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8 - Fronteiras e Fortificação no Brasil do Século XVIII Obras dos Engenheiros Militares
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FRONTEIRAS E FORTIFICAÇÃO NO BRASIL DO SÉCULO XVIII OBRAS DOS ENGENHEIROS MILITARES

 

 

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José Paulo Berger

 

 


Resumo

O actual território que hoje é o Brasil, no século XVIII, passados os ciclos do pau-brasil e do açucar, finda a organização administrativa da União Ibérica, liberto nas regiões ocupadas pelos holandeses e franceses e ameaçado nas suas fronteiras pelos espanhóis, constituiu a principal alternativa económica à carreira das Índias, pelo que teve que ser desenvolvido, protegido e defendido. Tais esforços, imensos para um Estado com a dimensão de Portugal, deveram-se em grande parte ao conhecimento e trabalho de engenheiros militares, ao conceito defensivo implementado, à fortificação abaluartada edificada, mas também ao reconhecimento e marcação das suas fronteiras, assente na cartografia por eles levantada, que serviu diplomaticamente os interesses políticos de Portugal e contribuiu para a definição da génese fronteiriça de um dos maiores países do Mundo.

Palavras-Chave: Brasil; Território; Cartografia; Fortificação; Fronteira; Engenheiro militar.​

Abstract

The current territory that is Brazil today, in the eighteenth century, after the cycles of pau-brasil and sugar, with the end of the administrative organization of the Iberian Union, freed in the regions occupied by the Dutch and French and threatened on its borders by the Spaniards, constituted the main economic alternative to the route to the Indies, for which reason it had to be developed, protected and defended. Such efforts, immense for a State the size of Portugal, were largely due to the knowledge and work of military engineers, the defensive concept implemented, the bulwark fortification built, but also the recognition and marking of its borders, based on cartography raised by them, which diplomatically served Portugal's political interests and contributed to the definition of the border genesis of one of the largest countries in the world.

Keywords: Brazil; Territory; Cartography; Fortification; Border; Military Engineer.

 



O actual território brasileiro possui como característica principal a sua grande extensão, o que faz com que o Brasil seja considerado como um território de dimensões continentais[1] e uma potência emergente no panorama Mundial.

A história da expansão portuguesa e a acção militar dos portugueses na sua concretização está preenchida por acontecimentos notáveis como são as obras realizadas através dos séculos pela engenharia militar portuguesa nos territórios ultramarinos. Destaca-se principalmente em dois tipos de intervenções distintas mas complementares: a primeira testemunhada pelas muralhas das fortalezas que marcaram uma afirmação de soberania e, que, no Brasil, os portugueses construíram desde o Amazonas ao Prata e no interior atá à sua actual fronteira Oeste, constituindo-se obviamente como pontos de encontro das raças e civilizações que ajudaram a formar um dos maiores países do Mundo; o segundo aspecto, tão notável como o primeiro, trata-se da actividade cartográfica desenvolvida pela engenharia militar que levou ao levantamento e delineamento de mapas de tão vastas regiões, anteriormente desconhecidas, permitindo o conhecimento do território e tendo servido de base para desempenhar um papel relevante na fixação dos seus limites através de intricadas e difíceis negociações políticas e diplomáticas, e contribuindo para o planeamento territorial e posteriormente para o aparecimento e crescimento das grandes urbes que fixaram a população por todo o imenso território e contribuíram para o seu desenvolvimento.

A engenharia militar portuguesa tem no seu curricula uma vasta obra no Brasil, quer no domínio da construção de fortificações, quer no que respeita a levantamentos cartográficos. Estas actividades que, na segunda metade do século XVI e nos princípios do século XVII, foram desempenhadas por arquitectos e engenheiros italianos e castelhanos, a maior parte professos de ordens religiosas. Depois da Restauração da Independência, após reconhecer-se a necessidade de desenvolver o ensino da engenharia entre os portugueses, tendo como consequência a criação em 13 de Julho de 1647 da Aula de Fortificação e Arquitectura Militar, instituição do ensino militar que veio a permitir, logo a partir segunda metade do século XVII, o desenvolvimento das actividades dos engenheiros militares por todo o Ultramar e especialmente no Brasil, atingindo no século XVIII, uma intensidade e extensão completamente notáveis, levando a que nesse século se procedesse a uma laboriosa renovação da cartografia portuguesa, sobretudo, como já afirmado, no que respeita ao Brasil, e que ali se consolidassem as fronteiras da soberania lusa que, futuramente, na práctica, materializariam quase os principais limites do actual conjunto de Estados Brasileiros.

