Ir para o conteúdo principal

​​

A 'CORRESPONDÊNCIA DE PORTUGAL' E A GUERRA CIVIL AMERICANA (1862).

 


JulioSilva-255x265.jpeg

Júlio Rodrigues da Silva


Resumo

A Guerra Civil Americana (1861-1865) foi um conflito militar que marcou profundamente as sociedades ocidentais do século XIX. A combinação das causas sociais e políticas com as transformações militares e navais teve um profundo impacto nas mentalidades europeias e americanas. A imprensa portuguesa tornou-se o instrumento fundamental para o conhecimento e compreensão dos acontecimentos que decorreram durante este confronto violento. A “Correspondência de Portugal" iniciou a sua publicação no ano de 1862 marcado por uma viragem essencial na evolução da guerra. Neste artigo analisaremos as informações transmitidas aos leitores portugueses, moldando a sua visão da guerra civil americana. Teremos em consideração as limitações e insuficiências das notícias transmitidas, valorizando as perceções e conceções ideológicas dos seus redatores.

Palavras-chave: Guerra; secessão; escravatura; abolicionismo; armamento.

Abstract

The American Civil War (1861-1865) was a military conflict that profoundly marked Western societies in the 19th century. The combination of social and political causes with military and naval transformations had a profound impact on European and American mindsets. The Portuguese press became the fundamental instrument for the knowledge and understanding of the events that took place during this violent confrontation. The “Correspondência de Portugal" began its publication in 1862, marked by an essential turning point in the evolution of the war. In this article we will analyze the information transmitted to Portuguese readers, shaping their vision of the American Civil War. We will consider the limitations and shortcomings of the news transmitted, valuing the perceptions and ideological conceptions of its editors.

Keywords: War; secession; slavery; abolitionism; armament.

 

1. O caso Trent

Correspondência de Portugal começou a publicar-se a 28 de Janeiro de 1862 ou seja mais de seis meses depois da rendição de Fort Sumter (14 de Abril de 1861), data oficial do início do conflito entre o Norte e o Sul. As primeiras imagens da guerra civil americana referiam as dificuldades do governo de Abraham Lincoln ameaçado de uma perigosa rutura e da possibilidade de uma guerra com a Grã-Bretanha. A tensão entre os dois países, nasceu da interceção do navio comercial britânico Trent pelo San Jacintho (08/11/1861) da marinha de guerra da União e o aprisionamento dos comissários sulistas James Mason e John Slidell pelo capitão Charles Wilkes. A Inglaterra considerou este ato um grave atentado ao direito internacional público, intimando os Estados Unidos a libertá-los num prazo curto. O ultimato inglês não deixou a Lincoln outra alternativa, senão soltar os emissários da Confederação em Dezembro de 1861, apaziguando a hostilidade da opinião pública internacional e evitando um desastroso conflito entres os dois estados [1] . Os redatores da Correspondência de Portugal aprovaram totalmente esta decisão, que permitiria afastar a hipótese de uma guerra marítima entre os E.U.A. e a Grã-Bretanha, considerada extremamente prejudicial ao comércio internacional.

A atitude conciliadora do gabinete federal nesta situação face às pressões dos radicais nortistas, provocou uma mudança na perceção inicialmente negativa da capacidade governativa de Lincoln. O periódico constatava o facto da incompreensão cultural europeia dos acontecimentos políticos americanos, suscitar equívocos e erros na avaliação do povo e governo dos Estados Unidos. O reconhecimento do mal fundado desta apreciação precipitada tornou possível uma visão mais positiva do rumo político da União. A prudência demonstrada na resolução do caso do Trent, a aposta total na manutenção da paz com a Grã-Bretanha e a vitória federal de Porto Real (03-07/11/1861), demonstravam a credibilidade e habilidade do governo de Washington. A transformação da opinião pública internacional a favor do Norte, conduziu mesmo a uma crítica acerba ao governo inglês, acusado de se ter precipitado e de ter desencadeado uma campanha contra o governo federal, utilizando para esse efeito o Morning Post, propriedade de um membro do gabinete. A reviravolta da opinião pública inglesa impediu o governo inglês de reconhecer os Estados do Sul como um país independente, como inicialmente se chegou a temer [2] .​

