Governo português contratou à Companhia Nacional de Navegação (CNN) o paquete Nyassa, sob o comandante António Bettencourt, para realizar a operação prevista. O Nyassa era um navio de passageiros de 9.000 toneladas, de origem alemã, construído em 1906 em Geestemünde por J. C. Tecklenborg. Tinha sido projetado para transportar 108 passageiros de primeira classe, 106 de segunda classe e 1.828 de terceira classe. Foi lançado ao mar sob o nome de Bülowpela companhia de navegação alemã Norddeustscher Lloyd em Bremen. Quando a eclosão da Primeira Guerra Mundial o apanhou no alto-mar em 1914, o seu comandante decidiu refugiar-se no porto de Lisboa, um ancoradouro neutro na altura. Em Março de 1916, depois de a Alemanha ter declarado guerra a Portugal, o navio foi tomado pelo governo português e rebaptizado Trás-os-Montes. Em 1925, a empresa privada Companhia Nacional de Navegação comprara-o ao Estado e denominara-o Nyassa, identificação que manteria até ao seu desmantelamento em 1951. Durante a Segunda Guerra Mundial e no período anterior, o Nyassa (assim como o transatlântico Serpa Pinto) transportaria refugiados judeus para a América e para a Palestina.[13] Milhares de refugiados judeus fugindo da perseguição nacional-socialista encontraram um refúgio temporário em Portugal.[14]

No dia 10 de Outubro, pelas 12h20, o Nyassa deixou Lisboa com destino a Tarragona.[15] O governo português colocou-o sob o comando formal de um oficial da Marinha de Guerra Portuguesa, como capitão-de-bandeira[16] – o Comandante Álvaro Gil Fortée Rebello. A custodiá-lo, fez seguir o contratorpedeiro Douro como escolta armada sob o Comandante Augusto Gonçalves de Azevedo Franco. A bordo do Nyassa seguiam 1.445 simpatizantes espanhóis da Frente Popular, que haviam buscado refúgio em Portugal fugindo das forças rebeldes. Além de Miguel Granados, governador civil de Badajoz, quinze oficiais, nomeadamente o Coronel Ildefonso Puigdengolas Ponce de León, comandante militar daquela cidade, o Major Antonio Bertomeu Bisquert, o Capitão Guillermo de Miguel Ibañez, 14 sargentos e 177 cabos e soldados, incluindo alguns Carabineros, juntaram-se aos 1.238 civis, incluindo 205 mulheres deixando Portugal para Tarragona.[17] Os 1.445 tinham declarado que preferiam ir para áreas controladas pelo Governo de Madrid. A viagem decorreu sem grandes incidentes, salvo exigências de tratamento mais deferente por parte de alguns passageiros, nomeadamente pelo ex-comandante militar de Badajoz, Coronel Puigdengolas. Segundo o relatório do capitão-de-bandeira do Nyassa, aquele queixou-se-lhe recorrentemente de que era iníquo misturar pessoas de alto estatuto social com pessoas de baixo nível, pouco educadas e asseadas. Salvo em algumas excepções que considerou despropositadas, o comando do Nyassa acedeu aos pedidos.

Os problemas graves surgiram quando os navios chegaram a Tarragona. Aparentemente, as autoridades locais manifestavam total desconhecimento sobre a missão, alegando até a inconveniência da chegada, já que as provisões na cidade mal davam para alimentar os seus habitantes. Só após intermináveis consultas a Madrid e Barcelona foi possível conseguir autorização para desembarcar os refugiados, mas não sem que os milicianos presentes no cais cessassem de procurar impedir o que alegavam ser uma invasão dos «fascistas». Como o apoio por parte dos operadores do cais não foi fornecido para a instalação de rampas, os repatriados foram forçados a descer pela escada de portaló. Assim que desceram em terra firme, foram interrogados pelos milicianos, que acabaram assim por confirmar que o governo português tinha repatriado os seus compatriotas. Soltaram então gritos de aclamação para com os recém-chegados, contrastando com a frieza com que lidaram com os oficiais, incluindo Puigdengolas.

Foi então que o delegado da Autoridade Portuária, um tenente de Infantaria, acompanhado de representantes dos comités revolucionários, pretendeu revistar o navio a pretexto de verificar que nenhum conterrâneo tinha ficado para trás, retido pela Armada Portuguesa. Com firmeza, o Capitão-de-bandeira secundado pela tripulação do Nyassa expulsou rapidamente a turbamulta que insistia em invadir o navio, incentivados por gritos de «morte a Portugal e ao Fascismo». No entanto, a posição firme assumida pela tripulação do Nyassa, e do Douro em retaguarda, esfriou os ânimos. O Capitão-de-bandeira do Nyassa solicitou a imediata presença a bordo do delegado da Autoridade Portuária. Sem milicianos por perto, desculpou-se pelo comportamento dos seus compatriotas, dizendo-se impotente para controlar os bandos armados. Perante o pedido de dois oficiais para se deslocarem ao Consulado Britânico, o oficial espanhol impôs a condição de que fossem disfarçados, à paisana, o que eles obviamente recusaram.