Navegadores partidos da Península Ibérica, na última década do século XV, anunciaram ao Mundo terem descoberto a América, facto para o qual os gabinetes secretos dos Estados Ibéricos há algum tempo trabalhavam dedicando-se a contactos prévios que ficavam no secretismo da sua actividade. Estávamos numa época em que se reconhecia ao Papado o direito de dispor das terras e dos povos e face à rivalidade entre Castelhanos e Portugueses, o Papa Alexandre VI, nascido em Espanha, dividiu uma vez mais a Terra, ao difundir a bula inter coetera, de 1493, delimitando de forma diferente[2] o Novo Mundo a partilhar entre Espanha e Portugal.

Não aceitando os efeitos desta bula papal, o Príncipe Perfeito, el-rei D. João II de Portugal, com o seu corpo diplomático e através de cuidadas negociações consegue que as suas pretensões sejam aceites ficando consignadas no tratado de Tordesilhas (1494)[3]. Seria já nos auspícios deste tratado que, em 1500, Pedro Álvares Cabral acharia as terras inicialmente designadas de Vera Cruz, permitindo à Coroa Portuguesa reivindicar o território que mais tarde ampliará e oficialmente se designará como Brasil.

Condicionada pelo tratado de Tordesilhas na expansão para Oeste, a Coroa Portuguesa passou a colonizar e a administrar as novas terras através de capitanias hereditárias que promoveram o seu desenvolvimento. Com a união das Coroas Ibéricas durante a Dinastia Filipina a prioridade política defensiva do espaço ibérico, entre 1580 e 1640, foi preponderantemente marítima, com o objectivo de salvaguardar o império comum e defender o Mare Clausum, pelo que a demarcação imposta em 1494 deixou de fazer sentido. Nas marchas de penetração para Norte, desde a conquista da Paraíba em 1584, até à recuperação do Pará em 1616, houve toda uma empolgante epopeia de ocupação deste imenso território brasileiro acompanhada do povoamento e da sua defesa especialmente contra as ameaças levadas a cabo por outras potências europeias, a França, Holanda e Inglaterra, contra a União Ibérica, mais particularmente com especial antipatia contra a Espanha dos Filipes, e que tiveram particular incidência no Norte e Nordeste do Brasil.

Na primeira parte do século XVII, enquanto durou a União Ibérica, a instabilidade e as ameaças foram permanentes, tanto no Oriente como no Brasil, em África ou nas Ilhas Atlânticas. Com a aclamação do Senhor D. João IV, Duque de Bragança, como Rei de Portugal, o quadro político-militar passou a ser completamente diferente e vão intensificar-se campanhas[4] exploratórias para o interior da terra brasiliense destinadas a realizar o mapeamento do território tendo em vista viabilizar a sua colonização, o que permitiu que Portugal tomasse a posse efectiva do vasto território para oeste do meridiano de “Tordesilhas" consolidando a sua presença e procurando sempre ampliar as dimensões do território explorado o que o obrigava a programadas orientações para a sua defesa.

Buenos Aires, que assegurava a posse da região platina, na foz do Rio da Prata que penetrava pelo interior do continente, estava assegurada pelos espanhóis, pelo que se tornava necessário aos portugueses, para alcançarem esse mesmo interior, explorarem a bacia amazónica[5] e forçarem a penetração em direcção ao Rio Amazonas, cujas iniciativas necessitaram de muito tempo e grande esforço, só tendo sido conseguidas após as campanhas levadas a cabo em Pernambuco e no Maranhão.

Nestas condições, além do litoral, foi necessário promover a construção de fortificações nos pontos importantes e chave das principais bacias fluviais, em especial ao longo das bacias hidrográficas do Amazonas, a Norte, e do Paraguai, a Sul[6].