2. A guerra de Abraham Lincoln.

As informações transmitidas pela Correspondência de Portugal, referentes à evolução da guerra civil, remontavam a 1 de março de 1862 e centravam-se nos primeiros êxitos militares no teatro de operações do Oeste. As batalhas de Fort Henry (06/02/1862) e de Fort Donelson (13-16/01/1862) foram assinaláveis vitórias para o exército federal, rompendo a linha defensiva confederada do general Albert Sydney Johnston. As operações realizadas pelo general unionista Ulysses S. Grant tinham permitido ao governo federal apoderar-se totalmente do Kentucky e a da parte ocidental do Tennessee. As vias de invasão do Sul ficavam abertas, graças ao controlo unionista dos rios Tennessee e Cumberland. A nova dinâmica introduzida no conflito militar traduzir-se-ia numa nova importância deste teatro de operações, deslocando a balança militar a favor do Norte. O jornal português referia de forma extensiva estes acontecimentos, reconhecendo a sua importância, mas guardando um forte ceticismo sobre as hipóteses de o governo de Washington conseguir derrotar os sulistas.

As boas novas favorecendo os unionistas não se reduzem ao Oeste, pois no Leste a expedição naval do general Ambrose Everett Burnside, visando a Carolina do Norte e os seus portos tinha sido um sucesso. As operações realizadas em fevereiro de 1862 [vitória naval federal de Elizabeth City na carolina do Norte (10/02/1862)] tiveram êxito, prolongando-se até junho desse ano, garantindo à União o controlo de boa parte da zona costeira da Carolina do Norte e traduzindo-se numa importante vitória estratégica dos unionistas. Os redatores do periódico não deixariam de relatar estas operações de forma fragmentada. Os êxitos sucessivos dos nortistas pareciam imparáveis nos primeiros meses do ano de 1862, tornando progressivamente credível a possibilidade de a insurreição do Sul ser esmagada em pouco tempo. O periódico faz-se eco desta hipótese, salientando os já referidos desastres militares dos esclavagistas no Oeste e o desânimo crescente dos sulistas perante uma evolução tão desfavorável da guerra. A queda subsequente da cidade de Nashville perante as tropas do general Ulysses S. Grant, a primeira capital confederada a ser conquista pelos nortistas, parecia confirmar as perspetivas mais pessimistas para os Estados rebeldes.

A atenção do jornal voltar-se-ia de imediato para um evento revolucionário nos anais da U.S.N. e da guerra naval da segunda metade do século XIX. A batalha de Hampton Roads (8-9/03/1862) permitiria pela primeira vez, na história contemporânea assistir ao confronto entre navios couraçados revestidos ou construídos em ferro, propulsionados pelo vapor e navios de madeira, recorrendo à vela, dando o primeiro passo para a evolução, que conduziria aos modernos couraçados dos princípios do século XX. A batalha teve dois momentos diferentes: o primeiro entre um navio blindado confederado, o Merrimac (CSS Virgínia) e os navios de madeira unionistas USS CumberlandUSS Congress e USS Minnesota, travado a 8 de março de 1862 e terminando com uma retumbante vitória dos sulistas; o segundo, no dia seguinte, o combate entre o Merrimac (CSS Virgínia) e o navio blindado unionista U.S.S. Monitor, acabando num empate entre as duas marinhas. A informação inicial da vitória dos confederados surgiria na Correspondência de Portugal de dia 30 de março de 1862 [3] .

A consciência de que seria uma revolução no campo dos assuntos navais, só surgiria num artigo posterior de 29 de abril desse ano, no qual se procederia a uma análise do combate e das repercussões nas marinhas de guerra europeias. O ponto de partida da notícia foi a constatação da transformação radical, operada na perceção da opinião pública dos navios de madeira, tornados de imediato obsoletos, não deixando de evocar o inventor do Monitor, Ericson. O essencial para os redatores do jornal consistia na apreciação realizada pela primeira potência marítima da época, a Grã-Bretanha, do impacto destas inovações na guerra naval. A valorização efetuada pelo jornal das observações dos especialistas navais ingleses, traduzir-se-ia numa menorização dos couraçados norte-americanos. O principal alvo das críticas era o Monitor unionista, o mais inovador dos dois por ser construído todo em ferro, enquanto o rival tinha uma estrutura de madeira, sendo chapeado com placas de aço. A preocupação dos analistas consistia em realçar o poder de fogo dos novos canhões ingleses Armstrong, mostrando serem capazes de perfurar as chapas de aço dos novos couraçados. Assim sendo, as lições militares do confronto naval de Hampton Roads (8-9/03/1862) teriam de ser reavaliadas, tendo em consideração estes novos factos e reduzindo a importância dos novos couraçados.