Nyassa aguardava ainda a chegada de sete cidadãos portugueses residentes na Catalunha que haviam comunicado às autoridades consulares portuguesas o desejo de serem repatriados. Possivelmente como represália pela atitude enérgica do pessoal dos navios portugueses, o Governo espanhol fez saber que tal embarque só seria possível em Alicante. Os capitães dos navios decidiram então partir, mas novo revés surgiu quando os milicianos impediram a libertação das amarras. Como exercício de força, os marinheiros portugueses e as forças de segurança que integravam a missão assumiram posições de combate, e os canhões e metralhadoras tiveram que ser exibidos para intimar os operadores do cais e obrigá-los a desamarrar os cabos.

Para ajudar a controlar uma massa tão grande de pessoas que de antemão se previam hostis a Portugal, o governo de Lisboa tinha enviado agentes da PVDE e da PSP a bordo do Nyassa para protecção de recurso. Integrava a missão o Capitão Ruy Pessoa de Amorim da PVDE, acompanhado de quatro agentes e um destacamento da PSP composto por 50 polícias enquadrados pelo chefe João José de Morais e três subchefes sob o comando do Tenente de Cavalaria Eduardo Sousa de Almeida. Além disso, para salvaguardar eventuais necessidades de recurso à violência e garantir a ligação com o Douro, também embarcara no Nyassa uma força da Marinha composta por oito marinheiros chefiada pelo Primeiro-Tenente Horácio Anjos de Carvalho. A leitura e análise do quase esquecido relatório do Capitão-Tenente Fortée Rebello no Arquivo Histórico da Marinha Portuguesa permitiu-nos aceder a toda aquela informação detalhada, incluindo a relação completa do armamento portátil que equipava as forças de segurança naquela missão.​

O Relatório do Comandante Fortée Rebello

O relatório começa por recapitular ao Almirantado a missão que lhe fora confiada e a descrição das circunstâncias do embarque dos refugiados: «Embarquei no navio no dia 10 deste mês [Outubro] às 5h30, tendo recebido nove orientações verbais do Ministro [da Marinha] e outras instruções escritas do Estado-Maior do Almirantado. Os refugiados marxistas, transportados para o cais da Fundição em comboios e autocarros vindos de várias partes do país, embarcaram entre as 7h e as 11h30. Durante as operações de entrada a bordo, 14 graduados, cabos e soldados dos Carabinerosdeclararam que preferiam ser levados para a região fronteiriça ocupada pelos nacionalistas espanhóis e, como tal, foram entregues aos cuidados da PVDE.[18] Dois refugiados doentes também não puderam embarcar porque o médico do navio decidiu que a viagem iria agravar o seu estado de saúde podendo mesmo colocar as suas vidas em risco; um sofria de broncopneumonia grave e o outro tinha dois ferimentos de bala».[19]

Depois de visitar o Douro para receber instruções do respectivo comandante, Fortée Rebello regressou ao Nyassa e ordenou à tripulação que se preparasse para partir ao meio-dia. Resolvida uma pequena avaria no Douro à saída, a viagem decorreu tranquilamente até Tarragona. Ambos os navios tentaram cumprir a instrução do Ministro da Marinha para realizar a viagem no menor tempo possível. No dia 11, pelas 18h30, ao atravessarem as águas do Estreito de Gibraltar, foram sobrevoados por dois hidroaviões em duas ocasiões distintas, segundo um radiotelegrama enviado do Nyassa ao GABINETEMAR (Estado-Maior do Almirantado). Não conseguiram identificar a primeira aeronave, mas a segunda era claramente um aparelho dos rebeldes marcado como «512».[20]

No seu relatório, Rebello destaca: «No início da viagem, chamei à minha presença os mais altos oficiais dos refugiados abordo a quem ordenei que comunicassem aos seus compatriotas as regras de disciplina a observar durante a viagem. Embora o acatamento tivesse geralmente sido o adequado, a maioria dos oficiais espanhóis comportou-se de uma forma cívica que deixava muito a desejar e pouco ou nenhum aprumo militar. Isso contrastava com a atitude educada de civis de menor estatuto social e a correção militar de sargentos, cabos e soldados. No geral, não houve grandes queixas, apenas pedidos de melhoria de alojamento. Curiosamente, essas reclamações eram quase sempre justificadas por alegadas diferenças de classe social, entre as quais quase sobressaía a categoria de "proprietário". Confesso que concedi algumas fosse, por evidente justiça, como por exemplo reunindo os filhos com os pais, fosse por mera conveniência política».[21]

Narrando detalhadamente o que aconteceu à chegada a Tarragona, Rebello diz: «pedi ao capitão do Douro, que tinha fundeado à entrada do porto, autorização para nele entrar e atracar. Após alguma hesitação de terra, o prático chegou com ordens para que o navio fundeasse na área do molhe Parallel, a 20 metros de distância do cais. Em seguida, acompanhado por um funcionário, subiu a bordo o delegado da Autoridade Portuária; era um tenente de Infantaria que alegou que nenhum oficial da Marinha estivera disponível para ocupar o cargo. Reconheceu que a chegada do Nyassa fora uma surpresa para todos, afirmando que não havia nenhuma indicação de Madrid ou Barcelona sobre a nossa missão. O tenente espanhol queria saber tudo sobre os passageiros que transportávamos, se eram fascistas ou simpatizantes do governo, o seu número e a localização fronteiriça da sua entrada em Portugal. Quando o informei sobre o número de refugiados que trazia, ele ficou preocupado porque, embora ainda houvesse comida em Tarragona, ela escasseava. Comunicou-me que ele teria de entrar em contacto com Barcelona e Madrid através do Comissário de Guerra e contava trazer a resposta o mais rapidamente possível».[22]

