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Editorial​

 

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Abílio Pires Lousada e Humberto Nuno d​e Oliveira​​​


A estratégia de acções sucessivas desenvolvida pela Alemanha de Hitler durante a segunda metade da década de 1930, absorvendo o Sarre, anexando a Áustria, desmembrando a Checoslováquia e culminando com a invasão da Polónia, a 1 de Setembro de 1939, conduziria inevitavelmente o continente a uma nova guerra. As declarações de guerra do Reino Unido e da França à Alemanha, dois dias depois, conduziram à Segunda Guerra Mundial, que duraria seis anos, causaria cerca de 60 milhões de mortos e traria ao mundo uma nova ordem política assente em duas potências emergentes: os Estados Unidos e a União soviética.

Beligerante na Primeira Guerra Mundial, Portugal guardará neutralidade na Segunda, uma neutralidade difícil, duramente negociada e colaborante na segunda fase do conflito.

As mais constantes e fortes relações bilaterais de Portugal foram as desenvolvidas com a Espanha, tendo Madrid feito parte do triângulo diplomático de Lisboa, onde se incluía Londres/Washington. Se o perigo espanhol se manteve, com Salazar assumiu contornos específicos, que aproximaram os dois países. O primeiro acontecimento marcante foi a Guerra Civil de Espanha (1936-1939), que implicou um problema de segurança na fronteira terrestre. O conflito, como é sabido, internacionalizou-se, com a Espanha a servir de palco de «ensaio» entre as ideologias nazi-fascista de Hitler e Mussolini (apoiantes de Franco) e comunista de Estaline (apoiante de Azãna). Salazar, ideologicamente próximo de Franco e temendo um regime comunista junto às fronteiras, fez do apoio sub-reptício ao caudilho espanhol um desígnio nacional, tendo a vitória deste dado início a uma base de entendimento na Península.

Também a Segunda Guerra Mundial contribuiu para essa cooperação. Consciente que assegurar a neutralidade passava por igual pressuposto na política espanhola, Salazar assumiu que a chave do sucesso estava na intermediação da Inglaterra e na assinatura de um tratado entre Portugal e a Espanha. Assim, os dois Estados assinaram um Tratado de Amizade e de Não Agressão, em 1939, e firmaram o Pacto Ibérico, em 1940, onde a neutralidade face ao conflito mundial e a convergência de interesses peninsulares ficaram vincadas. 

Assim, o Pacto com a Espanha e a prevalência da Aliança Inglesa constituíram os dois argumentos diplomáticos fundamentais para a neutralidade portuguesa durante a guerra. De facto, o bom entendimento entre os dois países peninsulares e a declaração da neutralidade portuguesa, facilitarão a não-beligerância espanhola e pesarão, significativamente, para manter a distância de Portugal e da Espanha em relação aos beligerantes do conflito. É evidente que o sucesso da neutralidade portuguesa se prende não só com os interesses e os objetivos de Portugal e Espanha, mas também com os interesses das próprias potências beligerantes na neutralidade estratégica da Península Ibérica, o que favoreceu e, em última instância, permitiu a concretização dessa neutralidade.

Neutralidade que surgia também condicionada pela posse do volfrâmio e pela dispersão das suas possessões em África, no Índico e no Pacífico. O triângulo estratégico Metrópole-Açores-Madeira motivava, à Alemanha, a invasão do primeiro vértice, e à Inglaterra e aos Estados Unidos a ocupação dos outros dois; no Pacífico, Timor encontrava-se na esfera de Co-prosperidade japonesa e na fronteira dos interesses estratégicos da Austrália; quanto ao volfrâmio, um minério estratégico ao nível dos armamentos, interessava a ambos os beligerantes. Mas, simultaneamente, essa situação conferia a Portugal uma importante liberdade de ação diplomática, exponenciada pela não existência de reivindicações territoriais. Daqui resultou a neutralidade colaborante, que concedeu aos aliados facilidades de utilização da base de Santa Maria (Reino Unido) e das Lages (EUA), a partir de 1943 e 1944, respetivamente, como moeda de troca da libertação de Timor-Leste, entretanto ocupado pelo Japão, e a venda de volfrâmio aos beligerantes. 

A neutralidade era a situação normal dos pequenos poderes europeus quando a guerra começou. Se muitos a abandonaram foi por terem sido invadidos pela Alemanha, a Itália ou a URSS. Portugal escapou a esse desiderato porque as grandes potências em confronto preferiam a manutenção das neutralidades peninsulares, mesmo quando quiseram usar de forma activa o espaço insular atlântico. O período de maior perigo foram os meses de Julho a Dezembro de 1940, quando a Alemanha pretendeu lançar uma grande ofensiva em direção a Gibraltar e ao Norte de África, que implicaria a beligerância espanhola e o ataque a Portugal. Depois, a preparação do plano Barbarossa de ataque à Rússia desviou a Alemanha do projeto de invasão da Península.