No entanto, seria errado deduzir desta apreciação uma total desvalorização dos novos navios. Nesse mesmo número, publicou um outro artigo da autoria de Filipe de Carvalho sugestivamente intitulado Monitor com uma descrição detalhada das diversas partes do navio acompanhada de um desenho esquemático do navio. Trata-se da primeira e única análise detalhada e da reprodução exata da estrutura do couraçado federal da imprensa portuguesa da época. Filipe de Carvalho acrescentou uma nova versão da batalha de Hampton Road, descrevendo o combate entre o Merrimac (CSS Virgínia) e o Monitor para demonstrar a superioridade tecnológica do couraçado unionista sobre o seu congénere confederado.

O autor após atestar a óbvia superioridade do navio unionista, moderava as expetativas dos mais entusiastas defensores dos couraçados, demonstrando a sua fragilidade face aos novos obuses “cilíndrico-cónicos" capazes de perfurar as blindagens destes navios como se tratasse de navios de madeira. A corrida armamentista baseada nas novas descobertas científicas centrar-se-ia na competição entre o canhão e a couraça, atestando a loucura dos homens fascinados ilusoriamente por alcançarem a glória e esquecendo-se do mais importante: a humanidade [4] . As análises das inovações no campo da guerra marítima, não se ficariam apenas pelos novos navios couraçados e a descrição da primeira batalha naval de Hampton Roads. O diretor do periódico deu-se conta da importância dos submarinos na guerra civil americana, embora não se focando sobre a sua capacidade operacional. O redator referia-se ao projeto revolucionário do submarino federal Alligator (1862-1863), do engenheiro francês Brutus Amédée de Villeroi (1794-1874), realmente construído em 1862, embora nunca tivesse entrado em combate e se afundasse no ano seguinte sem baixas entre a tripulação. A descrição do redator do periódico era pormenorizada, fornecendo aos leitores uma imagem bastante precisa da nova máquina de guerra[5].

O discurso pacifista de Filipe de Carvalho não deixou de ser uma visão lúcida da capacidade de destruição das novas armas e das consequências trágicas para o ser humano, mais importante do que todos os maravilhosos sortilégios científicos e tecnológicos colocados à disposição das indústrias de armamento. A importância tática e estratégica destas transformações da guerra naval, não foi totalmente compreendida de imediato pelos redatores do jornal, pois as operações militares terrestres eram percecionadas como decisivas na evolução da guerra civil. Assim sendo, a Correspondência de Portugal noticiou uma vitória importante do exército unionista, embora com pesadas baixas de parte a parte e acompanhada da sensação do fim próximo da guerra com a derrota dos sulistas. A ausência de indicações mais precisas da batalha, incluindo o nome e a localização não permite a sua identificação. O volume das baixas e a proximidade temporal permite a suposição de ser uma referência à batalha de Shiloh ou Pittsburg Landing travada no teatro operacional do Oeste, no estado do Tenessee entre 6 e 7 de Abril de 1862, conhecida por ser uma das mais mortíferas da guerra civil.

