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A INVASÃO AUSTRALIANO-HOLANDESA DE TIMOR



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David Martelo​


Resumo

Ao iniciar-se a guerra no Pacífico, logo após o ataque japonês a Pearl Harbour, os governos holandês e australiano pressionaram o governo britânico no sentido de obterem a concordância do governo português para ocuparem preventivamente a metade leste de Timor, então colónia portuguesa. Este pedido, que, a ser aceite, constituiria uma violação da neutralidade de Portugal, tinha como fundamento a debilidade do sistema de defesa militar existente no território, o qual, uma vez ocupado pelas forças nipónicas, materializava uma ameaça directa ao território da Austrália. Salazar, logo no início das conversações, sublinhou de forma clara que só aceitaria o auxílio dessas forças DEPOIS de um eventual ataque da parte de tropas japonesas e NUNCA de forma preventiva – caso em que se colocaria fora do estatuto de neutralidade. Enquanto da parte do Foreign Office se vai manifestando alguma vontade de colaboração com os desígnios de Lisboa, no Oriente, o aparelho militar aliado – britânico e holandês –, deixando perceber uma evidente falta de serenidade, vai conduzir a questão de forma precipitada e acaba por levar à invasão da colónia portuguesa por uma pequena força australiano-neerlandesa, perante a qual o governador português manifestou o seu completo desacordo. Salazar apresentou um veemente protesto ao governo britânico e mandou preparar uma força que, partindo de Moçambique, deveria reforçar o dispositivo português e permitir a retirada das tropas aliadas. Ainda antes dessas tropas alcançarem o seu destino, os japoneses atacaram e ocuparam a ilha, de nada valendo a presença das forças aliadas ali desembarcadas. As pressões diplomáticas e militares de britânicos e holandeses haviam redundado num completo fiasco.

Palavras-Chave: Força australiano-neerlandesa, Invasão, Japão, Pacífico, Salazar, Timor.​

Abstract

When the war in the Pacific started, soon after the Japanese attack on Pearl Harbour, the Dutch and Australian governments pressed the British government to obtain the agreement of the Portuguese government in order to occupy the eastern half of Timor, then a Portuguese colony, as a preventive measure. This request, which, if accepted, would constitute a violation of Portugal's neutrality, was based on the weakness of the military defense system in the territory, which, once occupied by Japanese forces, would pose a direct threat to the territory of Australia. Salazar, early in the talks, clearly stated that he would only accept the assistance of these forces AFTER an attack by Japanese troops and NEVER in a preventive way - in which case it would place Portugal outside the status of neutrality. While from the side of the Foreign Office some signs of cooperation with the designs of Lisbon were noticed, in the East, the military allied apparatus - British and Dutch – showing an obvious lack of serenity, will conduct this issue so precipitously, leading to the invasion of the Portuguese colony by a small Australian-Dutch force. The Portuguese governor expressed his complete disagreement and protest. Likewise, Salazar strongly protested to the British government and ordered the preparation of a force that, departing from Mozambique, was to reinforce the Portuguese troops in Timor and allow the withdrawal of the allied troops. Even before these troops reached their destination, the Japanese attacked and occupied the island, making useless the presence of allied forces stationed there. The diplomatic and military pressure from the British and the Dutch had resulted in a complete fiasco.

Keywords: Australian-Dutch strength, Invasion, Japan, Pacific, Salazar, Timor.

 


A 7 de Dezembro de 1941, uma força aeronaval japonesa ataca de surpresa a base americana de Pearl Harbour, nas ilhas Havai, assestando um extenso golpe no potencial de combate da marinha de guerra estadunidense. Os EUA declaram guerra ao Japão e o conflito, até aí predominantemente europeu, transforma-se no segundo conflito mundial. Prontamente, o governo de Londres pergunta ao embaixador português, Armindo Monteiro, se Lisboa aceitaria que a defesa de Timor fosse feita por forças holandesas e australianas, sob comando britânico. Salazar manda responder que «por ora não considera o ataque japonês como provável e o auxílio britânico apenas pode ser aceite em caso de ataque efectivo e não perante presunção ou ameaça de ataque». Vieira Machado, Ministro das Colónias, envia para o governador de Timor instruções nas quais refere que, em qualquer hipótese diferente da prevista, deve considerar as forças como agressoras e resistir-lhes com os elementos disponíveis[1] – uma companhia de caçadores. Tanta candura não podia ter fundamentação estratégica. Não é possível imaginar que, consultando os seus conselheiros militares, não tenham eles feito ver a Salazar que um ataque japonês a Timor teria sucesso instantâneo.

A 9 de Dezembro, o Encarregado de Negócios holandês em Lisboa avista-se com Teixeira de Sampaio, Secretário-Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros[2], e pergunta se o governo aceitaria, no caso de ataque ao Timor português, o auxílio de tropas holandesas e australianas que se encontram na parte holandesa da ilha. Desta conversa foi informado o embaixador português em Londres, Armindo Monteiro, sendo instruído no sentido de frisar junto das autoridades britânicas que, em tal hipótese, contávamos «com o auxílio da Inglaterra devido por Tratado, o qual outro qualquer não deve dispensar nem suprir».[3] A posição de Lisboa assenta na convicção de que a entrada de forças estrangeiras em Timor se deve processar no âmbito da aliança existente, a qual, apesar das incertezas, dá mais garantias de retirada das mesmas, terminada a guerra, do que sendo a operação de auxílio conduzida por quem, por motivos geopolíticos, pode ter interesse em nunca mais de lá sair. 

Num memorando de 11 de Dezembro, endereçado aos Chefes de Estado-Maior (CEM) britânicos, o Foreign Officecomeça por referir o seguinte: «Forças holandesas estão prontas para entrar no Timor português e as autoridades locais holandesas estão ansiosas por actuar sem demora.» Depois, descrevendo as conversações em curso com o governo português, para, em nome da aliança anglo-lusa, o persuadir a aceitar, desde já, a entrada de forças australianas e holandesas na parte portuguesa, antes mesmo de um ataque nipónico, solicitava aos chefes militares uma opinião para o caso do governo de Lisboa recusar: 