Toda esta actuação para garantir o domínio do vasto território, que viria a ser o embrião da actual configuração física e política brasileira, como suporte económico da coroa portuguesa, face à decadência do comércio com o Índico, levou a que os portugueses se voltassem preferencialmente para o Brasil numa tentativa de manutenção das profundas fronteiras traçadas pelas explorações bandeirantes,  pelo que tiveram de delimitar e garantir a sua conformação territorial e a sua defesa obrigou à execução de repetitivos trabalhos cartográficos e à definição de uma estratégia defensiva, que suportada por campanhas militares e apoiada por uma diplomacia permanente, assentou no controlo do litoral e das comunicações marítimas, mas também na construção de um vasto conjunto de fortificações, que do litoral se estendeu e expandiu por todo o território especialmente nos pontos que efectivamente garantiam a presença portuguesa, a posse e acesso aos territórios administrados em todo o Brasil, para o que houve que definir fronteiras e consolidar territórios de uma imensidão nunca antes vista.

E como testemunha destas actividades cujo registo e relato nos ficaram nos nossos arquivos, desde o século XVIII, muito concorreu a destemida gente luso-brasileira e os ousados e letrados engenheiros militares cuja obra admirável se materializou principalmente pela construção das fortalezas, fortes, fortins e redutos levantados ao longo da orla marítima, em regiões interiores e nas extensas fronteiras terrestres, colocadas várias vezes à prova numa série de conturbadas situações políticas por arrasto da Europa e não só, mas, paralelamente, também pela demarcação dessas mesmas fronteiras, organização e desenvolvimento dos núcleos urbanos com a construção de outros equipamentos e obras necessários aos serviços indispensáveis à acção do governo, povoamento e necessidades de vida colectiva.

No caso particular do Brasil, o sistema defensivo português, quanto às funções exercidas pelas fortificações ao longo dos tempos, verifica-se que estas evoluíram no seu papel, sendo que, de início, detinham um carácter de protecção dos primeiros povoados e seus recursos; depois um papel mais preponderante na defesa dos principais centros urbanos e, por fim, uma presença visível na consolidação dos limites territoriais.

No início da ocupação, a fortificação começou por ser muito rudimentar principalmente por serem poucas as povoações importantes a defender e também porque as actividades económicas nelas praticadas na altura eram muito reduzidas. Mas os locais ocupados e povoados que detinham alguma importância, devido ao seu isolamento, quando defendidos, deveriam ser autosuficientes, uma vez que longas distâncias mediavam entre eles, tornando impossível um apoio mútuo com oportunidade.

Desta forma, o litoral brasileiro vai ser o espaço mais dotado de fortificações. Com este objectivo pretendia-se expressamente defender os locais dos ataques das grandes expedições corsárias não declaradas nem abertamente assumidas, mas patrocinadas pelos outros Estados Europeus que não pretendiam respeitar a vontade lusitana de ocupar, explorar e desenvolver as terras brasílicas.

As zonas de maior concentração de locais fortificados foram assim as regiões de Salvador (ameaçada pelos holandeses), na Bahia, do Rio de Janeiro (com ameaça dos franceses) e do Recife e Olinda em Pernambuco (ameaçada também pelos holandeses). Ao longo da costa Norte até ao Nordeste, as regiões de Belém, no Pará, Macapá em Amapá (ameaçadas pelos ingleses) São Luís, no Maranhão, Fortaleza, no Ceará, Natal, no Rio Grande do Norte e Paraíba (ameaçadas pelos franceses) foram motivo de preocupação, bem como, para Sul, na região Sudeste, Santos, na costa Paulista e, ainda mais a Sul, a ilha de Santa Catarina e todo o litoral catarinense, até aos limites do Rio Grande do Sul.

Quanto à defesa do interior, as fortificações foram edificadas em pontos-chave, tendo por base como requisitos barrar o acesso pelas principais vias fluviais de penetração ao mesmo tempo que asseguravam a sua utilização como vias navegáveis interiores, como eram as bacias hidrográficas do Amazonas e do Paraguai, já anteriormente referidas. Aqui tinham de ser tidas em conta todas as disputas da enorme e ténue linha fronteiriça que nos opunha aos interesses castelhanos.

