OS PROCESSOS DE INDEPENDÊNCIA DAS COLÔNIAS IBÉRICAS NAS AMÉRICAS SOB A PERSPECTIVA DA HISTÓRIA COMPARADA E DO PODER MILITAR

Carlos Roberto Carvalho Daróz
Resumo
O processo de independência das colônias da América hispânica deu-se de modo bastante diferente do que ocorreu com a maior das colônias portuguesas: o Brasil. Enquanto naquelas a emancipação política foi marcada pela ruptura, nesta, a independência ocorreu sob o manto da continuidade. Como resultado, as colônias hispano-americanas deram origem a mais de uma dezena de países, enquanto o Brasil manteve seu território íntegro. Dentre os diversos fatores que compuseram esse processo histórico, a forma como o poder militar da Espanha e de Portugal foi empregado resultou decisiva para a configuração territorial das Américas. Mobilizando a história comparada, o presente trabalho analisa como a aplicação do poder militar influenciou na formação territorial latino-americana.
Palavras- chave: Poder militar; território; fronteiras; independência.
Abstract
The independence process of the Spanish American colonies took place in a very different way from the one that occurred with the largest of the Portuguese colonies: Brazil. While in the former, political emancipation was marked by rupture, in the latter, independence occurred under the mantle of continuity. As a result, the Spanish-American colonies gave birth to more than a dozen countries, while Brazil kept its territory intact. Among the various factors that made up this historical process, the way in which the military power of Spain and Portugal was employed was decisive for the territorial configuration of the Americas. Using comparative history, this paper analyzes how the application of military power influenced the territorial formation of Latin America.
Keywords: military power; territory; border; independence
1. Palavras iniciais
O ensejo do bicentenário da emancipação política do Brasil fomentou novos estudos e renovadas interpretações do processo histórico que resultou na independência do novo país. Nessa perspectiva, proponho estudar por meio da presente pesquisa os processos de independência das colônias ibéricas nas Américas, desencadeados na primeira metade do século XIX, que se desenvolveram de maneira diferenciada, se considerados o Brasil e as de colonização hispânica. Na maior colônia portuguesa, a emancipação foi marcada pela continuidade e resultou na manutenção do território, ainda que houvesse a resistência dos militares portugueses estacionados no território brasileiro e uma guerra de independência. Na América hispânica, contudo, os processos de independência tiveram viés revolucionário, e deram-se por sucessivas guerras de independência que promoveram, segundo Manuel Chust, uma ruptura colossal, fazendo com que um império resultasse em mais de uma dezena de repúblicas[1].
Mobilizo na presente pesquisa o conceito de poder militar e a metodologia da história comparada. Entendemos o poder militar conforme a abordagem teórica do cientista político norte-americano Joseph Nye Junior, na qual é expresso por meio de ameaças, permitindo a coerção, dissuasão e proteção, além de dar origem a políticas governamentais, como a diplomacia coercitiva, a guerra e as alianças. Para o autor, a força armada, enquanto pilar da influência coercitiva constitui elemento indissociável do poder lato sensu[2].
A comparação em História apresenta-se valiosa na medida em que, a partir de um referencial, o investigador busca compreender outro pouco conhecido, sobre o qual pretende lançar uma luz. Para tanto, torna-se essencial o emprego da História Comparada como método de análise capaz de desvendar o objeto de estudo a partir de suas semelhanças e particularidades.
O potencial metodológico da História Comparada e o expressivo leque de possibilidades a serem exploradas são percebidos pelo historiador alemão Jürgen Kocka, para quem “[...] comparar em História significa discutir dois ou mais fenômenos históricos sistematicamente a respeito de suas similaridades e diferenças de modo a se alcançar determinados objetivos intelectuais"[3]. Contudo, adverte que não é possível comparar totalidades, sob pena de recair em generalizações, mas determinados aspectos das sociedades. Nessa perspectiva, coerente com o objeto da investigação, a comparação está centrada nas forças militares – especificamente os exércitos – dos países envolvidos no conflito.