Procurando dar cumprimento ao seu objetivo secundário, registou: «Enquanto esperava, fui observando o que se passava no porto. Atracado a um dos molhes estava o vapor espanhol Monte Cervera, com prisioneiros mantidos à vista por milicianos armados. Estimámos serem duzentos e tal, reconhecendo padres, alguns militares e mulheres que ocasionalmente eram retirados de lá para serem executados. Pelo menos foi o que nos disseram o médico do porto, que nos deu a impressão de não ser simpatizante da Frente Popular, e o próprio delegado da Autoridade Portuária, que parecia estar a actuar sob coação. No cais, avistei muitos milicianos, soldados da Guardia Nacional Republicana (GNR)[23] e duas mulheres, todos armados e equipados com uniformes (de que os nossos marinheiros, polícias e tripulantes zombavam por lhes parecerem mais adequados ao Carnaval) com as cores das diferentes facções e partidos, predominando o vermelho e preto dos anarquistas».[24]

Rebello notou que «à entrada do cais, havia grupos de milicianos que impediam a livre circulação dos transeuntes, olhando de longe o nosso navio. Um oficial refugiado chamado Borrego [seguramente o Alferes Joaquín Borrego Martínez] dirigiu-se aos outros, pedindo-lhes que se abstivessem de manifestações barulhentas ou cumprimentassem com a saudação do punho cerrado erguido enquanto aguardavam o desembarque. Enquanto isso, vários barcos passaram perto do vapor português. Os seus tripulantes, armados, saudaram com os punhos levantados; apenas três dos refugiados a bordo responderam, tendo eu ordenado que fossem retirados imediatamente para um dos compartimentos abaixo do convés. Às 12h30, o Capitão do Porto substituto regressou acompanhado por um civil catalão encarregado dos assuntos do Consulado de Portugal, trazendo finalmente a autorização para atracar no cais e desembarcar os passageiros. Seguindo instruções, os responsáveis da PVDE e da PSP deveriam contactar as autoridades consulares para proceder ao repatriamento de cidadãos nacionais ou mesmo estrangeiros que assim o requeressem. Ordenei ao meu adjunto que os acompanhasse. A autoridade portuária desaconselhou a excursão, sobretudo se fossem uniformizados, afirmando que ninguém tinha controlo sobre a turbamulta. Embora os oficiais portugueses destacados para a diligência insistissem em cumprir a sua missão em terra, eu, por precaução, impedi-os de desembarcar. O responsável pelos assuntos da Chancelaria do Consulado de Portugal disse-me que apenas sete cidadãos portugueses em Barcelona haviam manifestado desejo de regressar a Portugal e deveriam chegar a Tarragona pelas 18 horas».[25]

Às 14h10, com o navio finalmente atracado ao cais, Rebello destaca as suas dificuldades: «Fui informado de que ninguém em terra estava disposto a fixar as pranchas. Resolvi então fincar as escadas de portaló no cais e montar um serviço de vigilância para proteger o perímetro. Enquanto essa manobra era realizada, vários autocarros para recolha dos passageiros chegaram ao molhe. O desembarque foi feito de acordo com a seguinte ordem: primeiro, mulheres e crianças, depois, oficiais e afins, sargentos, cabos e soldados e, por último, civis. Os oficiais e alguns membros da tripulação ajudaram as mulheres mais idosas e as crianças mais novas a descer. Com exceção de dois, os oficiais foram recebidos com frieza, principalmente o mais graduado, o coronel Ildefonso Puigdengolas. Sargentos, cabos e soldados foram acolhidos com entusiasmo, tendo o Comissário de Guerra, um Sargento-mor, abraçado todos efusivamente. Os civis foram recebidos com vivas à liberdade, à República e à Rússia, e "morte aos fascistas!"».

«Os refugiados, que na sua maioria nos tinham convencido a bordo de que eram uns pobres-diabos, quando se viram em terra firme, mostraram todo o seu ódio, erguendo os punhos cerrados e apoiando com grande entusiasmo os vivas à Rússia. Até as mulheres procederam assim. Alguns dos que nos haviam pedido para mudar de alojamento (quase nos convencendo de sua inocência e da justeza da medida) mal desembarcaram, de frente para o navio, começaram a gritar "morte ao fascismo!". A certa altura do desembarque, um grupo de milicianos aproximou-se do Nyassa e, fitando os oficiais portugueses no passadiço, gritou "morte aos canalhas e bandidos fascistas!". Ordenei a suspensão do desembarque e avisei a Autoridade Portuária da incorrecção dos seus camaradas, que tão insolentemente respondiam ao gesto do Governo português e à amabilidade que os oficiais e demais tripulantes tinham demonstrado para com as mulheres e crianças. Depois de um dos seus oficiais ter falado com eles, pareceram acalmar sem, no entanto, deixar de nos olhar com rancor insolente».[26]