A maior parte das fortificações constituíram a base da fundação de grande parte das povoações e condicionamento do seu desenvolvimento urbano apoiando as primeiras actividades económicas de exportação importante como as que constituíram os ciclos do pau-brasil e depois da cana-de-açúcar, que se praticaram durante os primeiros dois séculos de ocupação, tendo, entretanto, este último entrado em declínio, pela grande concorrência mundial praticada no mercado açucareiro.

No final do século XVII, os portugueses descobriram a existência das diversas jazidas de ouro no Brasil.  A partir de então, em Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás foi praticada uma intensa exploração das jazidas de ouro e também de diamantes e outras pedras preciosas. O período deste ciclo[7] vai ocorrer durante todo o século XVIII, tendo constituído o auge da economia colonial portuguesa que implicava que quase todo o ouro fosse enviado para a Europa. Nessa fase, o Brasil apresentou um significativo crescimento populacional que em conjunto com a riqueza das actividades económicas e o transporte das respectivas mercadorias obrigou a um reforço e modernização da fortificação existente.

Influenciadas por estes ciclos económicos as épocas com actividade de fortificação mais intensiva, nos mais de três séculos da presença portuguesa na administração das terras brasileiras, são também possíveis de identificar e caracterizar as fases específicas da fortificação do Brasil, que lhes estão associadas. Assim a 1.ª fase corresponde ao período inicial até finais do século XVI, à custa de paliçadas em madeira e torres de taipa. A 2.ª fase inclui todo o período da União Ibérica, com as características da fortificação italiana e holandesa. A 3.ª fase desenvolve-se pós Restauração, já com empenhamento de muitos engenheiros portugueses na recuperação, remodelação e reforço das fortificações existentes e implantação dos novos sistemas defensivos ao longo do litoral e especialmente para protecção dos principais centros urbanos. A 4.ª fase, coincidindo com o ciclo do ouro, permitiu e impôs um notável esforço de fortificação com a edificação de imponentes fortalezas abaluartadas nas regiões litorais limítrofes meridional e setentrional e da fronteira terrestre. A 5.ª fase abarca o período da permanência da Corte Portuguesa no Brasil.

Na quarta fase de fortificação do Brasil, correspondente às actividadss do século XVIII, de entre as várias fortificações cuja existência contribuiu para a consolidação da presença portuguesa, podem ser destacadas no litoral brasileiro:

A região de Salvador da Bahia, na altura a cidade que pela natureza geográfica detinha a estrutura governativa do Brasil, foi objecto de um sistema de defesa que foi progressivamente evoluindo sendo constituídas: na orla marítima afastada, as fortalezas de Santo António da Barra e de Nossa Senhora de Monserrate, os fortes de Santa Maria, de São Diogo, de São Paulo da Gamboa e de Santo Alberto; na orla de terra os fortes de Santo António Além-do-Carmo, do Barbalho e de São Pedro; e, no ancoradouro, o forte de São Marcelo.

A região do Rio de Janeiro, a cuja ampla baía da Guanabara se reconheceu sempre uma importância estratégica, foi retomada à força aos franceses, nela fundada a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro e progressivamente fortificada com as sentinelas da barra e do litoral fluminense: à entrada, as fortalezas de Santa Cruz, da Lage e de São João; dentro da barra o forte de Gragoatá, o forte de São Luís, as fortalezas da Praia Vermelha e da Conceição e o forte da Vigia; e, nas ilhas interiores da baía as fortalezas da Ilha das Cobras e de São Francisco Xavier Villegagnon.

A região do Recife, em Pernambuco, foi o território, de todo o Brasil, que, pela importância da sua posição estratégica de apoio às viagens de longo curso, mais cedo foi sujeita a uma concentração de obras de fortificação: as fortalezas de São Tiago das Cinco Pontas, de Santa Cruz de Itamaracá, de São João Baptista do Brum, e os fortes de São Francisco de Olinda, o do Pau Amarelo e o do Castelo do Mar.

A região de Macapá, com cidades em que surgiram fortalezas construídas no período da Guerra dos Sete Anos, para materializar a posse das terras do Cabo Norte e controlar estrategicamente as bocas sul e norte do Amazonas: as fortalezas de São José e de Santo António; e o forte de Macapá.