«É necessário, por conseguinte, decidir se, no caso de termos de escolher, preferimos utilizar o Timor português imediatamente ou, no futuro, a utilização das ilhas portuguesas do Atlântico e a implementação da aliança. Os pontos relevantes são: (a) Saber se um ataque japonês ao Timor português é, de facto, provável, dadas as várias alternativas que estão à sua disposição e se um tal ataque está iminente; (b) Saber se é essencial para a nossa segurança no Extremo-Oriente (e particularmente para a da Austrália) negar aos japoneses a utilização do Timor português; e (c) Nessa eventualidade, saber se as forças holandesas e australianas que se prevêem lá empenhar são as adequadas para esse fim. Se conseguirmos cooperar com sucesso com os portugueses no caso do Timor português, criaremos um importante precedente para a cooperação noutras partes do Império português. Se formos rudes para com os portugueses neste assunto, podemos não só prejudicar uma cooperação futura como causar uma imediata reacção política em Lisboa, a qual seria desfavorável aos nossos interesses na Península Ibérica.»[4]

As cautelas do Foreign Office têm tudo a ver com as negociações que decorrem entre Londres e Lisboa acerca da utilização dos Açores pelos Aliados. Temem os diplomatas britânicos que qualquer passo que seja dado, prejudicial à neutralidade de Portugal perante o Japão, possa inviabilizar um acordo que permita a ocupação consentida das ilhas atlânticas. As três questões colocadas pelo Foreign Office resumem perfeitamente o que deveria constituir o método de análise da questão de Timor. Denotam um raciocínio lógico e, sobretudo, sente-se que foram concebidas com serenidade. Serenidade é, no entanto, o que mais escasseia entre holandeses e australianos, pelo que nem sequer se apercebem da fragilidade militar do plano que pretendem implementar. Estão reunidas, por isso, diversas condições propícias a uma violação gratuita da neutralidade portuguesa e ao fracasso da missão das tropas a empenhar. 

A 12 de Dezembro, Salazar envia a Armindo Monteiro instruções claras no sentido de manter a posição portuguesa de não-aceitação de auxílio militar antes da consumação de qualquer acto hostil. Em Lisboa, Sampaio informa o embaixador britânico de que o governo português vai enviar ao governador de Timor, Ferreira de Carvalho, instruções que o autorizam a solicitar auxílio militar, mas sempre sem qualquer carácter preventivo. No mesmo dia, respondendo ao memorando do Foreign Office do dia anterior, o Joint Planning Staff[5] tem uma reunião de avaliação da situação quanto à possibilidade de um ataque japonês a Timor, concluindo «que, presentemente, tal não era provável, embora constituísse um natural desenvolvimento se e quando os japoneses estendessem as suas operações a esta parte das ilhas das Índias Orientais Neerlandesas».[6] Esta estimativa do War Office[7] só a 19 de Dezembro chega ao Foreign Office, quando tudo já se havia consumado em Timor. De facto, ao fim da tarde de 15, o Ministro holandês acreditado em Londres comunica ao Foreign Office que haviam sido detectados submarinos japoneses ao largo de Timor, pelo que as autoridades locais, de acordo com os australianos, tinham decidido que desembarcariam na parte portuguesa da ilha, na manhã de 17, com uma força combinada de 350 homens. Esse desembarque far-se-ia com ou sem a concordância das autoridades portuguesas.

Às 23 horas de 15, o governador de Timor recebe em Díli o telegrama secreto n.º 17, do Ministro das Colónias, datado de 12, no qual Vieira Machado ordena o contacto com o governador holandês, para lhe comunicar que

«tem instruções para combinar ajuda que eventualmente deva ser dada por Governo Inglês por intermédio forças holandesas australianas para defesa nossa parte Timor caso ataque japonês se verifique contra nós. V. Ex.ª não perderá de vista seguintes pontos fundamentais: 1.º Pode encontrar desejo colaboração efectiva imediata como prevenção contra perigos ataque japonês: nossa posição é aceitar auxílio só para caso sermos atacados nossa parte ilha por Japão pois política Governo é manter neutralidade até ataque efectivo qualquer potência seu território soberania; 2.º Auxílio é o que nos é devido aliança inglesa e Governo Inglês nos comunica estar disposto prestar por intermédio forças australianas e holandesas sob ordens gerais alto comando britânico»[8]

As instruções são coerentes com a defesa intransigente da neutralidade portuguesa. Contudo, as medidas militares não tomadas a tempo, pelo vazio defensivo criado, contrariavam esse desejo, só viável se assentasse num forte dispositivo militar português. Acrescente-se a particularidade de o telegrama, dada a sua classificação de secreto, ter de ser decifrado pessoalmente pelo governador português, o qual só na manhã de 16 logrou ter o texto completamente pronto, após vários pedidos de correcções resultantes de erros de transmissão. Depois, não dispondo de transporte nem de sistema de cifra para comunicação telegráfica com o governador holandês, e, não se encontrando em Díli o cônsul britânico, Ferreira de Carvalho preparou-se para estabelecer o contacto ordenado no dia seguinte, 17 de Dezembro.

Em Lisboa, ainda em 16, o embaixador britânico, Ronald Campbell, avista-se com Sampaio e comunica-lhe que a avaliação de emergência que está a ser feita por australianos e holandeses aponta para a necessidade de o auxílio a Timor se concretizar mesmo antes de Ferreira de Carvalho ter tempo para formular o necessário pedido. Nestes termos, o auxílio teria uma feição preventiva, contrariando as intenções expressas por de Lisboa. Não admira que a reacção de Sampaio tenha sido de sentida indignação. No relato desse encontro, que Campbell remeteu para o Foreign Office, o embaixador britânico afirmaria: 

«O Secretário-Geral, a quem acabei de fazer a comunicação da forma mais diplomática e persuasiva possível, reagiu da forma mais desfavorável [...] Entretanto, recomendo veementemente que o desembarque não seja efectuado contra a oposição do governador português.» No telegrama seguinte, Campbell acrescenta: «O doutor Sampaio disse que a essência do acordo consistia em que o governador fosse instruído no sentido de entabular localmente conversações de modo que o auxílio que ele estava autorizado a solicitar, no caso de um ataque, pudesse disponibilizar-se nas melhores condições [...]. Se as forças desembarcassem antes de qualquer ataque se materializar, Portugal tornar-se-ia imediatamente beligerante e o primeiro e não último resultado seria a tomada de Macau. [...] Lancei mão de todos os argumentos óbvios [...] mas não consegui demover o Dr. Sampaio. [...] Sinto que, se persistirmos numa atitude de “entrar sem convite",[9] perderemos a confiança do Governo Português, com desastrosas repercussões nas conversações de Londres.»[10]

Na manhã de 17, pelas 07.15, apareceu o cônsul britânico, David Ross, vindo procurar o governador português. Vinha informá-lo de que, cerca das 8 horas, seria procurado por dois oficiais superiores, um australiano e um holandês, para entabularem conversações. À hora prevista, o cônsul e os dois oficiais apresentaram-se no gabinete do governador. Sigamos o relato do governador português:

«Sem quaisquer preâmbulos, o oficial australiano, tenente-coronel W. Zeggaff, disse que, segundo instruções que os comandos australiano e holandês de Kupang[11] tinham recebido dos respectivos governos, as forças australianas e holandesas deviam dar auxílio militar ao governo da colónia portuguesa de Timor quando este o pedisse para defesa do seu território ameaçado pelos japoneses, devendo, segundo as mesmas instruções, o Governo das Índias Neerlandesas, quando considerasse que havia perigo iminente de qualquer acção hostil das tropas japonesas contra território português, avisar desse facto o governador da colónia, o qual, em face desse aviso, pediria o auxílio que lhe seria imediatamente prestado.» 