«Concluída a operação de desembarque e com a saída dos autocarros, o delegado da Autoridade Portuária subiu as escadas, seguido por dois milicianos, pedindo-me a lista dos repatriados. Entreguei-lhe uma nota com os números gerais do manifesto dos passageiros sem discriminação de identidade e o oficial, depois de verificar, disse-me que queria revistar o navio porque fora informado pelos refugiados desembarcados de que eu tinha três detidos a bordo. Respondi-lhe que poderia ter a bordo quem muito bem quisesse, mas que de facto não havia mais nenhum espanhol no navio; além disso, eu mesmo havia ordenado uma busca minuciosa por elementares razões de segurança. No entanto, ele insistiu em entrar no navio com os que o seguiam e que haviam indo aumentando em número. Com grande paciência, para evitar um conflito grave, tentei convencê-lo de que não o podia permitir porque se tratava de um navio ao serviço de Portugal com estandarte da Marinha de Guerra, frisando que a sua atitude estava em total dissonância com a generosidade do Governo português. Descartando o argumento, elevando o tom de voz, exigiu, para se retirar, a minha palavra de honra de que eu estava a dizer a verdade. À medida que o diálogo se desenrolava, a escada de portaló ia-se enchendo de marxistas armados, em atitude ameaçadora, exigindo uma inspecção ao interior do navio».[27]

«Esgotada a paciência e estando a falhar aparentemente a persuasão, perante a atitude que se estava a tornar ofensiva para a minha condição de oficial da Marinha Portuguesa, no temor de um assalto ao navio, empurrei os milicianos mais perto de mim escada abaixo. De seguida, ordenei aos marinheiros e polícias próximos que varressem todo o pessoal estranho ao navio para longe da escada. Nas áreas periféricas do cais, os marxistas assumiram uma atitude agressiva e desafiadora, apontando as armas carregadas para a amurada do navio. Os oficiais ocuparam imediatamente as posições de combate previamente atribuídas, com a Marinha e as Forças de Polícia prontas para defender o navio. Sob minha orientação e as ordens do seu comandante, a tripulação içou a escada de portaló e afrouxou as amarras, fazendo com que o navio se afastasse cerca de vinte metros do molhe. Com as nossas forças dispostas no convés, estava seguro de que bastava uma rigorosa demonstração de força, com as metralhadoras apontadas e as armas carregadas para os marxistas se dispersarem em grande alvoroço. Enquanto isto se desenrolava, tinha mandado avisar o Douro. O contratorpedeiro, face à ameaça, tinha assumido posição de combate, preparando-se para entrar no porto. O prático, o piloto espanhol, ainda a bordo, foi expulso e voltou ao cais. Decidi não cortar os cabos para não dar a impressão de estar a fugir e aguardei ordens verbais do comandante do Douro. Por rádio, pedi-lhe que me enviasse a sua lancha para transportar o Capitão Pessoa de Amorim e o tenente Carvalho à sua presença para o informar pessoalmente de todos os detalhes do incidente. Ao regressarem, trouxeram o seu consentimento para que eu pudesse cortar as amarras quando assim o entendesse e a garantia de que estaria à disposição para me apoiar no que fosse necessário».

«À medida que a noite se aproximava, as condições de segurança do navio agravavam-se. Preparava-me para cortar os cabos de amarração quando chegou o responsável pelos assuntos da Chancelaria do Consulado de Portugal, acompanhado por um grupo de milicianos marxistas, informando que vinham entregar o visto das autoridades de saúde para que o Nyassa pudesse partir imediatamente. O piloto do porto apareceu, mas recusou-se a cumprir a sua missão porque não tínhamos moeda espanhola para lhe pagar. Um dos milicianos presentes no local, afirmando ter experiência de piloto de barra, ofereceu-se para exercer essa função e dispôs-se a aceitar qualquer moeda, pois queriam apenas ver-nos partir o mais rapidamente possível. O pretenso prático ordenou para terra que os cabos fossem soltos dos cabeços do cais, mas o mercante acabou por ser evidentemente manobrado pelo capitão do Nyassa».

O Relatório do comandante do Douro – capitão de mar-e-guerra Augusto Gonçalves de Azevedo Franco – corrobora na essência a narrativa do Capitão-de-bandeira do Nyassa.[28] Diz que, além de ter escoltado o paquete até Tarragona, tinha instruções para depois render o Vouga em Alicante, devendo evitar contactos entre as duas tripulações. Chegou à cidade catalã às 9h42 do dia 13 de Outubro, ancorando fora do porto, mas a curta distância. Quando se deslocou ao Nyassa, testemunhou o espanto das autoridades locais, alegando terem sido surpreendidas com a chegada do navio. De volta ao Douro, assistiu à confusão que se desenrolava no cais após o desembarque dos 1.445 passageiros. Alertado pelas mensagens do Nyassa, apercebeu-se de que os estivadores e outro pessoal portuário se recusavam a deixar o navio largar, impedindo a libertação dos cabos. Além disso, viu muitos milicianos entrincheirados no edifício da Alfândega e num cargueiro atracado ao cais, manifestando uma atitude inexplicavelmente agressiva. De imediato, mandou retirar as protecções das peças de artilharia e entrar em posições de combate e, a pedido de Fortée Rebello, decidiu enviar a lancha com um oficial, o guarda-marinha Mendonça, ao Nyassa.