A região de Belém, no Pará, onde está situada uma das principais bocas do rio Amazonas que, pelo lado sul, controla o acesso à extensa e intrincada rede fluvial da região amazónica que motivou o esforço da sua fortificação: os fortes de Nossa Senhora das Mercês, do Castelo do Senhor Santo Cristo; os fortins da Ilha dos Periquitos e da Barra de Belém; e o reduto de São José.

A região de São Luís, no Maranhão, muito tempo ocupada pelos franceses, que ali construíram as primeiras fortificações, foi progressivamente passando à coroa portuguesa que as desenvolveu para a sua defesa, apesar das más características da costa e condições do mar: os fortes de Santo António da Barra, de São Francisco, de São Luís, e de São José de Itapari.

A região do Ceará, que abrange extensa faixa costeira, embora de difícil acessibilidade marítima, dispunha também de excelentes fortificações: a fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, os fortins de São Bernardo, de São Bartolomeu, de São Luís, e da Bandeira.

A região do Rio Grande do Norte, onde surgiu a cidade de Natal, foi também desde cedo motivo de preocupação defensiva, nela se destacando: a fortaleza dos Reis Magos e os fortes da Ponta Negra e da Redinha.

A região da Paraíba, detentora de três baías oferecendo bons ancoradouros, desde finais do século XVI passou a ter fortificações em sua defesa: os fortes de Nossa Senhora das Neves, de Santa Catarina do Cabedelo, de Santo António, e de São Filipe.

A região de São Paulo – Santos, ou da costa paulista, possuidora dos mais utilitários portos de mar, mereceu ao longo do tempo porfiados cuidados na defesa das suas barras Grande ou de Santo Amaro e de Bertioga sendo objecto de importantes fortificações: as fortalezas de Santo Amaro da Barra Grande, de São Filipe de Bertioga, e de São João de Bertioga; os fortes de Vera Cruz, da Ponta das Canas, de Cananeia, de Itaipu, de Nossa Senhora do Monte Serrat dos Santos, de São Luís de Armação, de Vila Bela, do Araçá, do Pontal da Cruz, do Rabo Azedo, e dos Andradas.

A região da Ilha de Santa Catarina, colocada pelo Tratado de Tordesilhas na zona de conflitualidade geopolítica do Brasil Meridional, constituiu-se na zona divisória natural entre os dois impérios ibéricos, até à fundação da colónia do Santíssimo Sacramento pelos portugueses em 1680. A partir daí, durante quase um século, a região passou a ser palco de constantes conflitos mudando de posse por várias vezes. Nesse contexto o povoamento da Ilha de Santa Catarina e o sistema defensivo do litoral catarinense detinham uma posição fulcral com fortificações abaluartadas: as fortalezas de São José da Ponta Grossa, de Santo António de Ratones, de Santa Cruz de Anhatomirim, de Nossa Senhora da Conceição de Araçatuba, os fortes de Santana do Estreito, de São Francisco Xavier da Praia de Fora, de São João do Estreito, de São Luís da Praia de Fora, de Santa Bárbara da Vila, de Inbiassape, da Ponta das Almas, de Nossa Senhora da Conceição da Lagoa, e de Nossa Senhora da Lapa do Ribeirão da Ilha.

A região do Rio Grande do Sul, com as mesma importância geopolítica que a de Santa Catarina, no que respeita à conflitualidade com os espanhóis, não foi descurada sendo fortificada com: os fortes de São José da Barra do Rio Grande, de Jesus, Maria, José do Rio Grande, de São José do Norte, do Junco, de D. Pedro II de Caçapava, de Jesus, Maria, José do Rio Pardo, e muitas outras fortificações de campanha e não permanentes tais como: os fortes de Santa Tecla, de Santana, de Santo Amaro, de São Gonçalo.

Mas não só a faixa litoral foi o motivo único da fortificação. Esta também foi necessária para consolidar a delimitação das fronteiras. Os primeiros limites territoriais do Brasil foram os que resultaram do texto do Tratado de Tordesilhas que os procurou estabelecer sem conseguir que fossem materializados geograficamente no território. Procurou-se encontrar então limites com base em acidentes naturais para definir o entorno geográfico do Brasil, que foram fixados pelas desembocaduras do Rio Amazonas, a Norte, e do Rio da Prata, a Sul. Mais tarde, com as explorações das bandeiras fluviais, como já referido foi possível encontrar a possibilidade de ligação de ambas.