Diversos fatores, externos e próprios da dinâmica colonial, contribuíram para que as colônias hispânicas e portuguesa tivessem destinos diferentes e configurassem suas fronteiras de forma distinta. Além dos aspectos político-administrativos, sociais e econômicos, o poder militar dos dois países ibéricos projetado em suas colônias influenciou diretamente na formação territorial dos novos países resultantes do processo de emancipação política.
O presente trabalho tem por objetivo analisar, por meio da história comparada, como o poder militar de Portugal e Espanha, projetado em suas colônias, contribuiu para a configuração das fronteiras dos novos países latino-americanos. A abordagem comparativa entre as Américas portuguesa e espanhola possibilita compreender os elementos estruturais a partir de experiências distintas. Nessa perspectiva, o método comparativo constitui-se uma oportunidade singular para se repensar a própria história em seus desafios e limites[4].
2. Independência – novos ventos sopram na América Ibérica
A expansão napoleônica na Europa levou o Exército Francês a invadir a Península Ibérica em 1808, dando origem à Guerra Peninsular, conflito que afetaria profundamente as monarquias da Espanha e de Portugal, e seria o catalisador dos processos de independência de suas colônias americanas.
As colônias espanholas nas Américas eram palco de inquietações desde meados do século XVIII, opondo, principalmente, os funcionários da Coroa, responsáveis pelo governo e pela política fiscal, e a elite criolla[5], o que era agravado pelo crescente controle da metrópole sobre os negócios coloniais implantado pelas Reformas Bourbônicas.
Napoleão, após invadir a Espanha em 1808, forçou a abdicação do rei Carlos IV e deu a Coroa a seu irmão José Bonaparte. Os espanhóis organizaram um governo de resistência em Cádiz, mas este não tinha condições de governar a metrópole, muito menos as colônias. Manuel Chust destaca a difícil situação do império espanhol: “[...] o processo ficou ainda mais complicado quando, a partir de 1908 e especialmente de 1810 até 1814, a “Monarquia" sem monarca se tornou constitucional com o Código de 1812, sancionado pelas Cortes de Cádiz"[6].
A primeira reação das elites coloniais – tanto peninsulares, como criollos – foi organizarem juntas leais ao governo em Cádiz, entre 1808 e 1810. Em face da situação em que se encontravam, caracterizada por tensões sociais e pelo enfraquecimento da monarquia, os criollos, cujos interesses nem sempre coincidiam com os da metrópole, apresentavam diversas reivindicações com caráter autonomistas, não sendo atendidos em seus pleitos[7].
A América hispânica, contudo, logo mergulhou no caos político, com as câmaras locais divididas e se contrapondo aos vice-reis e demais burocratas peninsulares. A partir de 1810 conflitos armados irromperam em diversas partes da América, com forte caráter revolucionário, colocando em terrenos opostos tropas “realistas" e os exércitos libertadores[8].
A Guerra Peninsular também determinou profundas mudanças em Portugal, que resultariam na independência de sua principal colônia, o Brasil. O processo de emancipação política da América portuguesa, contudo, deu-se de maneira completamente distinta das colônias hispânicas, conforme observou Maria Odila Dias, um processo sui generis, caracterizado não pela ruptura, mas pela continuidade[9].
Aproveitando-se do domínio de quase toda a Europa, Napoleão decretou, em 1806, o Bloqueio Continental[10], visando derrotar a Inglaterra, sua principal inimiga. Devido à dependência econômica de Portugal em relação à Inglaterra, o príncipe-regente D. João, que substituía sua mãe D. Maria I afastada do trono em decorrência de problemas de saúde desde 1792, não acatou de imediato a imposição do bloqueio[11].
Com efeito, em novembro de 1807 os franceses invadiram o território português. Atendendo a um plano já há bastante tempo gestado e aperfeiçoado pela burocracia estatal portuguesa e com o apoio da Inglaterra, em 1808 a família real portuguesa deixou Lisboa e partiu para o Brasil, modificando a sede do reino com o objetivo imediato de manter intacta a Coroa portuguesa.
Nesse novo modelo de império luso-brasileiro, D. João contribuiu para a centralização do poder na cidade do Rio de Janeiro, que passou a figurar como a nova sede da metrópole, e inverteu o estatuto colonial do Brasil[12].