Relata que vieram a bordo Pessoa de Amorim e Horácio de Carvalho, confirmando a recusa dos estivadores em deixar o Nyassa partir e a ameaça dos milicianos de não deixarem embarcar no paquete os cinco refugiados portugueses esperados naquele dia vindos de Barcelona. O capitão do Douro diz ter dado ordem a Fortée Rebello para partir a qualquer custo, mesmo que tivesse de cortar os cabos. Depois de alguma confusão, o Nyassa acabou por zarpar por volta das 19 horas. Azevedo Franco enviou um radiotelegrama ao responsável pelos assuntos do Consulado de Portugal em Tarragona, pedindo-lhe que reencaminhasse os esperados refugiados de Barcelona para Alicante. Podiam ser repatriados no Vouga e, caso não chegassem a tempo, seriam então acolhidos no Douro.[29] Às 7h25 do dia 14, o Douro chegou a Alicante e ancorou ao largo. No dia 17 embarcaram o Visconde de Riba Tâmega, Encarregado de Negócios de Portugal junto do Governo espanhol, e o Cônsul Geral em Madrid, Vasco Pereira de Carvalho que regressavam definitivamente a Portugal. No dia 23, foi a vez de entrarem a bordo o ministro plenipotenciário Augusto Mendes Leal, a freira Maria Júlia Pignatelli de Almeida, de 32 anos, e o sargento Lisandro Luís de Macedo, de 50. No dia 21, pelas 15 horas, o navio, para abastecimento, entrou no porto e atracou, por estibordo, ao navio mercante inglês Nela. No dia 24 de Outubro de 1936, o Douro zarpou e, olhando de esguelha para Tânger, rumou a Lisboa.

Conclusão

Ainda que a imprensa portuguesa da época e alguns livros como Quem vem lá? Gente de Paz! Gente de Guerra…[30] se refiram a ele, o episódio do Nyassa tem sido praticamente ignorado ou descartado pela historiografia que analisa o envolvimento português na última Guerra Civil de Espanha. Embora César Oliveira o mencione resumidamente, mesmo investigadores de renome, como Fátima Patriarca, manifestaram o seu espanto ao tomarem conhecimento do episódio. Depois de o relatório do Capitão-de-bandeira do Nyassa ter sido encontrado pela primeira vez no Arquivo Histórico da Marinha, Patriarca afirmou: «Fiquei espantada com isto porque sempre se disse que Portugal entregava os refugiados republicanos aos nacionalistas. Afinal, cerca de 1.500 refugiados republicanos foram entregues em Tarragona por um acordo entre o Governo português e o legítimo Governo de Madrid».[31]

Como descobriu Patriarca, o caso do Nyassa não se enquadra na narrativa corrente que atribui às autoridades do Estado Novo a entrega sistemática às forças rebeldes de refugiados simpatizantes da Frente Popular «para serem invariavelmente fuzilados». Citando erroneamente César Oliveira, o investigador Moisés Lopes chega a afirmar que «muitos dos que se encontravam na Herdade da Coitadinha, em Barrancos, foram entregues directamente às autoridades espanholas presentes na fronteira».[32] Mas vai mais longe ao insistir, alheio aos numerosos testemunhos então publicados, que «os 1.500 refugiados espanhóis detidos em Portugal foram transportados para Tarragona, no navio Nyassaonde foram entregues às autoridades nacionalistas».[33] Na verdade, não faz mais do que repetir o que muitos outros historiadores persistem em afirmar sobre a questão dos refugiados. Por exemplo, negando toda a evidência histórica, José Sánchez Jiménez, replicando Tuñon de Lara, insiste que «o Coronel Puigdengolas [...] depois de se refugiar em Portugal, foi preso e entregue pelo governo vizinho [português] ao coronel Yagüe».[34]

Perante a evidente vulnerabilidade que a viagem do Nyassa representa na narrativa de vilanização do regime liderado por Salazar, a maioria dos autores engajados na quase hegemónica historiografia revisionista recorreu a uma velha técnica de mistificação histórica: engendrar uma quixotesca figura-herói cuja actividade, por sua exclusiva vontade, explicaria a salvação dos refugiados. A honra coube a um jovem oficial de genuíno perfil humanitário, que acolheu e protegeu eficazmente os fugitivos espanhóis de Encinasola e regiões vizinhas. Chamava-se António Augusto de Seixas. Nasceu em Montalegre a 29 de setembro de 1891 e faleceu a 27 de outubro de 1958 na Casa Militar de Saúde Familiar anexa ao Hospital Militar Central de Lisboa. Em Abril de 1924, sendo ex-sargento, ascendeu ao posto de segundo-tenente do quadro de pessoal da Guarda Fiscal. Foi colocado como Comandante de Secção em Freixo-de-Espada-à-Cinta e depois em Chaves; promovido a tenente em Abril de 1928, foi destacado para o Gerês (1930); por motivos disciplinares (repreensão registada pelo Comandante-Geral da GF em Fevereiro de 1932), foi transferido do Batalhão N.º 3 para o N.º 2, vindo para o Sul para o posto da GF de Safara (1932). Foi condecorado com a Ordem Militar de Cristo em 1935. Em 6 de Novembro de 1936, foi suspenso após ação disciplinar subsequente aos acontecimentos com os refugiados espanhóis.[35] Em Janeiro de 1938, a punição foi revertida, permitindo-lhe ser reintegrado no activo, sendo colocado como comandante do Posto da GF de Sines, Batalhão N.º 1, de onde será exonerado a 20 de Junho de 1942, na sequência de outro processo disciplinar por aceitação indevida de gratificações ilegais de pescadores estrangeiros. 