Depois de exposto o teor das instruções que haviam recebido, o tenente-coronel prosseguiu a sua entrevista com o governador, nos seguintes termos: «Acrescentou que esse perigo iminente existia nesse momento, visto que tinham sido assinalados nas proximidades de Timor vários submarinos japoneses e que, nessas condições, eles vinham com a missão de me avisar disso, a fim de que eu imediatamente solicitasse o auxílio ajustado, que me seria prestado logo.»[12]

Ferreira de Carvalho respondeu, de acordo com as instruções recebidas de Lisboa, que o auxílio negociado só seria pedido depois de agressão efectiva e nunca por ameaças de perigo iminente. O oficial australiano replicou – e, neste caso, com inteira razão do ponto de vista militar – que solicitar o auxílio depois do ataque desencadeado seria demasiado tarde para ter sucesso. E, como nunca haviam admitido que a resposta do governador português condicionasse o que quer que fosse, esclareceu prontamente «que, de resto, as tropas que deviam prestar-nos auxílio estavam já próximo de Díli e tinham de desembarcar, pois eram essas as instruções que tinham».[13] Seguiu-se uma intensa discussão, em que o oficial australiano foi acentuando a sua agressividade verbal e manifesta grosseria, enquanto o oficial holandês se mantinha contido e cortês. Por fim, o tenente-coronel Zeggaff declarou que as tropas estavam a chegar e tinham mesmo de desembarcar, «pois isso era indispensável para garantir a defesa e segurança não só do nosso território como das suas próprias forças».[14] Ferreira de Carvalho, percebendo que o diálogo resvalara para o ultimato, exigiu que o mesmo fosse entregue por escrito, de modo a possibilitar uma sua resposta igualmente por escrito. O documento, em inglês, ditado pelo tenente-coronel Zeggaff e dactilografado pelo cônsul Ross, foi entregue ao governador português às 09.20 de 17 de Dezembro. Dizia o seguinte: 

«Exmo. Governador de Timor português – As instruções que nos foram transmitidas pelo Governador-Geral das Índias Orientais Neerlandesas, emitidas em concordância com o Governo da Austrália, são no sentido de prestarmos auxílio militar ao Governo de Timor português quando solicitado, e também que, quando o Governo das Índias Orientais Neerlandesas considerar que o perigo de uma acção hostil por parte do Japão contra Timor português está iminente, o Governo de Timor português será informado em conformidade e pedirá auxílio conforme acima descrito. Considera-se, neste momento, que é necessária uma acção urgente das tropas holandesas e australianas e que estas tropas desembarquem imediatamente para auxiliar na defesa de Timor português. De acordo com as nossas instruções, essas tropas vão ser enviadas imediatamente. Pedimos que aceitem o auxílio dessas forças. W. Watt Zeggaff, tenente-coronel, comandante das forças australianas em Timor, e J. Weltiger, tenente-coronel, comandante das forças holandesas em Timor.»[15]

Depois de uma breve reunião com os principais oficiais presentes na colónia, Ferreira de Carvalho conclui que não há condições para oferecer resistência. Enquanto decorrem as conversações e até à consumação do desembarque, aviões holandeses vão sobrevoando Díli e outras partes da colónia. Chega, entretanto, um telegrama de Lisboa. O governador português admite que nele venham novas instruções e pede mais tempo de espera aos dois oficiais estrangeiros, a fim de permitir que o telegrama seja decifrado. É acordado que esperam até às 10.45. Uma vez decifrado, verifica-se que o telegrama fora emitido pelo Subsecretário das Colónias e era a confirmação de instruções anteriores, pelo que o problema em nada muda de figura. Ciente da inutilidade de qualquer gesto de resistência, mesmo simbólica, Ferreira de Carvalho redige a seguinte resposta ao ultimato australiano-holandês:

«Aos Ex.mos Srs. tenente-coronel comandante das forças australianas em Timor e tenente-coronel comandante das forças holandesas em Timor. – Em resposta à comunicação que V. Ex.as me fizeram hoje às 9 horas e 20 minutos a.m., pedindo para aceitar o auxílio das forças australianas e holandesas que devem ser mandadas imediatamente para o território desta colónia, tenho a honra de comunicar a V. Ex.as que não posso aceitar esse auxílio, conforme instruções do meu Governo em Portugal, visto que a nossa posição perante o conflito é de neutralidade e não se deu nenhuma agressão ao nosso território [...] Nestas condições, qualquer desembarque de forças será tomado como uma violação à neutralidade do País. – A bem da Nação. – Residência do Governo da Colónia de Timor, em Díli, 17 de Dezembro de 1941. – O Governador, assinado e dactilografado, Manuel de Abreu Ferreira de Carvalho[16]

Entregue o documento aos dois oficiais, depois de traduzido para inglês, ambos o lêem, após o que declaram que, antes do desembarque, virá a terra um parlamentário. Depois, retiram-se na companhia do cônsul Ross. Às 11 horas, o governador expede para Lisboa o seguinte telegrama: «Recebi ultimato autorizar sob pretexto auxílio desembarque imediato forças respondi não autorizar termos instruções recebidas. Colónia deve ser imediatamente atacada navios aviões à vista impossível resistir.»[17]

Também é informado o cônsul do Japão, sendo-lhe asseverado que o desembarque era feito sem a concordância do governo português.

Pouco depois das 12 horas, é já visível um desembarque de tropas na costa timorense, a oeste de Díli. Às 13 horas, dois navios aproximam-se do porto de Díli, e, cerca de meia hora depois, arreiam embarcações nas quais transportam para terra as primeiras tropas holandesas. Por essa altura, o governador decide retirar-se para a sua residência, em Lahane, levando a principal documentação classificada e o pessoal do seu gabinete. 