Num número posterior apareceria uma descrição completa e bastante exata desta primeira grande batalha da guerra civil americana, apenas existindo algumas imprecisões sobre os efetivos dos dois exércitos rivais e as baixas sofridas de parte a parte. As dúvidas sobre este evento dos redatores do periódico permitiam aos leitores, duvidar dos números fornecidos pela imprensa estrangeira e minorar a catastrófica derrota dos confederados, referindo a retirada para Corintho, posição estratégica essencial às campanhas do Oeste. A sorte das armas parece pender a favor dos unionistas, em duas outras áreas da guerra civil no Oeste. A ofensiva das forças combinadas da marinha e do exército no rio Mississipi recebeu um novo impulso com a conquista da ilha N.º 10, abrindo o caminho para um avanço até Nova Orleães. O ataque provável dos federais à cidade de Nova Orleães parecia cada vez mais próximo devido à sua importância estratégica e económica para os separatistas. As constantes oscilações da guerra nos diferentes teatros de operações não se refletiam nas diferentes apreciações dos redatores do jornal, das constantes reviravoltas da sorte das armas. No entanto, existia a perceção de que no Oeste, os sulistas estariam a ser derrotados, porque depois da queda de Nova Orleães (28/05/1862) nas mãos dos unionistas, do abandono de Corinth (29/04/1862) pelos sulistas, da destruição da respetiva esquadra e da rendição de Memphis (06/06/1862), o controlo do rio Mississipi passaria para o governo de Washington.

A notícia do abandono de Richmond pelos confederados não correspondia à realidade, mas existia a convicção crescente de que os unionistas controlando o rio Mississipi e possuindo todos os portos do Atlântico estariam numa situação excecional para vencer a guerra, faltando apenas conquistar a capital do Sul, Richmond. Tratava-se de uma perspetiva excessivamente otimista da inevitabilidade da vitória unionista, pois estavam impossibilitados de controlar o rio Mississipi, enquanto a cidade de Vicksburg estivesse nas mãos dos confederados. De igual forma, os federais não controlavam totalmente os portos e baías da costa atlântica, embora o bloqueio da marinha de guerra federal, os fechasse ao comércio internacional com a exceção de alguns bem-sucedidos block runners, raros corsários e dos poucos navios de guerra da confederação. Esta visão pessimista da causa sulista era contrabalançada pela convicção da vontade de lutar das forças militares dos estados esclavagistas nas diversas frentes de batalha, do Tennessee, da Virgínia, da Carolina do Sul, de Nova Orleães, do Arkansas e da Geórgia.

No teatro de operações do Leste existiam fortes indícios dos exércitos confederados terem ainda capacidade para resistir às tropas unionistas, fazendo-se a prova através dos sucessos alcançados pelo general confederado Thomas J. Stonewall Jackson na campanha Shenandoah Valley na Virgínia, de Março a Junho de 1862. As informações referentes aos combates nesta região são por vezes demasiado parcelares para permitirem uma adequada perceção da sua importância. As derrotas sofridas pelo general unionista, Nathaniel Prentice Banks, nas batalhas de Port Royal (23/05/1862) e de Winchester (25/051862), seguidas de uma desordenada retirada através do rio Potomac para o estado do Maryland, não escaparam ao escrutínio dos redatores do periódico que delas dão uma sucinta, mas correta notícia. O insucesso posterior na mesma área do general John Charles Fremont nas batalhas de Cross Keys (08/06/1862) e de Port Republic (09/06/1862) não deixou ser brevemente noticiado pela Correspondência de Portugal. Todavia, a mudança essencial da visão do periódico, resultaria das informações obtidas sobre a Peninsula Campaign [17/03/1862-01/07/1862], a batalha de Fair Oaks [31/05/1862-01/06/1862] e principalmente as batalhas da campanha dos Seven's Day [26/06/1862-02/07/1862]. Inicialmente as informações transmitidas, embora imprecisas eram otimistas. O exército do Potomac, comandado pelo general George Briton MacClelland, conseguia que os sulistas abandonassem a posição fortificada de Yorktown (03/05/1862) e seguidamente teria ganho a batalha de Williamsburgo (05/05/1862).