A vinda da família real representou o translado de toda a administração de Lisboa para o Rio de Janeiro e, cedo, novos órgãos da burocracia estatal e do estamento militar foram criados no Brasil. Mediante a ação de D. Rodrigo de Souza Coutinho, Conde de Linhares[13], Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, desenvolveu-se uma ampla reforma das instituições militares no Brasil. Na ocasião foram criados e introduzidos diversos órgãos e instalações militares até então inexistentes no Brasil, como a Real Academia Militar, a Fábrica de Pólvora, o Arsenal de Guerra, o Hospital Militar, entre outros.[14].
Pressionado pelas cortes lusitanas, D. João, contra a sua vontade e após um período de treze anos de permanência, onde se destacaram a abertura dos portos brasileiros às nações amigas, em 1810, e a elevação do Brasil a reino unido a Portugal e Algarve, em 1815, partiu com destino a Portugal em 1821, deixando em seu lugar, como príncipe-regente, seu filho D. Pedro.
Por exigência das tropas portuguesas estacionadas no Brasil, D. Pedro jurou observar a Constituição portuguesa, mas, ainda em 1821, diversas medidas das Cortes de Lisboa tentaram diminuir o poder do regente e pôr fim a autonomia que o Brasil adquirira. Além disso, as Cortes passaram a insistir na volta de D. Pedro para Portugal, sob o pretexto de que ele precisava completar seus estudos na Europa.
A insistência para que D. Pedro retornasse para Portugal despertou atitudes de resistência no Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Sentindo que a volta do príncipe seria inevitável a restituição do Brasil à condição de colônia, algumas lideranças brasileiras deram início a um movimento para pressioná-lo a permanecer no Brasil.
Em janeiro de 1822, foi entregue uma petição ao príncipe solicitando que não abandonasse o Brasil. D. Pedro aquiesceu e, desrespeitando frontalmente a deliberação das Cortes, optou por permanecer como regente, no que ficou conhecido como o “dia do fico".[15]
Em face das reiteradas pressões das cortes de Lisboa, em 7 de setembro de 1822 o príncipe declarou a independência do Brasil, concluindo o longo e cumulativo processo caracterizado pela continuidade ao longo do caminho[16].
Os processos de independência tão distintos das colônias das Américas hispânica e portuguesa, caracterizados pela ruptura e pela continuidade, respectivamente, teriam reflexos diretos no campo militar, como veremos a seguir.
3. O poder militar e a formação dos novos territórios
Possuidor de um vasto império ultramarino, a Espanha sempre se valeu de seu poder militar para manter seus territórios coloniais, utilizando, para tal, sua bem estruturada marinha e seu exército. Todavia, em razão da extensão territorial a ser guardada e protegida contra ameaças e do tamanho do exército regular espanhol, parcela significativa da defesa das colônias era atribuída às milícias locais.
A Guerra peninsular agravou a questão da defesa das colônias, na medida em que a Coroa espanhola, diante da possibilidade da perda de seu território e do próprio reino, precisou direcionar o esforço de seu poder militar para a Europa, deixando as colônias praticamente a cargo das milícias locais. Para enfrentar os franceses, teve início uma forte política de recrutamento forçado, com o objetivo de completar o exército para a defesa da própria península[17].
Um exemplo dessa incapacidade de empregar seu poder militar para defender as colônias nas Américas ocorreu após a Batalha de Trafalgar[18], após a qual a monarquia espanhola ficou praticamente sem uma Armada. Diante das constantes investidas inglesas contra o Rio da Prata, os espanhóis não puderam combatê-los nas melhores condições, pois, mesmo possuindo tropas regulares para intervir na região, não dispunham de uma esquadra para transportá-los. Diante da manifesta ausência da Armada espanhola, os ingleses efetivamente ocuparam Buenos Aires em 1806[19].