Ao tomar conhecimento do telegrama do governador de Timor, comunicando o desembarque das tropas holandesas e australianas, Salazar percebe, então, que de pouco lhe serve ter por si a razão e o direito. Resta-lhe vincar, pela via diplomática, o profundo descontentamento pela ofensa que, num contexto de aliança, assim se consumara. Convocando Campbell, Salazar – no relato do embaixador – expressa o seu desejo de uma explicação da parte do governo de Londres acerca das circunstâncias em que se tinha dado a violação do território português: «Foram os comandantes locais que decidiram agir por conta própria?[18] Tratou-se de um acto forçado pelos governos holandês e da Commonwealth, ou o Governo de Sua Majestade foi um completo e deliberado participante, depois de pesar as implicações e as graves consequências que para o seu aliado podem seguir-se?»[19] Campbell, no relato que enviou ao Foreign Office, não esconde o ambiente tenso em que a conversa tem lugar. Salazar diz-lhe, secamente, que não precisa de o reter por mais tempo, forma diplomática de dar por findo o encontro. Visivelmente embaraçado, o embaixador britânico ainda procura defender a atitude tomada em Timor com a ameaça iminente de uma acção japonesa na ilha. De nada lhe serve a argumentação, porque, como reportou para Londres, «o Dr. Salazar disse que não pondo em causa o que eu tinha dito, isso não altera o facto de termos violado território português, numa altura em que ele apenas autorizara a realização de contactos».[20]

Nos dias que se seguem, Armindo Monteiro e Campbell procuram aconselhar os respectivos governos a um esforço de contenção e mútua compreensão, de modo a formular um entendimento que suavize a crispação resultante do desembarque aliado. Em 19 de Dezembro, o War Cabinet aprecia a questão de Timor. Do registo dessa reunião, resulta significativa a seguinte passagem da intervenção do Lorde Presidente, Sir John Anderson: 

«A decisão que tomámos era a única possível, implicando, nomeadamente, que reconhecíamos que o Governo Português tinha o direito de protestar veementemente contra a atitude adoptada. Pela nossa parte, lamentamos muito que tenha sido necessário tomar esta decisão, mas temos de encarar a realidade do contexto. Tudo teria sido diferente se Portugal tivesse sido capaz de organizar uma defesa efectiva. Devemos, certamente, estar dispostos a retirar em qualquer altura quando Portugal estiver em condições de defender adequadamente o seu território, e, retiraremos as nossas forças quando a situação o tornar possível.»[21]

Se é certo que a passagem sublinhada faz todo o sentido em termos estratégicos, também se verifica, pelos mesmos motivos, que a violação do território de Timor tem tudo para se revelar uma acção gratuita. A força invasora, com um efectivo de cerca de 800 homens[22], cometia uma violação baseada em pressupostos estratégicos aceitáveis, mas com um volume de meios proporcionalmente muito inferiores à importância que a operação deveria ter. Se a colónia estava anteriormente mal guarnecida, perante a hipótese de um desembarque japonês, mal guarnecida continuava com as reduzidas forças aliadas ali desembarcadas.

Ainda em 19 de Dezembro, o embaixador Campbell desloca-se ao ministério dos Negócios Estrangeiros, sendo portador de um documento que consubstancia a resposta do governo de Londres às perguntas colocadas por Salazar. Campbell sabe que o chefe do governo português se apresta a fazer uma comunicação, na Assembleia Nacional, e teme que diga algo que possa afectar irremediavelmente as relações luso-britânicas. Assim, ao entregar o documento a Teixeira de Sampaio, pede que o mesmo vá a conhecimento de Salazar o mais urgentemente possível. O documento fora escrito com o tempo suficiente para dar lugar a uma recuperação da serenidade. No último parágrafo, em jeito de sumário, era referido: 

«O Governo de Sua Majestade está muito desgostoso por, sob a pressão das exigências estratégicas, ter sido compelido a uma acção contra a qual reconhece que o Governo Português tem estrita justificação para protestar. [O Governo de Sua Majestade] Lamenta especialmente ter causado esta desfeita ao governo do seu velho aliado, cuja política no presente conflito tem sido um facto que mereceu da sua parte aprovação e admiração. Em contrapartida, está confiante que o Governo Português reconheça a urgente necessidade militar de uma acção que era necessária para defender o interesse vital das nações Aliadas na guerra que o Japão lhes impôs.»[23]

Apesar dos termos cordatos do documento, Salazar não recua na posição que toma perante a Assembleia Nacional, na tarde desse dia 19. Depois de fazer uma resenha minuciosa dos acontecimentos, sublinha que, perante a intimação feita pelos oficiais australiano e holandês, «o governador, dentro das instruções recebidas, recusou-se a autorizar o desembarque, ao qual, aliás, se não podiam opor as modestas forças locais» [...] Seguidamente, o chefe do governo frisa que o processo não está findo, mas que deverá sê-lo, do que o país será oportunamente informado. Antecipa, pela primeira vez, que «continua o estudo que estava fazendo e a preparação dos reforços da guarnição de Timor» e conclui: 

«O governo tem a consciência de haver-se conduzido com lealdade, com seriedade, com zelo até pelos interesses alheios, com a noção exacta dos deveres da aliança e dos direitos soberanos da nação. Ele julga-se com direito a ser tratado pela forma como trata todos os assuntos e designadamente as suas negociações com o governo britânico. O que a nós, pequenos e fracos, não é permitido, não o é igualmente aos governos que dirigem os grandes impérios – não lhes é permitido perder a calma necessária para distinguir os serviços dos agravos. E pela confiança na própria valentia dos seus soldados hão-de igualmente não confundir a diligência e a precipitação: a primeira aconselharia porventura a negociar, com respeito pelo direito alheio; a segunda levou a invadir o território de um neutro, de um amigo, de um aliado.»[24]

A argumentação de Salazar na censura do comportamento britânico é arguta e moralmente certeira. Até na avaliação da falta de serenidade demonstrada pela componente militar denota uma lúcida apreciação. Em contrapartida, quem se recorda ou estuda o pensamento do Estado Novo em matéria colonial terá dificuldade em compreender como é que a existência de um IMPÉRIO se compaginava com o “nós pequenos e fracos" e esta expressão com o mapa que, nas paredes das escolas, lembrava que “Portugal não é um país pequeno"... De anotar, também, que nenhum dos deputados levanta a questão de culpas próprias decorrentes da inexistência em Timor de um dispositivo militar digno desse nome, como se esse pormenor mais não fizesse do que atestar a boa-fé e o espírito pacífico dos portugueses.