O rompimento diplomático com Madrid, em 23 de Outubro de 1936, foi simbolicamente feito para coincidir com a resposta do governo português às acusações e denúncias de Alvarez del Vayo apresentadas em Genebra alguns dias antes. No entanto, se as acusações deste último (e de Litvínov) e a correspondente resposta do governo português foram marcantes, não menos importante para desencadear a abrupta decisão de Salazar foi a questão de quão ingrata e mesquinha fora a atitude do governo da Frente Popular demonstrados no episódio de Tarragona dias antes. Na sua opinião, depois de o país ter gasto tanto dinheiro e esforço para transportar quase 1.500 refugiados «vermelhos» no paquete Nyassa para um porto designado pelas autoridades da Governo de Madrid, fora absolutamente imperdoável o velhaco acolhimento que a missão portuguesa tivera na chegada àquela cidade. Mas para perceber isso é preciso varrer as camadas de pó da propaganda e conhecer os princípios e as formas de reacção típicas do autocrata português, coisas que os investigadores dominantes muito raramente se dão ao trabalho de fazer.[36]


Imagens

1. Navio Niassa.jpg 

Fig. 1 - Navio Niassa

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Fig. 2 - Força da PSP a bordo do Niassa

3. oficiais-marinheiros Niassa.jpg 

Fig. 3 - Oficiais e Marinheiros no Niassa



NOTAS

[1] César Oliveira, Salazar e a Guerra Civil de Espanha, Lisboa, 1987, Edições «O Jornal», p. 158 e Nota 46 (p. 229) dos registos da Secção de Safara da Guarda Fiscal no Arquivo Histórico Militar.

[2] Iva Delgado, Portugal e a Guerra Civil de Espanha, Mem Martins, Europa-América, 1980, p. 93 et seq.

[3] Salazar e a Guerra Civil de Espanhaop. cit., p. 155.

[4] PT/AHM/ «Instruções às unidades militares sobre os emigrados espanhóis», 24 de Julho de 1936.

[5] Salazar e a Guerra Civil de Espanhaop. cit., p. 157.

[6] Na ocasião, dois generais do Exército espanhol passaram por lá: Rafael Rodríguez Ramírez e Juan García Gómez-Caminero, Inspetor-geral do Exército, e general de três estrelas. A PVDE, dias depois, colocou-os na fronteira de Badajoz, então ainda nas mãos do governo de Madrid. O último, acompanhado pelo seu ajudante-de-campo, Major Manuel de Orbe Morales, a 19 de Julho, vindo de Orense, chegara a León e ordenara ao General Carlos Bosch y Bosch que fornecesse armas à coluna de mineiros asturianos que tinha entretanto chegado à cidade a caminho de Madrid, o que Bosch acabou por fazer após uma hesitação inicial. García Gómez-Caminero, apanhado pelo Alzamiento em León e apercebendo-se de sinais ameaçadores para a sua causa, só teve tempo de fugir para Portugal pela fronteira de Bragança. Contrariamente ao que é voz corrente, dos 24 generais de Divisão no activo do Exército espanhol na época, apenas 6 participaram na sublevação: Cabanellas, comandante da Divisão territorial baseada em Zaragoza, Franco e Goded, comandantes dos arquipélagos (Canárias e Baleares, respectivamente), Queipo de Llano, Inspector-geral dos Carabineros, Andrés Saliquet Zumeta e Joaquín Fanjul Goñi, estes dois últimos sem comando atribuído. Ao todo, dos 85 generais do Exército (3 tenentes-generais, 24 generais de Divisão e 58 generais de Brigada, considerando que Amado Balmes havia morrido a 16 de Julho de 1936) apenas 30 (35%) aderiram aos rebeldes, enquanto 65% permaneceram do lado do governo da Frente Popular. 

[7] PT/AHM/Despacho do General Domingos Oliveira em 1 de Agosto de 1936.

[8] PT/AHM/ «Relatório do chefe do posto da Guarda Fiscal da Amareleja», 22 de Setembro de 1936. Esta massa armada deveria ser formada por fugitivos de Oliva de la Frontera e de Jerez de los Caballeros que haviam acabado de ser tomadas pelos rebeldes.

[9] José Manuel Martínez Bande, La Campaña de Andalucia, Monografias de la Guerra de España del Servicio Histórico Militar, n.º 3, Madrid, San Martin, 1984, p. 134.

[10] Ibidem, p. 138.

[11] PT/BCM-AH/ «Vapor Niassa – Relatório do CAPIBAN sobre refugiados espanhóis marxistas para Tarragona», Pasta 118/4 (6/IV/8/3).