Para estimular o alistamento nas milícias, foram concedidas aos criollos e aos mestiços as mesmas prerrogativas de que gozavam os militares espanhóis, o que representou um instrumento de mobilidade e ascensão social, ao mesmo tempo em que promoveu uma “americanização" do exército colonial espanhol, inclusive entre as poucas tropas regulares desdobradas nas Américas[20]. O estabelecimento de batalhões fixos e milícias permanentes constituiu-se em fator fundamental para explicar a perda do controle das regiões colonizadas por parte da Coroa espanhola[21]. Ao delegar a defesa das colônias para as milícias e para as elites locais, a Espanha criou uma arma que se voltaria contra ela[22].
As tensões sociais e econômicas e a perda da capacidade da monarquia espanhola de controlar suas colônias americanas resultaram em movimentos de ruptura, que surgiram com caráter descentralizado e regional. As condições culturais, administrativas e geográficas existentes no período colonial favoreceram a formação de unidades regionais distintas umas das outras. A administração do império era estruturada em vice-reinados, capitanias-gerais e audiências, cada qual com organização burocrática própria e com um governante executivo. Essa estrutura fragmentada favorecia o regionalismo e um sentimento de pertencimento social local[23].
A extensão do território, associada a grandes acidentes geográficos dissociadores, como a Cordilheira dos Andes e os rios da Amazônia e da Bacia do Prata, por exemplo, também contribuíam para o fortalecimento dos regionalismos. O mesmo ocorria com as lideranças criollas, estabelecidas segundo uma lógica associada aos diferentes territórios.
Dentro desse quadro, as milícias seguiram o caminho natural de serem organizadas também com caráter regional, não havendo, nos primeiros anos do século XIX, uma força militar efetivamente unificada na América hispânica. Após a inesperada e surpreendente vitória espanhola contra os franceses na batalha de Bailén (1808)[24], os vice-reis e os capitães-gerais interpretaram que a Coroa estava se fortalecendo, e utilizaram suas forças armadas para impor sua autoridade e defender a monarquia, acusando de “insurgentes", “infiéis" e “traidores de lesa-majestade" muitos dos movimentos articulados pelos criollos em algumas juntas em busca de mais autonomia[25].
Com efeito, a partir de 1810 lideranças criollas, como Simón Bolívar, José de San Martin, Francisco de Miranda, dentre outros, começaram a organizar exércitos de libertação dentro de seus próprios territórios para lutar contra o poder imperial[26]. Com promessas que incluíam a abolição da escravatura e a concessão de benefícios sociais a seus soldados “patriotas", os líderes criollos conseguiram reunir uma força militar capaz de obter a vitória contra a facção “realista", resultando na libertação do jugo colonial espanhol[27].
No conjunto, os movimentos pela independência na América hispânica tiveram forte caráter de guerra civil. Com o vácuo de poder na Espanha, decorrente da invasão napoleônica entre 1808 e 1815, as elites locais lutaram duramente pelo poder, esfacelando a estrutura político-administrativa dos vice-reinados e capitanias-gerais. Em todos os casos, a solução política foi o regime republicano, com exceção do México, que experimentou um muito breve período imperial.
Simón Bolivar chegou a esboçar um plano de unificação da América espanhola, embora a base de seu Pan-Americanismo fosse extremamente precária. Em 1826, por ocasião do Congresso do Panamá, o projeto foi abandonado e a região se esfacelou em vários países.
A incapacidade da Espanha de projetar o seu poder militar sobre suas colônias e o caráter regional das milícias hispano-americanas resultaram, na classificação de Manuel Chust, em uma “ruptura colossal"[28], com a fragmentação territorial e a formação de mais de uma dezena de Estados.
De forma análoga ao que acontecia com os espanhóis, o império ultramarino português era, por sua extensão e dispersão geográfica, bastante vulnerável a ameaças externas. Em seus três primeiros séculos de história, o Brasil sofreu invasões francesas e holandesas, a ação de corsários em sua costa, e enfrentou uma guerra limitada no sul do território contra os espanhóis[29].
Em face da constante ameaça de conflito contra franceses e espanhóis, em meados do século XVIII, o Rei D. João V procurou dar uma estrutura mais adequada ao Exército Português, organizando-o em três linhas. A artilharia foi estruturada como arma, tornando-se independente da infantaria. A nova organização dividia o exército em três categorias: tropas de 1ª, 2ª e 3ª linhas.