Entretanto, na noite de 20 para 21 de Dezembro, chega a Díli um telegrama do Subsecretário das Colónias, no qual se afirma ser «possível tenha havido equívoco nas comunicações transmitidas às suas forças por Governos interessados» e se recomenda que deve «tratar com correcção oficiais e forças desembarcadas sem que relações sejam tais possam dar a entender conformidade ou acordo secreto para sua vinda e permanência» e acrescenta que «governo trabalha reforço guarnição ilha.»[25] Fica, deste modo, restabelecido o entendimento entre o governo central e o da colónia e dá-se ao governador Ferreira de Carvalho a primeira indicação de que está a preparar-se o reforço militar de Timor.

Em 21, Salazar telegrafa para Londres instruções para Armindo Monteiro. Informa-o de que vai entregar a Campbell dois memorandos, dos quais envia cópias, para que o diplomata português os entregue no Foreign Office. Além disso, recomenda o seguinte: «Memorando dá V. Ex.ª ideia posição tomada por Governo e medidas em curso para permitir a Governos inglês e holandês solução caso. Se tropas desembarcadas não são retiradas imediatamente subsistirá dificuldade grave, que será necessário remover, da presença simultânea umas e outras forças que tem de ser evitada. Tenho esperança [...] reforços [...] cheguem à volta de 25 de Janeiro.»[26]

Em 22 de Dezembro, Teixeira de Sampaio convoca o embaixador britânico e entrega a Campbell uma nota com «o mais enérgico protesto contra o acto praticado em violação injustificável do território português» e com o pedido de retirada das tropas desembarcadas, que o governo português se propõe substituir por tropas suas, com o dobro dos efectivos.[27] Na mesma data, é entregue ao Encarregado de Negócios holandês um outro memorando em que a posição portuguesa é manifestada de forma mais radical.

Procurando salvaguardar a sua posição perante o Japão, o governo de Lisboa comunica ao de Tóquio que a invasão de Timor fora um puro acto de força, praticado sem assentimento do governo ou das autoridades locais e recebe como resposta que o almirantado nipónico se verá obrigado a destruir as tropas desembarcadas se as mesmas não se retirarem.

Na cabeça dos responsáveis britânicos surgiu o temor de que toda a situação poderia piorar se, depois de um passo tão grave, justificado pela insuficiência da guarnição militar portuguesa em Timor, os desenvolvimentos futuros viessem a demonstrar que os meios aliados lá colocados também não cumpriam os requisitos para o cumprimento da missão. Assim, ainda a 22 de Dezembro, o Subsecretário Sargent, numa conversa com o Ministro da Holanda em Londres, faz-lhe um alerta de que deixou o seguinte registo: «Aproveitei a oportunidade [...] para lhe salientar que, tendo ocupado o Timor holandês e português para os proteger dos japoneses, era fundamental que as forças aliadas fossem suficientes para repelir um ataque japonês. Faríamos uma figura de patetas se, depois de tudo o que dissemos, os japoneses conseguissem tirar-nos a ilha.»[28] Esta preocupação de Sargent constitui um dos momentos mais curiosos de todo o processo de Timor. Um membro do executivo britânico, à distância de milhares de quilómetros, consegue ver o que toda a estrutura militar local, desde o general Wavell até aos responsáveis holandeses e australianos, parece não enxergar: que as tropas aliadas que guarnecem a ilha são ridiculamente insuficientes – em quantidade e qualidade – para fazer frente ao um exército poderoso, dispondo de uma clara superioridade aérea e naval. No dia seguinte, 23, os mesmos temores de fiasco militar em Timor são endereçados por escrito pelo Foreign Office ao War Office. Entre outras considerações, chama-se a atenção para as consequências diplomáticas de um falhanço estratégico em Timor: «Compreendemos que os CEM atribuem considerável importância estratégica à conservação de Timor. [...] se [...] as nossas forças viessem a revelar-se inadequadas para manter as suas posições na colónia, o efeito nas nossas relações com Portugal seria calamitoso.»[29]

Em 25 de Dezembro, Ferreira de Carvalho recebe um telegrama do Ministério das Colónias, no qual é informado de que o destacamento de tropas que está a ser preparado em Moçambique para seguir para Timor é composto por uma companhia indígena de caçadores, uma companhia de engenhos e uma bateria de artilharia de montanha. Trata-se de uma solução bastante económica, que não sobrecarrega grandemente o orçamento, mas que não pode impressionar fortemente as autoridades australianas e holandesas.

Em 27, por não ter instruções sobre a atitude a tomar em caso de ataque japonês, estando presentes forças estrangeiras, o governador enviou para Lisboa o seguinte telegrama: «Virtude situação perante forças desembarcadas peço esclarecer qual atitude tomar no caso de ataque por japoneses.»[30] Passam-se vários dias sem que a resposta chegue.

Em Lisboa, Sampaio e Campbell acordam, em 29, uma fórmula para a substituição das tropas holandesas e australianas, a qual se fará logo que as tropas portuguesas cheguem à colónia. Discorda desta solução o general Wavell, comandante-chefe britânico no Extremo-Oriente[31], o qual pretende que, mesmo após a chegada das tropas portuguesas, as forças holandesas e australianas permaneçam na colónia. Embora Wavell tenha obtido o apoio de Churchill, Eden consegue contrariar a posição do primeiro-ministro britânico e a fórmula decidida em Lisboa entre Sampaio e Campbell acaba por prevalecer. 

Embora as tropas portuguesas estejam prontas a partir de Moçambique e haja acordo entre Sampaio e Campbell sobre a substituição das forças australianas e holandesas, falta, ainda, um compromisso oficial dos governos aliados interessados, garantindo que retirarão à chegada do contingente português. Os contactos que o embaixador britânico vai tendo com o Foreign Office não o deixam tranquilo. Em 30 de Dezembro, Campbell telegrafa para Londres a expressar as suas apreensões: 

«Pode ser que esteja enganado, mas tenho a desconfortável sensação de que o Governo da Commonwealth está esperançado numa situação que eles considerariam justificativa da completa posse de Timor português pelo período de duração da guerra. Isto daria um golpe fatal às relações anglo-lusas.»[32]

A 31 de Dezembro, o Central Department elabora um documento, no qual se expõem as múltiplas razões que aconselham, para benefício da causa dos Aliados, que se componham, com a máxima urgência, as relações anglo-lusas. Depois de diversas considerações, de natureza geopolítica, económica e moral, o documento lança um olhar sobre a parte estratégica do problema especificamente relacionada com Timor:       