As informações disponíveis não permitiam perceber que se tratava essencialmente de combates e operações dos separatistas, destinados a retardar o avanço federal sobre a capital do Sul, Richmond, e não de verdadeiras “batalhas". Assim sendo, a perceção de uma realidade militar progressivamente negativa para o exército federal de Potomac, só lentamente mudaria. A concentração de 200 mil soldados do Sul em torno de Richmond mostrava ser premonitória de uma batalha decisiva às portas da capital do Sul e também da vontade de lutar dos separatistas que não se dariam por vencidos. As informações sobre a evolução das operações no Leste levantariam sérias dúvidas sobre a evolução dos acontecimentos oscilando entre a vitória e a derrota das forças comandadas pelo general MacClellan. Porém, não existia uma adequada compreensão do decorrer dos combates, a batalha de Fair Oaks (31/05/1862) não era identificada nem referida de forma adequada. Todavia, surgia a pouco e pouco a consciência de que os inícios das operações da batalha de Seven's Days, em torno de Richmond, seriam decisivos no futuro da guerra civil americana. A referência a uma batalha nos dias 25 e 26 de junho de 1862, embora sendo, uma informação inexata, coincidia temporalmente com a primeira batalha de Oak Grove entre os dois exércitos, no dia 25 de junho de 1862 e a subsequente batalha de Mechanicsville de 26 de junho de 1862, terminando a primeira num empate tático e a segunda numa vitória unionista. Desta forma, a descrição dada pelo periódico destes confrontos iniciais não deixaria de ser uma apreciação correta dos acontecimentos.

As notícias referentes aos prolongados combates que decorriam entre 25 de junho e 1 de julho do ano de 1862 pareciam atestar uma reviravolta militar no Leste, referindo expressamente, uma grande derrota federal às portas de Richmond, embora existissem sérias dúvidas sobre a credibilidade das informações transmitidas do estrangeiro [6] .

As notícias imediatas atestariam a presença de uma forte divisão sulista em Gordonsville, ameaçando o novo exército da Virgínia criada a 26 de junho de 1862 e comandada pelo general nortista John Pope, tratando-se sem dúvida das manobras preliminares da batalha de Second Manassas (29-30/08/1862). As informações acerca desta batalha não seriam muito coerentes e inicialmente bastante fragmentadas, anunciando as disposições preliminares dos adversários. A batalha de Cedar Mountain (09/08/1862) seria apresentada como mais um triunfo do general confederado Stonewall Jackson sobre o exército da Virgínia comandado pelo general Pope. A primeira notícia referindo a vitória nesta batalha e a derrota dos unionistas só surgia nas páginas deste jornal a 13 de Setembro de 1862, não muitos dias depois do confronto militar a 29 e 30 de agosto de 1862. As pesadas perdas de ambos os lados na batalha de Second Manassasserviam de base para uma visão desumana da guerra civil.

A rápida evolução do conflito e o facto do periódico ser quinzenal, ligava de imediato a derrota unionista de Second Manassas (29-30/08/1862) à ofensiva posterior do exército sulista da Virgínia do Norte a 4 de Setembro de 1862, comandado pelo general Robert Lee, atravessando o rio Potomac e entrando no estado unionista de Maryland. As primeiras informações não eram nada favoráveis aos federais, anunciando a presença do Northern Virginia Army muito perto de Washington e o subsequente pânico que reina na capital dos Estados Unidos da América. A subsequente derrota confederada na batalha Antietam (17/09/1862) não foi devidamente noticiada, mas as suas consequências são imediatamente apreendidas, na retirada das tropas sulistas através do Potomac para a Virgínia. As apreciações sobre estes acontecimentos constatavam de seguida, o fracasso da ofensiva sulista contra o Norte, o fim da campanha de Antietam, a retirada dos separatistas para a Virgínia e a perseguição do general MacClellan.

As notícias referentes a uma ofensiva do general MacClellan na Virgínia são de imediato ultrapassadas pela substituição deste pelo general Ambrose Burnside à frente do exército do Potomac. As pressões republicanas sobre o presidente dos Estados Unidos, neste sentido e a profunda desilusão de Lincoln com MacClellan pela incapacidade demonstrada por este general na perseguição ao Northern Virginia Army comandado pelo general sulista Robert Lee tornaram inevitável a sua demissão e a escolha de Ambrose Everet Burnside em seu lugar. A imagem geral da situação militar entre unionistas e confederados no final de 1862, aparecia como sendo favorável globalmente favorável aos federais. Os acontecimentos políticos relacionados com as eleições dos governadores e congressistas nos meses de outubro e novembro de 1862, a proclamação da emancipação [22/09/1862], e a ameaça de uma intervenção estrangeira britânica e francesa pesariam decisivamente nas análises da guerra civil americana.