As tropas de 1ª linha eram constituídas por soldados profissionais, pagos com o soldo e reunidos em Terços, até D. João V, ou em Regimentos, no século XVIII[30]. O número de soldados regulares era pequeno para atender às necessidades da Colônia, ou se comparado com a 2ª linha.
As tropas de 2ª linha eram as milícias, compostas por soldados em sua maioria nascidos no Brasil e recrutados nas freguesias de origem. As tropas de 2ª linha eram bem mais numerosas do que as de 1ª linha e incluíam soldados de diversas origens – brancos, negros libertos, mestiços, mas eram comandadas por oficiais brancos. Seus integrantes não venciam soldo, mas estavam sujeitos a um rígido código disciplinar. Organizadas também com infantaria, cavalaria e artilharia, a distribuição de unidades de 2ª linha variava muito de capitania para capitania.
A reputação das tropas de milícia brasileiras no período colonial não era das melhores, o que é compreensível face o treinamento deficiente e a organização precária. Eram comuns as queixas dos governadores e vice-reis dando conta da “falta de vocação militar do brasileiro". Por outro lado, Martinho de Melo, Secretário da Marinha e Ultramar, afirmava que “as principais forças que irão defender o Brasil são as do mesmo Brasil"[31]. As ordenanças, uma antiga instituição militar portuguesa, constituíam a 3ª linha e arregimentavam todos os homens livres entre 18 e 60 anos de idade, em tese, incapazes de servir nas tropas de 1ª ou 2ª linha[32]. Novas reformas no sistema militar português ocorreram em 1796 com reflexo na Colônia, quando as tropas auxiliares (2ª linha) passaram a ser denominadas regimentos de milícias.
A vinda da Família Real para o Brasil em 1808, em consequência da invasão francesa, e a instalação da sede do Estado português no Rio de Janeiro tiveram reflexos imediatos no campo da defesa. D. João encontrou as instituições militares debilitadas e estagnadas. As tropas não eram instruídas adequadamente e sua distribuição geográfica não permitia o emprego eficaz em caso de necessidade. Se a situação na 1ª linha já não era das melhores, a milícia encontrava-se ainda em piores condições. Seus homens demonstravam “tão pouco apego à profissão que, quando não estavam na formatura eram os escravos que lhes carregavam os mosquetes, os tambores e a própria bandeira do regimento"[33].
Diante deste cenário, D. João nomeou para a pasta dos Negócios Estrangeiros e da Guerra D. Rodrigo de Souza Coutinho, Conde de Linhares, que fora aluno da Universidade de Coimbra. Por intermédio do novo secretário, o regente tratou de implementar melhorias no sistema defensivo do Brasil, criando o Conselho Supremo Militar, impulsionando a fabricação de armas e de pólvora e contratando espingardeiros alemães. Criou a Academia Real Militar, organizou o Arsenal de Guerra, construiu o Quartel-General e reorganizou as unidades do Exército.
Com a inversão do estatuto colonial do Brasil o poder militar português passou a ser concentrado no Brasil, situação completamente oposta do que ocorreu na América hispânica, onde as forças armadas foram direcionadas para defender a península. As reformas empreendidas pelo Conde de Linhares estabilizaram o poderio militar no Brasil, a ponto de D. João decidir empreender campanhas militares contra a Guiana e contra a Cisplatina, embora essas guerras limitadas tenham impactado negativamente as finanças do reino[34].
A partir de 1815, expulsas as tropas de Napoleão de Portugal, chegaram ao Brasil novas unidades do Exército Português. A Divisão de Voluntários d' El Rei, contando com cerca de 10 mil homens, foi enviada para a Cisplatina, a fim de reforçar as tropas de 1ª e 2ª linhas que, sob as ordens do general Joaquim Xavier Curado, combatiam os platinos no sul do país. Para a Corte, em 1817 veio a Divisão Auxiliadora, composta por quatro batalhões de infantaria, um de caçadores e uma brigada de artilharia. Além dessas forças, chegaram batalhões destinados à Pernambuco, Bahia e Piauí. Tais unidades seriam, pouco tempo depois, os principais elementos de resistência à independência do Brasil[35].