«5. No outro prato da balança deve ser tida em conta a importância de manter Timor. Isto é, obviamente, importante, e, aos olhos dos australianos, aparentemente vital. Sobre a iminência de uma ameaça a este território parecem existir duas opiniões. Mas admitindo que é uma realidade, é improvável que sejamos, de facto, capazes de defender o território. Admite-se: a. Que não possamos enviar para lá muito mais do que um batalhão; b. Que tal efectivo seria inadequado contra um ataque de qualquer dimensão considerável. Seria simplesmente uma insensatez arruinar a ligação anglo-lusa e, depois, falhar a manutenção de Timor português. Não há razão para supor que um batalhão português seja incapaz de dar conta das actividades de uma 5.ª coluna ou de repelir um ataque de pequena envergadura. Esta última contingência parece improvável.»[33]

Procurando ganhar tempo, o Foreign Office começa a construir outra ideia acerca da defesa da ilha. Ao mesmo tempo que se telegrafa para Lisboa saudando a decisão portuguesa de enviar tropas para Timor, levantam-se as primeiras dúvidas sobre a sua capacidade para defender a colónia. Sublinha-se, convenientemente, que o governo britânico sempre considerou as tropas aliadas lá estacionadas como insuficientes nas actuais circunstâncias. Ainda em 31, Campbell reage com firmeza, vendo, uma vez mais, a posição britânica a tentar alterar a solução custosamente alcançada, quando os portugueses haviam decidido enviar o dobro das tropas estacionadas em Timor, justamente para que se não discutisse o valor dessa força: «As suas tropas estão aguardando a partida, e, se antes de aceitarem uma solução que muito terá custado para o seu orgulho, embarcarmos agora numa discussão relativa à conformidade da força portuguesa, parece-me que, à luz de passadas garantias, damos-lhe [a Salazar] todos os motivos para duvidar da nossa boa-fé.»[34]

No Foreign Office existe a percepção de que a questão timorense coloca ao governo de Londres questões em que os interesses de Portugal e da Austrália não coincidem. Apesar do empenho do governo de Londres em melhorar a sua manobra estratégica no Atlântico, pela utilização de facilidades em territórios portugueses, há, entre os altos funcionários do Foreign Office, quem esteja disponível para argumentar com a arrogância de quem dispõe de mais poder. Nessa ocasião, escreveu Sterndale Bennett, chefe do Far Eastern Department

«O problema é tal que agora provavelmente terá de ser submetido ao Conselho de Ministros. Vamos pressionar o Governo Português para encarar a realidade e aceitar uma situação perfeitamente razoável (que não será tornada pública), embora possa envolver o risco de uma ruptura com Portugal? Ou vamos pressionar o Governo Australiano para retirar sem condições, correndo o risco de um sério conflito com eles e de um grave perigo para a Austrália? Talvez não fosse prejudicial falar ao Dr. Salazar com franqueza. Os portugueses nunca teriam conservado as suas colónias [...] se não fossemos nós. Não as conservarão presentemente a não ser por nosso intermédio. Vai a aliança falhar-nos na hora da nossa maior necessidade, especialmente quando o que fizemos foi feito como amigos e não como inimigos?»[35]

Da parte britânica, parecia ter desaparecido o sentimento de urgência dos primeiros dias pós-Pearl Harbour, em grande parte porque a parte prática – a ocupação de Timor português por tropas aliadas – estava consumada. O Governo Português, passados os primeiros dias de genuína indignação, percebe que não tem saída soberana para a situação. Assim, o Ministério das Colónias expede, a 31, um telegrama para o governador de Timor, recebido em Díli a 2 de Janeiro, no qual, na parte respeitante ao envio de reforços militares, se afirma: «O governo tem orientado solução sentido reforçar com tropa Moçambique guarnição local acompanhadas desde Lourenço Marques por um aviso [...] não temos querido dar ordem embarque sem estarmos seguros conveniente sequência acontecimentos. Disto temos estado a tratar junto Governo Inglês que até agora não sugeriu qualquer fórmula melhor que sugerida por nós.»[36] Apesar de tudo, a indignação convivia bem com a humilhação resultante da falta de força.

Em 1 de Janeiro de 1942, o Foreign Office decide enviar aos CEM um extenso memorando, focando a proposta portuguesa de envio de tropas, para substituição das que haviam desembarcado na parte portuguesa da ilha, salientando-se os seguintes factores relevantes: 

«1) O Governo Português reagiu muito mal à ocupação de Timor, e o fracasso em encontrar uma solução para o conflito provocará uma tal deterioração das nossas relações que afectará seriamente os nossos interesses em Portugal. Isso significa que a nossa posição nas Ilhas Atlânticas Portuguesas (e.g. as facilidades de reabastecimento de combustíveis de que estamos a usufruir nos Açores), as comunicações através de Lisboa e as vitais importações de Portugal (volfrâmio e cortiça) ficarão imediatamente em risco, e que no futuro não haverá perspectivas de uma ocupação sem oposição das Ilhas Atlânticas. 2) Uma deterioração das relações Anglo-Portuguesas conduzirá inevitavelmente a uma crescente influência do Eixo em Portugal, e à deterioração das nossas relações com Espanha. 3) Em contrapartida, a solução agora proposta pelo Governo Português pode ser inaceitável para a Austrália, causando, assim, um aumento de tensão nas nossas relações com o Domínio. E, também não podemos garantir que será aceitável no tocante ao Governo Holandês. 4) Não pode ser considerado completamente certo que as tropas portuguesas, sozinhas, se oponham seriamente a um desembarque japonês, embora haja evidentes vantagens em atribuir ao Governo Português o ónus da defesa do seu próprio território. 5) O pior resultado seria aceitar uma ruptura das relações com Portugal e [...] falhar na protecção de Timor português. Consequentemente, é desejável que se tomem em consideração tanto a iminência da ameaça a esse território como a suficiência das forças disponíveis para a sua defesa.»[37]

Existe no Foreign Office a percepção e o receio de que a violação da neutralidade portuguesa em Timor, devido à insuficiência de forças ali empenhadas, possa resvalar para um embaraçoso fiasco. Em 2 de Janeiro, os CEM debruçam-se sobre as questões colocadas pelo Foreign Office, concluindo que «a importância de manter as tropas australianas e holandesas no Timor português não justifica o risco de uma ruptura das nossas relações com Portugal»[38]. Seguidamente, o Foreign Office informa a Austrália dos pormenores da proposta portuguesa, sem que seja pedida uma reacção. Campbell, entretanto, parte para Londres. Antes de viajar, envia para o Foreign Office um longo memorando sobre Portugal. Na parte respeitante aos fundamentos anímicos da sociedade portuguesa dessa época, merece destaque a seguinte passagem: «A questão de Timor veio, agora, abalar a confiança de muitos Portugueses cultos na credibilidade da Grã-Bretanha, para os ferir no seu ponto mais sensível – a sua honra nacional – e, em particular, trazer para mais perto do que nunca de personalidades militares e políticas a constatação da curta distância que separa Portugal da conflagração geral. Um receio instintivo desferiu mesmo um rude golpe na complacente crença, firmemente entranhada nos mais mentalmente devotos deste povo emotivo e simplório, de que Portugal seria poupado aos horrores da guerra graças à rectidão moral do Dr. Salazar e à especial protecção que lhes concedia a Virgem de Fátima.[39] A observação de Campbell, com a verificação de uma crença milagreira de impacto estratégico, não é de todo deslocada. Para Salazar, era, provavelmente, essa componente espiritual a melhor compensação para os rigores do equilíbrio orçamental, crença essa que parece ter sobrevivido até aos nossos dias.