Um dos vastos territórios do Brasil, hoje no actual Uruguai, que se estendia na margem esquerda do Rio da Prata até à margem esquerda do rio Uruguai, e daqui até à foz do Rio grande de São Pedro, em Santa Catarina, no Sul do Brasil, permaneceu praticamente abandonado à colonização Ibérica da América latina, até à fundação, em 1680, da colónia do Santíssimo Sacramento. Esta constituía um ponto de apoio fundamental na penetração pelo Prata ao ligar o interior do continente ao seu litoral, sendo escoamento da passagem de um intenso comércio rico em metais preciosos, gado, couro e animais para carga, considerados vitais economicamente para aquela região.

Neste período a cartografia portuguesa veio a atingir o seu apogeu com a política de ocupação, consolidação e posse do território, que foi impulsionado pelo Marquês de Pombal, no prosseguimento do projecto de D. João V da elaboração do “Novo Atlas do Brasil", com base em dados e conhecimentos científicos que ao longo do século XVIII permitiram consolidar os movimentos de expansão realizados pelos portugueses no continente sul-americano, bem como aumento do conhecimento através do levantamento cartográfico, orográfico e hidrográfico, com particular relevância das bacias dos rios  Amazonas e Prata, que tiveram nítida influência na definição dos limites territoriais do Brasil, bem como a possibilidade de ligação entre eles materializada pelos cursos dos rios Paraná, Guaporé e Madeira.

A particularidade destes rios do território do interior permitiu a efectiva ocupação por parte dos portugueses e assim marcar e consolidar as fronteiras. É nas suas margens que se irão construir várias das fortificações abaluartadas que com a sua artilharia controlariam os cursos e passagens. Desta forma foram construídos nas várias bacias hidrográficas dos principais rios que materializam a fronteira e o território interior brasileiro:

Na bacia Amazónica, no rio Negro: o forte de São José de Maribatanas, na margem direita, na fonteira do Brasil com o que hoje é a Venezuela; o forte de São Miguel da Cachoeira na margem esquerda; o forte de São Joaquim, na margem direita da foz do rio Uaupés, afluente da margem direita do alto rio Negro; o forte de São José da Barra do Rio Negro, na margem esquerda da barra do rio Negro, pouco acima da sua confluência com o rio Solimões; no rio Xingu: o forte de Mariocai, na margem esquerda, entre a foz do rio Peri e do rio Acaraí; o forte de Nassau, na margem esquerda, próximo com a confluência no Amazonas; o forte de Orange, na foz deste afluente com o Amazonas; o forte de Santo António de Gurupá, na ilha Grande de Gurupá, na confluência com o delta do Amazonas; o forte do Rio Toheré, na sua confluência; no rio Solimões: a fortaleza de Tabatinga, na margem esquerda, junto ao estuário do Javary, iniciado em 1776; o forte de Santo António dos Pauxis de Óbidos, na margem esquerda; no rio Amazonas: o forte de São Francisco Xavier de Tabatinga, iniciado em 1766, na margem esquerda, em frente da foz do rio Jaguari, na fronteira com o actual Peru; o forte de Muturu, na margem direita; o forte do Desterro, na margem esquerda, junto à foz do rio Uacarapy; o forte do Paru de Almeirim, na margem esquerda, junto à foz do rio Jenipapo; o forte do rio Maicuru, na margem esquerda, junto à foz do rio Maicuru; o forte dos Tapajós de Santarém, na margem direita, na confluência do rio Tapajós; o forte de Gurjão, na margem esquerda, na serra da Escama sobre o estreito de Óbidos; no rio Guaporé: o forte Príncipe da Beira, situado na margem direita, iniciado em 1776; o forte de Bragança, anteriormente presídio de Nossa Senhora da Conceição, na margem direita; os presídios das Pedras Negras, de Palmela, de Lamego e de Torres, na margem direita, e o presídio de Viseu, na margem esquerda, guarnecendo todos a fronteira com a actual Bolívia.

Na bacia do Paraguai, em posição dominante sobre o estreito de São Francisco Xavier, o forte de Nossa Senhora do Carmo de Coimbra, na margem esquerda, e o forte de Nova Coimbra, iniciado em 1775, na margem direita, na embocadura dos rios Tacuari e Miranda; o forte de Miranda, na margem direita do rio Miranda, afluente da margem esquerda do rio Paraguai; e o forte de Ladário, na margem direita.