A neutralidade portuguesa acompanhou as várias fases da guerra: na fase de equilíbrio (Junho 1941-Maio 1943) são os aliados que querem manter a Península neutral, importante numa altura em que se planeiam os desembarques no Norte de África (Novembro de 1942); na fase da supremacia aliada, a Inglaterra pede o uso das bases nos açores em nome da aliança. Portugal concorda, na base de uma neutralidade colaborante, pensando na preservação do regime no pós-guerra através de uma maior aproximação dos Aliados.

Feito o enquadramento temático do N.º 4 da Revista Portuguesa de História Militar (RevPHM), impõe-se analisar, a nível político-militar e estratégico, a forma como o Estado Português lidou com as várias vicissitudes e circunstâncias a que foi sujeito durante a mais complexa e destrutiva das guerras. Daqui decorrente, importa aquilatar que planos de defesa territorial foram equacionados, que medidas militares implementadas, forças projectadas e conhecimentos adquiridos, tendo em conta primacial a manutenção da neutralidade e a preservação da soberania das várias parcelas territoriais portuguesas. 

O acervo da Revista inicia-se com uma abordagem prévia sobre a Guerra Civil de Espanha e a questão dos refugiados da Frente Nacional em Portugal, em que José Luís Andrade desmistifica, documentalmente, a tese do seu encaminhamento para as forças sublevadas de Franco. Como ponto de polémica aborda a questão da viagem do Niassaa Tarragona.

António Paulo Duarte e Jorge Silva Rocha emprestam o enquadramento político-estratégico do contexto de Portugal no âmbito da Segunda Guerra Mundial. O primeiro autor analisa «A Defesa Militar de Portugal de Entre-as-Guerras à 2.ª Guerra Mundial», ao nível das doutrinas e estratégias. Em concreto, “a estratégia militar de defesa construída, de acordo com o planeamento dos anos 30 do século XX, de como esta pretendia responder às ameaças que emergiam". Deixa ainda “no ar" de que modo replicariam as forças nacionais em caso de ataque de um potencial inimigo O segundo começa por referir que quando eclode o conflito mundial “nenhum dos organismos militares portugueses tinha ainda efetuado qualquer planeamento sério com vista à salvaguarda da integridade territorial e da soberania do país", atendendo à afectação dos recursos militares para questões de ordem interna. Se a Guerra Civil de Espanha fez soar “o alarme", a realidade da guerra obrigou a uma diplomacia militar em tempo de guerra, representando o reino Unido o actor charneira. Realmente, “com escassos meios militares próprios e sem garantias de auxílio externo, a defesa militar do território continental português teria sido meramente simbólica".

Jaime Regalado e Sérgio Revezes centram-se na defesa definida para o arquipélago dos Açores, com especial ênfase para a ilha Terceira, com amostra de ilustrações e esquemas alusivos. Jaime Regalado foca a potencial invasão arquipelágica pela Alemanha ou pelos EUA e Reino Unido, a possibilidade aventada de transferência da soberania, a projecção de forças a partir de território continental e a requalificação do sistema defensivo das ilhas S. Miguel – Terceira – Faial. Especificamente, o binómio meios aéreos/defesa aérea, e respectivas componentes técnico-tácticas, ocupa parte da sua análise, apresentando Angra do Heroísmo como preocupação fulcral e o Reino Unido como aliado primacial. A abordagem de Sérgio Rezendes contempla principalmente a vertente humana açoriana e as dificuldades sentidas no dia-a-dia à conta das ameaças de agressão ou ocupação subjacentes, a presença de um assinalável contingente militar metropolitano e a afectação dos recursos para a defesa militar. Consequentemente, face às exigências impostas pelo poder, o espírito de sacrifício dos açorianos foi levado ao limite, e o nível de vida num nível baixo, sobrelevando a cumplicidade entre Estado e sociedade. Conforme conclui, “a missão cumpre-se pelo espírito de equipa e resiliência entre autoridades civis e militares, procurando-se na concórdia a resolução dos problemas".

Augusto Salgado versa sobre a Marinha Portuguesa, apresentando a gestação de novos meios e as pouco conhecidas, mas muito relevantes, acções de combate desempenhadas para salvamentos de náufragos, no Atlântico e no Índico, durante todo o conflito mundial. David Martelo transporta-nos para a complexa realidade geopolítica vivida com a questão de Timor. Entre a pretensão dos governos holandês e australiano ocuparem preventivamente a metade leste de Timor (a Ocidental é soberania holandesa), a tergiversação do Reino Unido a lidar com tais pretensões e a irredutibilidade de Salazar em só aceitar a presença militar estrangeira em caso de invasão do território pelas forças nipónicas, a neutralidade portuguesa foi colocada em causa. Assim, no meio termo entre o desembarque de forças australiano-holandesas para barrarem o território australiano e a projecção de efectivos portugueses a partir de Moçambique para marcar posição de soberania, os japoneses atacaram e ocuparam a ilha.