Enquanto Campbell permanece em Londres, prosseguem, no Foreign Office, as discussões resultantes da posição dos CEM, pois há quem concorde e quem discorde das conclusões aparentemente “definitivas" dos chefes militares. A 6 de Janeiro, é recebida em Londres a apreciação do Governo Australiano, fundada em parecer do Estado-Maior local, acerca da proposta portuguesa, que classifica de perigosa: «As forças actualmente disponíveis, tanto em Timor português como na parte holandesa, adicionadas dos 700 militares portugueses propostos, só têm capacidade para repelir “pequenas mordidelas" e não estão à altura de impedir qualquer tentativa séria dos japoneses de conquista da ilha, a menos que um volume considerável de meios aéreos acorra imediatamente em sua ajuda. No curto prazo, esses meios aéreos não parecem estar disponíveis.»[40] Esta estimativa australiana – que os acontecimentos de Fevereiro irão demonstrar ser justíssima – é a confissão de que a violação da neutralidade portuguesa não garantia nada em termos de manutenção da posse da ilha.

A 8 de Janeiro, o governo de Camberra recebe um longo telegrama, proveniente de Londres, no qual é posto ao corrente das diversas conversações em curso. Nele se afirma o interesse numa solução que esteja a meio das duas atitudes extremas – a retirada, definitiva ou não, das tropas aliadas da parte oriental da ilha após a chegada dos reforços portugueses. Na parte mais essencialmente estratégica, o texto sublinha: 

«Também estamos, em termos gerais, de acordo com os outros aspectos focados pelos CEM australianos em relação à dimensão do ataque que os japoneses considerariam possível ou necessário, no seu próprio interesse, desferir contra o Timor português. Se apenas tomar a forma de um relativamente pequeno raide, pensamos que a presença de 800 militares portugueses, juntamente com os que já lá se encontram, acrescidos de reforços aliados, pedidos ou enviados imediatamente assim que o ataque japonês tiver lugar, deve ser suficiente para impedir o sucesso japonês. Se, por outro lado, os japoneses [...] optarem por um ataque em força, então, provavelmente, não seremos capazes de manter o território. Em tal caso, teremos litigado com os Portugueses, perdido o território e, em suma, obtido o pior de dois mundos[41]

Ao abrigo de um despacho de 14 de Janeiro, o embaixador Campbell toma posse de diversa documentação que lhe servirá de base para, no seu regresso a Lisboa, apresentar ao Governo Português as ideias do Governo Britânico sobre a solução do problema de Timor, as quais são sintetizadas do seguinte modo: 

«Os três governos estão preparados para concordar com a retirada das tropas australianas e holandesas [...] logo que ali cheguem os reforços portugueses estimados em cerca de 800 homens... Os três governos estão prontos a concordar com um anúncio formal para este efeito, [...] mas apenas concordarão com esta solução se, antes do anúncio ser feito, forem recebidas garantias privadas e secretas de que as forças aliadas serão de novo chamadas ao território no caso de um ataque japonês...»[42]

Regressado a Lisboa, em 15 de Janeiro, Campbell é recebido por Sampaio, a quem entrega a proposta britânica. Em 16, Sampaio comunica a Campbell que o Governo Português está pronto a dar as três garantias pedidas. Em 18, a aceitação portuguesa é comunicada ao Governo Australiano e ao general Wavell. Este, poucos dias antes, declarara que «todos nós estamos profundamente preocupados com a perspectiva de retirada das tropas aliadas, dado que não confiamos que quaisquer tropas portuguesas resistam a uma agressão japonesa».[43]

Em 26 de Janeiro, o governador Ferreira de Carvalho recebe um telegrama do Ministro das Colónias, onde lhe é dado conhecimento do acordo estabelecido entre os governos da Grã-Bretanha, Holanda, Austrália e Portugal para a retirada das tropas aliadas, após a chegada dos reforços idos de Moçambique.

Entretanto, depois das acções fulminantes contra a Malásia, Filipinas, Bornéu britânico e Birmânia, as forças japonesas prosseguem, em Janeiro de 1942, a sua vitoriosa campanha no Sudoeste Asiático. Em 26, Kupang e o campo militar de Atambua, no Timor holandês, são alvo do primeiro ataque aéreo. Díli sofre, em 8 de Fevereiro, um ataque aéreo de pequena dimensão, o qual não causa qualquer ferido. É já com este preocupante cenário que o contingente português parte de Lourenço Marques, na noite de 26 de Janeiro de 1942, a bordo do navio de transporte João Belo, levando como escolta o aviso Gonçalves Zarco.[44]

Nos primeiros dias de Fevereiro, intensificam-se os ataques da força aérea nipónica a objectivos na parte holandesa de Timor. Em 12, o Ministro das Colónias dá instruções para, no caso de um ataque japonês ao território português, ainda antes da chegada dos reforços enviados de Moçambique, as tropas portuguesas presentes na colónia colaborarem com as forças aliadas na resistência a esse ataque. Nota-se que a questão do cumprimento do compromisso não é um dado plenamente adquirido, sobretudo tendo em conta o parecer do general Wavell. É na base deste parecer que, em 19 de Fevereiro, o primeiro-ministro Winston Churchill remete ao Secretário do Foreign Office, Anthony Eden, a seguinte mensagem: 

«A respeito de Timor, devemos dizer ao Governo Português que estamos a proteger Timor até à chegada dos seus reforços. No entanto, quando chegarem, não devemos sair. Devemos deixar as nossas tropas, as tropas holandesas e as tropas deles [portugueses] no local. É óbvio que os portugueses não têm capacidade para proteger a sua neutralidade e Timor é um ponto-chave. O general Wavell deve ser autorizado a tomar todas as medidas militares para garantir a segurança de Timor, sem olhar aos efeitos que tal possa causar ao orgulho português.»[45]