3. O intervencionismo europeu

O desfecho final deste conflito civil não se jogava apenas no plano militar, mas igualmente no campo das atividades económicas, industriais e comerciais. As hipóteses de a Europa reconhecer a independência do Sul ou de uma intervenção das suas principais potências para obter a paz, dependiam da “solidariedade dos interesses do mundo". A crença liberal na possibilidade de evitar a guerra, através de um intercâmbio livre de mercadorias, era um dos elementos principais do credo deste periódico e foi expresso na época pelos economistas Richard Cobden e John Bright [7] . A fé na força dos interesses comerciais na preservação da paz, tinha como corolário a perspetiva de uma pacificação dos antagonismos políticos dos “americanos ingleses". A recusa de intervenção no conflito por parte da Inglaterra e da França era uma garantia de paz na Europa, preservando os seus interesses mercantis. A neutralidade dos referidos países impedia a extensão do confronto ao continente europeu e a transformação de uma guerra civil num conflito mundial ou pelo menos intercontinental. Os impostos lançados pelos sulistas sobre os produtos manufaturados ingleses, produziram o descontentamento dos industriais britânicos com o inevitável impacto negativo inicial na respetiva opinião pública [8] .

O problema mais grave para as empresas têxteis da Grã-Bretanha, era resultante da impossibilidade de importar o algodão, produzido nas plantações esclavagistas do Sul dos Estados Unidos. O bloqueio dos portos da confederação pela U.S.N. tornava impossível escoar esta produção, paralisando as fábricas, deixando os operários desempregados e produzindo uma forte instabilidade social. Os jornalistas da Correspondência de Portugal estavam conscientes da posterior existência de uma “crise algodoeira" na Inglaterra, levando os industriais a pressionar o respetivo governo, no sentido de uma intervenção direta na guerra civil americana. Aliás, constatavam a ambiguidade da resposta dos ministros britânicos, não se comprometendo de imediato com este rumo de ação, mas não o excluindo no futuro, tendo em consideração os interesses do comércio e indústria nacionais. A economia inglesa não seria a única a ser gravemente prejudica pelo conflito militar, pois os Estados Unidos da América eram o palco de sangrentas batalhas, de devastações maciças dos campos, de destruições das fábricas, das comunicações e das povoações. Os desastres da guerra eram, assim, reconhecidos especificamente no periódico, que deles deixava uma descrição impressionante [9] .

Nesta visão da guerra civil, o destino do povo americano já estaria decidido, não existindo qualquer hipótese de evitar a total ruína de um país, que suscitar até aí a admiração de toda a gente, devido ao rápido crescimento económico. As oscilações militares entre os dois campos, não faziam prever um desfecho rápido do conflito, parecendo, pelo contrário, eternizá-lo. A esperança numa resolução pacífica do confronto, não estava totalmente ausente da mente dos redatores da Correspondência de Portugal, não hesitando para comprovar esta hipótese, em recorrer a um jornal rival, a Revolução de Setembro, dando conta de uma proposta de paz do presidente da confederação de Jefferson Davis ao presidente dos E.U.A., Abraham Lincoln. As informações posteriormente chegadas dos Estados Unidos, alentavam esta crença ingénua na aceitação de uma proposta daquele pelo último, visando obter a paz na base do reconhecimento da independência do Sul e a promessa da extinção da escravatura num prazo de 21 anos. As mesmas notícias surgem de novo, mas num tom menos assertivo, levantando-se, sérias dúvidas, quanto à possibilidade da aceitação pelo Norte da independência do Sul [10] .

O discurso do presidente Abraham Lincoln no final de 1862, recusando qualquer intervenção estrangeira, afirmava a vontade de continuar a guerra e de realizar a emancipação dos escravos. Assim sendo, punha fim às dúvidas sobre esta questão e tornava qualquer tentativa de paz impossível. As dificuldades dos redatores da “Correspondência de Portugal" em obterem notórias fidedigna da guerra civil americana ao longo de 1862, são evidentes. Contudo, a informação transmitida aos leitores desta publicação, permitia-lhes compreender os principais acontecimentos militares do conflito e as questões essenciais que tornavam a sua resolução pacífica impossível. Assim sendo, a opinião pública portuguesa dispunha dos elementos necessários para poder ajuizar corretamente os desafios criados por este confronto militar, perspetivando-se a sua continuação sem fim à vista.