[12] Ibidem.

[13] Palestine Post, 1 de Fevereiro de 1944.

[14] Muitas celebridades, artistas e escritores refugiaram-se em Portugal na altura; entre eles estavam Bela Bartok, Marc Chagall, Max Ernst, Leon Feuchtwanger, Arthur Koestler, André Maurois e Erich Maria Remarque, além de Pierre Dreyfus, filho de Alfred Dreyfus. «O nome da sinagoga de Lisboa, Shaaré Tikvah, que significa Portas da Esperança, refletia o significado que a capital portuguesa tinha assumido como o último porto aberto aos refugiados que fugiam da Europa. Como país neutro, Portugal — um local onde os judeus não se fixavam há centenas de anos [sic] — tornou-se um portal inesperado para a liberdade». Ilan Braun em «A História do Serpa Pinto» em The Rebbe.org (web). O Nyassa também seria contratado várias vezes (pelo menos três) pelo Governo da Segunda República Espanhola no Exílio e por algumas associações de apoio aos refugiados frente-populistas para os transportar para o México, como por exemplo o British National Joint Committee for Spanish Relief, presidido pela Duquesa de Atholl. A última viagem foi de Casablanca a Veracruz, no México, em Setembro de 1942. José Alonso Mallol, ex-Diretor-Geral de Segurança do Governo da Frente Popular e depois delegado do Comité de Ajuda aos Republicanos Espanhóis [Junta de Auxilio a los Republicanos Españoles(JARE)] em Marrocos, organizou e contratou o transporte.

[15] A imprensa espanhola cobriu a chegada do Nyassa. Por exemplo, La Voz, 14 de Outubro de 1936, p. 1 e «Un buque portugués repatria a 1.445 españoles refugiados de Extremadura» in El Sol, 14 de Outubro de 1936, p. 4.

[16] No moderno glossário náutico português, «Capitão de Bandeira» é o oficial da Marinha de Guerra que embarca, com funções de comando, num navio mercante nacional colocado ao serviço do Estado português. O capitão de bandeira compartilha o comando do navio com o comandante civil e pode interferir nos procedimentos de navegação.

[17] PT/BCM-AH/Vapor Nyassa – «Relatório do Capitão de Bandeira do transporte Niassa com refugiados espanhóis para Tarragona» /Núcleo 320 – Pasta 118/4–6/IV/8/3. O diário catalão La Vanguardia, de 14 de Outubro de 1936, menciona seis chefes e oficiais, 29 pessoas entre suboficiais e cabos, 127 mulheres e crianças e 1.199 homens entre civis e soldados, o que não perfaz um total de 1.445 pessoas. Por seu lado, o ABC de Madrid, no seu número de 15 de Outubro, p. 14, em «Han llegado a Tarragona», menciona dez chefes, oficiais, suboficiais da Aeronáutica, Infantaria e Carabineros, 15 professores primários, quatro médicos, quatro advogados, dois veterinários, 130 mulheres, 59 crianças, 130 Carabineros, 20 soldados do Exército e 1.000 civis do sexo masculino.

[18] Foi possível identificar pelo menos os sargentos-mores Santiago Agujetas García e José Menor Barriga, os sargentos José Méndez Hidalgo, Fernando Gómez Muñoz e Joaquín Zafra Mill, os cabos de Carabineros Diego González Carmona e Leoncio Palácios e o motorista Manuel Álvarez. Todos eles tentaram regressar à zona rebelde de Espanha tendo enviado pedidos nesse sentido aos generais Franco e Queipo de Llano, por sugestão de Gil Robles. Héctor Alonso García, El coronel Puigdengolas y la batalla de Badajoz (Agosto de 1936), Valencia, PUV, 2014, pág. 318.

[19] PT/BCM-AH/ Vapor Nyassa – Relatório do CAPIBAN (Refugiados espanhóis para Tarragona) / Pasta 118/4 – 6/IV/8/3.

[20] PT/ANTT/Mi/gm/ maço 481 (Pt. 8)/10/NT 353. Provavelmente era o Savoia-Marchetti SM.62/S-12 de Cádis que, originalmente vindo da Galiza, passara pela base do Bom-Sucesso em Lisboa, e operava então no Estreito.

[21] PT/BCM-AH/ Vapor Nyassa – Relatório do CAPIBAN (Refugiados espanhóis para Tarragona) / Pasta 118/4 – 6/IV/8/3.

[22] Ibidem.

[23] Sob as ordens dos generais Sebastián Pozas Perea e José Sanjurjo y Rodríguez de Arias, a Guardia Civil fora crucial para reprimir a sublevação militar em Madrid e em Barcelona, sob o comando do general José Aranguren Roldán e do coronel Antonio Escobar Huerta. A revista brasileira PAN, Semanário de Leitura Mundial, de 27 de Agosto de 1936, reconhece esse facto ao afirmar nas suas páginas do meio que a Guardia Civil espanhola tem sido o esteio do Governo de Azaña. Em 29 de Agosto de 1936, para premiar a fidelidade dos guardias civiles que haviam permanecido leais ao governo durante o Alzamiento de Julho de 1936 e separá-los dos «traidores rebeldes», as autoridades de Madrid decidiram renomear a Guardia Civilnas áreas que controlavam como Guardia Nacional Republicana. Para comandar a nova força, escolheram o general José Sanjurjo y Rodríguez de Arias.