O poder militar português passou a ser concentrado no Brasil, situação completamente oposta do que ocorreu na América hispânica, onde as forças armadas foram direcionadas para defender a península. As reformas empreendidas pelo Conde de Linhares estabilizaram o poderio militar no Brasil, a ponto de D. João decidir empreender campanhas militares contra a Guiana e contra a Cisplatina, embora essas guerras limitadas tenham impactado negativamente as finanças do reino[36].
A recusa de D. Pedro de regressar a Portugal, deixando claro o seu posicionamento de insubmissão às Cortes de Lisboa, levou as tropas portuguesas da Divisão Auxiliadora a traçarem um plano para conduzi-lo à força para a Europa. Ciente da ameaça, D. Pedro mobilizou a milícia, composta em sua maioria por brasileiros, que garantiu a defesa do regente. Após o “dia do fico", a mesma divisão provocou desordens no Rio de Janeiro, o que levou D. Pedro a enviá-la para Niterói. Mais tarde, visando à consolidação de sua posição, o regente expulsou a Divisão Auxiliadora, determinando seu retorno para a Europa[37].
Após a declaração de independência em 7 de setembro de 1822, as poucas tropas regulares portuguesas estacionadas no Brasil procuraram resistir à nova situação, particularmente nas regiões aonde o controle a partir do Rio de Janeiro era mais difícil. Teve início, então, uma guerra entre os portugueses e o novo exército imperial brasileiro, estabelecido com base na milícia, mas também com a adesão de oficiais e soldados portugueses que optaram pela causa da independência. No conflito, desenvolvido no Grão-Pará, Ceará, Piauí, Bahia e Cisplatina, D. Pedro pôde empregar o poder militar estabelecido no Brasil por seu pai a partir de 1808 para expulsar os portugueses e, em um primeiro momento, assegurar a integridade territorial do país. Portugal chegou a planejar o envio de reforços para tentar reverter a situação, mas, com o reconhecimento da independência pela Inglaterra, o plano foi abandonado[38].
O processo de emancipação política do Brasil, no entanto, não coincidiu com a consolidação da unidade nacional, que ocorreu somente alguns anos mais tarde[39]. O país teve consolidada a sua independência e definidas suas fronteiras no período regencial, na década de 1840, quando, novamente aplicando seu poder militar a partir do Rio de Janeiro, o Governo imperial conseguiu sufocar diversas revoltas regionais de caráter separatista, oportunidade na qual Caxias teve atuação destacada[40].
A exceção foi a província Cisplatina, que, após uma guerra entre o Brasil e as Províncias Unidas do Rio da Prata, e sob os auspícios da Inglaterra, tornou-se o Uruguai, na condição de “estado-tampão" para limitar os interesses brasileiros na região[41] e reduzir o potencial conflituoso. Com exceção dessa perda, o território brasileiro permaneceu íntegro, situação completamente distinta do que ocorreu com os novos países da América hispânica.
4. Reflexões finais
O processo de independência das colônias espanholas e portuguesa nas Américas teve características bastante distintas, e foi motivado por diferentes fatores, inclusive no campo militar, resultando na configuração territorial dos países latino-americanos.
Foram necessários alguns conflitos pós-independências para atribuir o desenho atual das fronteiras. Na América do Norte, após uma guerra ocorrida entre 1846 e 1848, o México foi obrigado a ceder grandes regiões do norte do país para os Estados Unidos. No sul do continente, a Guerra do Paraguai (1864-1870) fez com que o Paraguai perdesse boa parte de seu território para o Brasil e para a Argentina. A Guerra do Pacífico, que confrontou o Chile e as forças conjuntas da Bolívia e do Peru entre 1879-1883, fez com que a Bolívia perdesse definitivamente sua saída para o Oceano Pacífico.
Na virada do século XIX para o XX, após uma revolta local, o Acre foi incorporado ao território brasileiro. Já no século XX, entre 1932 e 1935, Bolívia e Paraguai se enfrentaram em um conflito pela posse da região do Chaco. Em julho de 1938, os dois países aceitaram o acordo de paz firmado em Buenos Aires, estabelecendo que o Paraguai ficaria com 3/4 do território do Chaco Boreal e a Bolívia com 1/4[42].