 


Bibliografia

GOODWIN, Doris Kearns – Team of Rivals. New York: Simon & Shuster Paperbacks, 2005.

GUEZO, Allen, C. – Lincoln's Emancipation Proclamation. The End of Slavery in America. New York/London /Toronto /Sydney: Simon & Schuster Paperbacks, 2004

HOWARD, Michael – War and liberal Conscience. London: Hurst &Company, 2008.

MACPHERSON, James M. – Battle Cry of Freedom. The American Civil War. London/New York: Penguin Books/Oxford University Press, 1990.

PERKINS, Bradford – The Cambridge History of American Foreign Relations. Volume I, The Creation of a Republican Empire, 1776-1865. Cambridge University Press, 1995.


NOTAS

[1] Macpherson, James M., Battle Cry of Freedom. The American Civil War, London/New York, Penguin Books/Oxford University Press, 1990, pp. 387-391.

[2] Carvalho, Filipe Augusto de Sousa, “REACÇÃO EM INGLATERRA A FAVOR DO NORTE, NA QUESTÃO AMERICANA.", Correspondência de Portugal, N.º 3, (01/03/1862), p.1. Consultar o livro de Perkins, Bradford, The Cambridge History of American Foreign Relations. Volume I, The Creation of a Republican Empire, 1776-1865, Cambridge University Press, 1995, pp. 217-229.

[3] Anónimo, Notícias Políticas Estrangeiras, Correspondência de Portugal, Lisboa, N. 5 (30/03/1862), p. 2.

[4] Carvalho, Filipe Augusto de Sousa, O Monitor, Correspondência de Portugal, Lisboa, N.º 7 (29/04/1862), p. 2.

[5] Anónimo, Navegação submarina, Correspondência de Portugal, Lisboa, N.º 18 (13/10/1862), p. 3.

[6] Anónimo, Notícias Políticas Estrangeiras, Correspondência de Portugal, Lisboa, N.º 13 (28/07/1862), p. 2.

[7] Anónimo, Notícias Estrangeiras. Estados Unidos, Correspondência de Portugal, Lisboa, N.º 25, (28/01/1863), p.3. Ver Howard, Michael, War and liberal Conscience, London, Hurst &Company, 2008, pp. 23-42.

[8] Anónimo, Notícias Estrangeiras. Estados Unidos, Correspondência de Portugal, Lisboa, N.º 2 (14/02/1862), p.1. Consultar o livro de Perkins, Bradford, The Cambridge History of American Foreign Relations. Volume I, The Creation of a Republican Empire, 1776-1865, Cambridge University Press, 1995, pp. 217-229.

[9] Anónimo, Notícias Estrangeiras. Estados Unidos, Correspondência de Portugal, Lisboa, N.º 17 (28/09/1862), p. 2.

[10] Anónimo, Notícias Estrangeiras. Estados Unidos, Correspondência de Portugal, Lisboa, N.º 5 (30/03/1862), p. 2.​


Júlio Rodrigues da Silva

Doutorado em História e Teoria das Ideias (1999) pela FCSH da UNL. Professor Associado da FCSH da UNL (2011-2022). Investigador Integrado e Membro do Conselho Científico do CHAM da FCSH da UNL (2013-2022). Investigador Colaborador do CEIS 20, da FLUC da U.C. (2007-2022). Membro Efectivo do Conselho Científico da CPHM (2007-2022).​


PDFLOGO.jpegDescarregar este texto​​

Como citar este texto:

SILVA, Júlio Rodrigues da – A ‘Correspondência De Portugal’ e a Guerra Civil Americana (1862). Revista Portuguesa de História Militar - Dossier: Portugal no Contexto da Segunda Guerra Mundial, 1939-1945. [Em linha] Ano III, nº 4 (2023). [Consultado em ...], https://doi.or​g/10.56092/YWWZ2390​​

​​​

Partilhar
Conteúdo