[24] PT/BCM-AH/ Vapor Nyassa – Relatório do CAPIBAN (Refugiados espanhóis para Tarragona) / Pasta 118/4 – 6/IV/8/3.

[25] Ibidem.

[26] Ibidem.

[27] Ibidem.

[28] PT/BCM-AH-Núcleo 25/item 125. «Relação da Comissão do Contratorpedeiro Douro a Tarragona e Alicante». 6/XXXIX/6/5.

[29] Mais tarde veio a saber-se que essas pessoas já haviam deixado Barcelona para Marselha.

[30] Félix João Camilo Correia, Quem vem lá? Gente de Paz! Gente de Guerra…, Lisboa, e/A, 1940, pp. 95-98.

[31] Público, Lisboa, 28 de Outubro de 2006, artigo de Isabel Salema.

[32] Moisés Alexandre Antunes Lopes, Refugiados Espanhóis em Portugal (936-38): O caso de Elvas, Tese de Mestrado em História Moderna e Contemporânea, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2017, p. 84.

[33] Ibidem, p. 125.

[34] José Sánchez Jiménez, La España Contemporánea, Vol. III (De 1931 a nuestros días), Madrid, Istmo, 2004, p. 154.

[35] No seu processo, nas questões de avaliação respondidas pelo seu comandante do Batalhão, sedeado em Évora, o Tenente Seixas é classificado como tendo boa aptidão física, bom comportamento moral e cívico e vontade de aumentar os seus conhecimentos mas é considerado negativamente como pouco preocupado com o seu serviço e os interesses do Ministério das Finanças, evidenciando uma conduta militar medíocre e um fraco desempenho do comando. Na Nota Biográfica do seu processo consta que, a 4 de Novembro de 1936, foi punido pelo Ministro das Finanças [Salazar] com dois meses de inactividade. A pena foi cumprida no Quartel Militar de Elvas, onde se apresentou em Dezembro de 1936. Segundo consta do seu processo, as razões invocadas para aquela punição disciplinar foram:

Apesar de ter conhecimento concreto das ordens do subsecretário de Estado da Guerra [Fernando dos Santos Costa], do comandante da 4ª Região Militar e do seu comandante-geral para evitar a entrada de refugiados espanhóis em Portugal, perto da Choça do Sardinheiro, num sector da fronteira cuja defesa e vigilância inclusivamente estava a seu cargo, permitiu a concentração de algumas centenas de indivíduos de nacionalidade espanhola, sem dar conhecimento do facto aos seus chefes e organizando uma espécie de campo de concentração fora da vista das autoridades militares e sem o conhecimento do Governo; desde o início da concentração espanhola na Choça do Sardinheiro, a 21 de Setembro, manteve as autoridades militares e policiais iludidas sobre a dimensão dessa concentração, recorrendo a evasões ou informações incompletas ou inexatas; conseguiu que um oficial do Batalhão de Caçadores 4 que, no cumprimento das suas funções militares se propusera a fazer sair do território português os espanhóis concentrados em torno da Choça do Sardinheiro, desistisse dos seus propósitos face à informação que deu de que o facto já era conhecido e consentido pela PVDE quando esta polícia apenas tinha conhecimento da existência de 17 refugiados espanhóis; só a 7 de Outubro instado a informar e já não podendo ocultar a dimensão dos factos, informou as autoridades militares da existência de 180 espanhóis no local já indicado quando o número efectivamente existente era bem superior. Factos desta natureza, além de resultarem em danos materiais e morais para o Estado, que para cumprir os compromissos assumidos, teve que cuidar do transporte desses espanhóis ao porto espanhol de Tarragona, constituem violações aos parágrafos 1º, 2º, 3º, 56º, 61º e 62º do artigo 5º do Regulamento Disciplinar da Guarda Fiscal. PT/AHGNR/Guarda Fiscal/Processo n.º 1259.

[36] V. g. Arnau Gonzàlez i Vilalta, «L'incident del Nyassa al port de Tarragona (13 d'octubre del 1936) i el trencament de les relacions diplomàtiques entre Portugal i la República espanyola: la versió original i la periodística» em Drassana, Museu Marítim de Barcelona, n.º 21, Dezembro de 2013, no dossier Guerra i Pau, pp. 26-38.​​


José Luís Tavares

Nasceu em Idanha-a-Nova em 1954. Em 1977 licenciou-se em Engenharia Electrotécnica pela Academia Militar (como aluno civil). Foi Adjunto do Gabinete do Secretário de Estado da Defesa e Assessor do Ministro dos Negócios Estrangeiros. É auditor do Curso de Defesa Nacional (1991). É Doutor em História Contemporânea pela Universidad de Navarra.



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Como citar este texto:

ANDRADE, José Luís, – Guerra Civil de Espanha: A Viagem do Nyassa a Tarragona. Revista Portuguesa de História Militar - Dossier: Portugal no Contexto da Segunda Guerra Mundial, 1939-1945. [Em linha] Ano III, nº 4 (2023); https://doi.org/10.56092/UECM9533​​  [Consultado em ...]. 

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