A recomendação do primeiro-ministro vem pôr em causa a credibilidade da diplomacia britânica. Eden reage prontamente: «Sr. Primeiro-Ministro: também estou ciente da mensagem do general Wavell. Este assunto desenvolveu-se enquanto eu estava ausente, mas sei que os CEM foram sendo sucessivamente consultados. A sua conclusão foi que a importância da retenção das tropas aliadas no Timor português não justificaria [...] o risco de uma ruptura com Portugal. [...] Estou disponível para, a todo o tempo, jogar a cartada diplomática de acordo com as necessidades militares para a conduta da guerra. Mas no ponto em que as coisas estão, quando nos comprometemos fortemente com o Governo Português, sou obrigado a dizer que seria perigoso fazer marcha atrás na nossa política. Por último, embora seja assunto fora do meu galho, devo sublinhar que os 380[46] australianos e holandeses presentes [...] dificilmente podem ser considerados suficientes para impedir os japoneses de capturar todo o território, se decidirem (como podem) atacar em força.[47]

Mesmo “fora do seu galho", Anthony Eden pressente aquilo que, desde o início, devia ser considerado como uma evidência. E, já faltavam poucas horas para se chegar, brutalmente, a essa conclusão. Não haverá tempo, sequer, para mais um golpe britânico no orgulho português, circunstância que, a ter-se dado, poderia ter alterado profundamente a atitude pró-Aliados do governo de Lisboa, inviabilizando, por exemplo, a cedência pacífica das bases no arquipélago dos Açores. A invasão e a conquista de Timor por forças do Império Nipónico concretizam-se em 20 de Fevereiro de 1942, data a partir da qual a colónia portuguesa irá, progressivamente, perdendo a sua ligação com Lisboa.



NOTAS

[1] NOGUEIRA, Franco, Salazar, Vol. III, p. 363.

[2] Tendo Salazar acumulado as funções de Presidente do Conselho de Ministros com as de Ministro dos Negócios Estrangeiros, entre 6 de Novembro de 1936 e 4 de Fevereiro de 1947, ao Secretário-geral do MNE competia receber os contactos de rotina dos embaixadores acreditados em Lisboa, os quais só eram recebidos pelo titular da pasta nas situações mais delicadas.

[3] MOTTA, C. Teixeira da, O caso de Timor na II Guerra Mundial, p. 28.

[4] MOTTA, C. Teixeira da, Idem, p. 32.

[5] Estado-Maior Conjunto.

[6] MOTTA, C. Teixeira da, Idem, p. 34.

[7] Ministério da Guerra.

[8] CARVALHO, Manuel A. F., Relatório dos Acontecimentos de Timor (1942-1945) p. 96. Sublinhado nosso.

[9] Gate-crashing, no original inglês.

[10] MOTTA, C. Teixeira da, Idem, p. 41.

[11] Cidade capital da metade holandesa de Timor.

[12] CARVALHO, Manuel A. F., Idem, p. 102.

[13] Ibidem, p. 102.

[14] Ibidem, p. 103.

[15] Ibidem, pp. 103-104.

[16] Ibidem, p. 107.

[17] Ibidem, p. 108.

[18] No original inglês: Had the local commanders taken the law into their own hands?

[19] MOTTA, C. Teixeira da, Idem, p. 48.

[20] Ibidem.

[21] Ibidem, p. 55. Sublinhado nosso.

[22] A força desembarcada era constituída por cerca de 450 tropas holandesas (na maioria nativos javaneses) e por cerca de 350 militares australianos, incluindo nestes números tropas de apoio de combate (1 bateria de artilharia de montanha) e de apoio de serviços. Estes efectivos são os que constam no Relatório dos Acontecimentos de Timor (1942-1945), p. 138, da autoria do governador Ferreira de Carvalho. Todavia, consultando outras fontes, o valor total referido oscila entre 350 e 1.600 homens.

[23] MOTTA, C. Teixeira da, Idem, p. 56.

[24] Diário das Sessões da Assembleia Nacional n.º 112 de 19-12-1941, p. 84. Sublinhado nosso.

[25] CARVALHO, Manuel A. F., Idem, p. 117.

[26] MOTTA, C. Teixeira da, Idem, p. 64.

[27] NOGUEIRA, Franco, Idem, Vol. III, p. 367.

[28] Ibidem, p. 68.

[29] Ibidem, p. 70.

[30] CARVALHO, Manuel A. F., Idem, p. 139.

[31] O general Wavell seria designado, em 1 de Janeiro de 1942, Comandante-Chefe das forças britânicas, americanas, holandesas e australianas no Sudoeste da Ásia.

[32] MOTTA, C. Teixeira da, Idem, p. 87.

[33] Ibidem, p. 90.

[34] MOTTA, C. Teixeira da, Idem, p. 93.

[35] Ibidem, p. 94.

[36] CARVALHO, Manuel A. F., Idem, p. 142.

[37] MOTTA, C. Teixeira da, Idem, p. 95.

[38] Ibidem, pp. 96-97.

[39] Ibidem, p. 97.

[40] MOTTA, C. Teixeira da, Idem, p. 100.

[41] Ibidem, p. 101. Sublinhado nosso.

[42] Ibidem, p. 102.

[43] Ibidem, p. 104.

[44] AHM, 2.ª Div. - 9.ª Sec. - Cx. 1 - N.º 3., Terceira Parte, p. 32.

[45] MOTTA, C. Teixeira da, Idem, pp. 105-106.

[46] Mais um valor para os efectivos aliados presentes em Timor. Dados os números algo díspares que surgem em diversos documentos da época, não é possível determinar com rigor qual seria o efectivo das tropas entradas em Timor em 17 de Dezembro de 1941. Acreditamos que seja algo entre 350 e 800 militares, o que, em qualquer caso, não altera a avaliação de insuficiência manifestada por diversas entidades.

[47] MOTTA, C. Teixeira da, Idem, p. 106.


David Martelo

Coronel de infantaria (reformado), sendo autor de diversas obras de História Militar e tradutor de figuras famosas como Tucídides, Maquiavel, Garibaldi, Jomini e Mussolini. É o administrador do blogue de História Militar “A Bigorna", em www.a-bigorna.pt.​


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Como citar este texto:

MARTELO, David – A Invasão Australiano-Holandesa de Timor​. Revista Portuguesa de História Militar - Dossier: Portugal no Contexto da Segunda Guerra Mundial, 1939-1945. [Em linha] Ano III, nº 4 (2023). [Consultado em ...], https://doi.or​g/10.56092/RODL4052​

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