Apesar dessas novas modificações pontuais nas fronteiras, a configuração territorial dos países da América Latina aproxima-se da que resultou do processo de emancipação política das metrópoles ibéricas. As características das independências das antigas colônias espanholas e portuguesa, marcadas fortemente pela ruptura e pela continuidade, respectivamente, tiveram como consequência a fragmentação territorial dos países de origens hispânicas e a manutenção da integridade do território brasileiro.
Neste processo as possibilidades de emprego do poder militar fizeram a diferença. A Espanha concentrou seus meios para lutar contra os franceses na Península Ibérica e deixou a defesa das colônias a cargo de milícias regionais, que se voltaram contra a monarquia sob a liderança das elites criollas locais, reivindicando seus direitos.
De forma completamente distinta, a vinda da Família Real portuguesa para o Brasil trouxe junto o cerne do poder militar, que foi utilizado por D. Pedro para vencer a resistência das tropas regulares portuguesas e, durante o período regencial, pelo Governo imperial para sufocar revoltas separatistas. O resultado desse processo histórico pode ser visto nas fronteiras dos países latino-americanos até hoje.
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NOTAS
[1] CHUST, Manuel. Reflexões sobre as independências iberoamericanas. Revista de História, n.159, p.243-262, 2º sem. 2008, P. 261.
[2] NYE JUNIOR, Joseph. Soft Power: the means to success in world politics. New York: Public Affairs, 2004.
[3] KOCKA, Jürgen. Comparison and beyond. History and Theory, Middletown, v. 42, n. 1, p. 39-44, 2003, p. 40.
[4] BARROS, José D´Assunção. História comparada: atualidade e origens de um campo disciplinar. História Revista, Goiânia, v. 12, n. 2, p.2 79-315, jul./dez. 2007, p. 285.
[5] Os criollos eram pessoas de ascendência europeia nascidas na América espanhola. Integravam os setores dominantes da sociedade colonial, que concentravam riqueza e poder e possuíam grande prestígio social. Ver DONGHI, Tulio Halperín. The Contemporary History of Latin America. Durham: Duke University Press, 1993.
[6] CHUST, op.cit., p. 248-249.
[7] Ibid.
[8] Cf GUERRA, François-Xavier. Modernidad e independencia. Madri: Mapfre, 1992, a ruptura se dava em termos da antiga relação pessoal e recíproca estabilidade entre o súdito e o rei, definida como uma relação binária. A noção de nação enquanto uma grande família era perdida a partir do desaparecimento da pessoa do rei.
[9] DIAS, op.cit.
[10] Pelo decreto de Napoleão, ficava proibido o comércio entre os países da Europa sob seu domínio com a Inglaterra. Com isso, a França buscava arruinar a poderosa economia inglesa, primeiro passo para uma posterior vitória de Bonaparte no campo militar.
[11] Diante da hesitação do regente português, Napoleão assinou com a Espanha, sua aliada desde 1807, o Tratado de Fointanebleau, que previa a invasão de Portugal por tropas anglo-francesas, a derrubada de seu governo e o desmembramento do reino e de suas colônias.
[12] NEVES, Lúcia Bastos. Estado e política na independência. In: GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo. O Brasil Imperial, v.1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.95-136.
[13] D. Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812), Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra estabeleceu no Brasil importantes instituições ligadas à sua pasta.
[14] FROTA, Guilherme de Andrea. Quinhentos anos de história do Brasil. Rio de Janeiro: Bibliex, 2000.
[15] Na ocasião, José Clemente Pereira leu o documento para o príncipe, que teria respondido com as seguintes palavras: "Se é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, estou pronto! Digam ao povo que fico". O episódio foi importante para o processo de independência, pois assinalou a primeira adesão pública do príncipe-regente à causa brasileira. Ver Carta de Dom Pedro para Dom João VI do dia 9 de janeiro de 1822. Publicado em: EGAS, Eugênio. Cartas de D. Pedro príncipe regente do Brasil a seu pae D. João VI Rei de Portugal (1821-1822). São Paulo: Thypographia Brasil de Rothschild e Companhia, 1916. p.47-48.