Pedro Soares Branco expõe, com ilustração por fotografias da época, uniformes usados pelo Exército Português durante o período da Segunda Guerra Mundial. Para o efeito, recupera a “Circular da Repartição do Gabinete do Ministério da Guerra n.º 27, de 5 de julho de 1940", documento fundamental para a compreensão da uniformológica, curiosamente não publicado em Ordem do Exército. Por sua vez, o artigo de Humberto Nuno de Oliveira, com recursos a fotografias da época e alguns documentos, “aborda as consequências falerísticas resultantes da Missão militar portuguesa de observação à Alemanha e Frente Leste de 1942, na perspectiva dos oficiais portugueses envolvidos bem como dos oficiais alemães que acompanharam a mesma". Rematando que alguns oficiais foram prejudicados pelo momento e conjuntura da guerra, não tendo recebido as condecorações portuguesas para que haviam sido propostos.

David Miller recupera o episódio pouco referenciado do ataque britânico ao navio mercante alemão Ehrenfels em Goa, em 1943. Entre a história contada recentemente em livro e visionada em filme, o autor avança pela veracidade dos factos afirmando que se tratou de uma operação bélica com objetivo sério, realizada com precisão e que resultou em cinco mortos, na destruição total de quatro navios mercantes e suas cargas e, principalmente, a eliminação total da ameaça às operações navais aliadas no Oceano Índico. Já António Fragoeiro aborda a história contada na primeira pessoa do militar luso-descendente Jorge Rei, que participou nos dias seguintes aos desembarques do Dia D, na Normandia, como mecânico responsável pela manutenção e recuperação de viaturas e construção de estruturas e pontes, acompanhando e fotografando os acontecimentos até aos momentos finais do Terceiro Reich. O artigo de Carlos Daroz, partindo da Força Expedicionária Brasileira que combateu a Alemanha Nazi em Itália, tem o propósito de analisar o porquê de as forças terem desfilado em Lisboa a seguir ao conflito e como o acontecimento e respectivas homenagens foram percebidas pela imprensa escrita dos dois países.

Conforme norma da RevPHM em incluir em cada número um museu militar ou museu com acervo militar, faz todo o sentido que na temática em apreço o leitor possa visitar «O Núcleo de História Militar Manuel Coelho Batista de Lima», polo do Museu de Angra do Heroísmo/Ilha terceira, Açores. Constituído e inaugurado em 2016, é o único espaço museológico de temas militares não tutelado pelo Ministério da Defesa nacional. Tanto pelo edifício, onde se encontra instalado (antigo hospital militar), como pelo seu acervo, constitui um importante repositório de objetos, conhecimento e memória, material e imaterial, incontornável para e estudo e compreensão da História Militar de Portugal e dos Açores em particular. É com isto e muito mais que Jaime Regalado, Técnico Superior do Museu, guia o leitor em geral e os amantes da museologia em particular, por um dos mais notáveis repositórios da nossa memória histórica-militar.

A revista encerra, como vem sendo hábito, com artigos extra-Dossier. Júlio Rodrigues da Silva transporta-nos para a Guerra Civil Americana através da «Correspondência de Portugal», no ano de 1862. O texto analisa “as informações transmitidas aos leitores portugueses, moldando a sua visão da guerra civil americana", tendo em atenção “as limitações e insuficiências das notícias transmitidas, valorizando as perceções e conceções ideológicas dos seus redatores".

A RevPHM está profundamente grata pela colaboração de elevada pertinência histórica e rigor científico, generosidade que fundamenta que este presente número sobre Portugal e a Segunda Mundial chegue aos leitores com diversidade, originalidade e qualidade. Se os leitores são a razão de ser para que a Revista vá semestralmente acontecendo, os autores são a alma de uma escrita histórica que a justifica. Um bem-hajam! ​


ABÍLIO PIRES LOUSADA

Militar Historiador e Mestre em Estratégia, co-Director da Revista Portuguesa de História Militar. Membro do Conselho Científico da Comissão Portuguesa de História Militar e membro fundador da Associação Ibérica de História Militar. Autor/co-autor de 18 livros e de mais de 70 artigos sobre História Militar e Estratégia. Prémio Defesa Nacional e Jornal do Exército​


HUMBERTO NUNO DE OLIVEIRA

Historiador (doutor em História), co-Director da Revista Portuguesa de História Militar. Membro do Conselho Científico da Comissão Portuguesa de História Militar e da Direcção de História e Cultura Militar. Presidente da Academia Falerística de Portugal. Professor da Universidade Pedagógica Nacional- Dragomanov (Quieve). Cumpriu, como Miliciano, o Serviço Militar Obrigatório no Exército Português



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Como citar este texto:

LOUSADA, Abílio Pires, OLIVEIRA, Humberto Nuno de – Editorial. Revista Portuguesa de História Militar - Dossier: Portugal no Contexto da Segunda Guerra Mundial, 1939-1945. [Em linha] Ano III, nº 4 (2023); https://doi.org/10.56092/LAXL9277​.​  [Consultado em ...].







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