[16] MAXWELL, Kenneth. Por que o Brasil foi diferente? O contexto da independência. In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.) Viagem incompleta: a experiência brasileira. São Paulo: Editora Senac, 2000, p.179-195.
[17] BELTRÁN, Cristina Borroguero. Diccionario de Historia Militar: desde los reinos Medievales hasta nuestros días. Barcelona: Ariel, 2000.
[18] A Batalha de Trafalgar ocorreu ao largo da costa espanhola, em outubro de 1805, opondo a esquadra inglesa à uma esquadra franco-espanhola. A Marinha Real britânica saiu-se vitoriosa, causando grandes danos às forças navais francesas e espanholas. Após a derrota em Trafalgar, Napoleão Bonaparte desistiu de tentar invadir a Inglaterra, adotando outra tática contra os ingleses, a do Bloqueio Continental.
[19] CHUST, op.cit.
[20] LYNCH, John. Las revoluciones hispanoamericanas 1808-1826. Barcelona: Ariel, 2008.
[21] KUETHE, Allan. Military reform and society in New Granada, 1773-1808. Gainesville: University Presses of Florida, 1978.
[22] LYNCH, op.cit.
[23] Ibid.
[24] A Batalha de Bailén ocorreu durante a Guerra Peninsular, nas proximidades da cidade de Bailén, Província de Jaén, Espanha, no dia 19 de julho de 1808 Na ocasião um exército francês, com cerca de 21.000 soldados, foi derrotado por forças espanholas mais numerosas (cerca de 27.000 homens), no que foi a primeira derrota militar do exército de Napoleão Bonaparte.
[25] CHUST, op.cit.
[26] MARCHENA, Juan; CHUST, Manuel (Orgs.). Por la fuerza de las armas: Ejercito e independencias en Iberoamérica. Castellón: Universidad Jaume I, 2007.
[27] GOUVEIA, Maria de Fátima. Revolução e independências. Notas sobre os conceitos e os processos revolucionários na América espanhola. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 20, p. 275-294, 1997.
[28] CHUST, op.cit.
[29] Cf. José Murilo de Carvalho (1999), a “guerra com os índios e a defesa da colônia contra a ameaça de outras potências, sobretudo a Espanha, a Holanda e a França, eram tarefas custosas que deixavam poucos recursos para investir na exploração dos novos territórios, pelo menos até a descoberta do ouro ao final do século XVII. Por um período de 60 anos (1580-1640), a autonomia da metrópole desapareceu sob o domínio espanhol. Durante esse período, os holandeses ocuparam a parte mais rica da colônia. Libertar-se da Espanha e expulsar os holandeses foram tarefas adicionais que exauriram ainda mais a metrópole."
[30] WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José. Formação do Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.
[31] RIOS, José Arthur. O soldado luso-brasileiro. Revista do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil, Rio de Janeiro, v. Especial, n.87, p. 14-27, 2001, p. 21.
[32] DARÓZ, Carlos. A milícia em armas: o soldado brasileiro da guerra de independência. Revista Brasileira de História Militar, Rio de Janeiro, v. 11, p. 30-51, 2013.
[33] LIMA, Oliveira. D. João no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p. 288.
[34] DIAS, op.cit.
[35] DARÓZ, op.cit.
[36] DIAS, op.cit.
[37] ALEXANDRE, Valentim. O processo de independência do Brasil. In: BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI, Kitti (Orgs.). História da expansão portuguesa: do Brasil para a África (1808-1930), v.4. Círculo de Leitores, Lisboa, 1998, p.7-39.
[38] NEVES, op.cit.
[39] DIAS, op.cit.
[40] MAXWELL, op.cit.
[41] Ibid.
[42] FARCAU, Bruce W. The Chaco war: Bolivia and Paraguay, 1931-1935. Westport: Praeger, 1996.
CARLOS ROBERTO CARVALHO DARÓZ
Coronel de Artilharia da reserva do Exército Brasileiro. Doutorando em História pela Université Libre de Bruxelles e especialista em História Militar pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Associado titular emérito do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil.
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