Na bacia do Tocantins-Araguaia, no rio Tocantins: o forte da Cachoeira de Itaboca; e o forte de Nossa Senhora da Nazaré de Alcobaça, na margem esquerda;

Na bacia do Paraná, o forte de Nossa Senhora dos Prazeres do Iguatemi, na margem esquerda do rio Iguatemi, perto da confluência com o Rio Paraná;

Na bacia do Uruguai, as fortificações da margem esquerda do rio da Prata, mas que hoje não integram o território brasileiro. A posição geoestratégica da colónia do Santíssimo Sacramento foi foco de uma série de embates diplomáticos e militares e alternância frequente da sua posse pelas duas coroas envolvidas durante todo o século XVIII. No reavivar destas disputas, a Ilha de Santa Catarina tornou-se o último porto seguro entre o Rio de Janeiro e Buenos Aires passando a constituir um ponto estratégico para Portugal que necessitava de garantir a sua posse e ocupação, fortificação e utilização como base de apoio à navegação e operações militares de longa distância para sul. Esta disputa, já regulada pelo Tratado de Madrid, só irá estabilizar com o Tratado de Santo Ildefonso[8], em 1777, quando a sua manutenção pela coroa portuguesa já era insustentável face à efectiva ocupação de grande parte território interior pelos espanhóis.

Acompanhando este esforço cartográfico e diplomático, as fortificações fronteiriças vieram a ter um papel decisivo no êxito e exploração do sucesso conseguido através destes tratados garantindo estabilidade e sucesso produtivo numa das regiões que mais receitas comerciais produzia dos bens que exportava para a Europa.

Hoje a maioria destas fortificações e os levantamentos cartográficos realizados pelos engenheiros militares, que no passado tiveram um papel estruturante para a construção da imensidão que hoje é o Brasil, perdidas as suas funções de defesa, são mantidas como símbolos do passado e objectos culturais que fazem parte integrante do seu património histórico-cultural, sendo muitos dos testemunhos de um passado comum entre o Brasil e Portugal.

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Bibliografia:

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VIANNA, Hélio – História do Brasil. Período Colonial Monarquia e República. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1975.



​NOTAS​

[1] Actualmente, o Brasil é o quinto maior país existente no Mundo; a sua dimensão superficial fica apenas atrás da Federação Russa, Canadá, China e Estados Unidos da América do Norte. A extensão do território brasileiro é marcada pela enorme distância de mais de 4.300 km entre os seus extremos de norte a sul e de este para oeste. Apresenta cerca de 23.000 km de fronteiras, sendo dois terços terrestres e o restante marítimas. É também um dos países do Mundo que apresenta maiores áreas habitáveis e produtivas.

[2] Com a evolução da sua expansão marítima, Portugal, através de uma visão geoestratégica e mercante, procurou permanentemente preservar o seu empreendimento, conseguindo-o progressivamente pela: bula Dum Diversas (1452), bula Romanus Pontifex (1455), tratado de Alcáçovas (1479) e bula Æterni regis (1481), que separava as terras descobertas e a descobrir por um paralelo na latitude das Canárias, ficando assim o Mundo dividido em dois hemisférios: a norte, para a Coroa de Castela; e a sul, para a Coroa de Portugal.

[3] O tratado de Tordesilhas, assinado em 7 de Julho de 1494, tendo como signatários D. João II de Portugal e D. Fernando II de Aragão, estabelecia a divisão das áreas de influência dos países ibéricos, cabendo a Portugal as terras "descobertas e por descobrir" situadas antes da linha imaginária que demarcava 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde, e a Castela as terras que ficassem além dessa linha. Os termos do tratado foram ratificados por Castela a 2 de Julho e, por Portugal, a 5 de Setembro do mesmo ano, tendo o novo tratado sido aprovado pelo Papa Júlio II em 1506.

[4] As explorações iniciais, designadas como Entradas, foram sendo organizadas e financiadas pela coroa portuguesa respeitando os limites impostos em Tordesilhas. Posteriormente, principalmente após a aclamação de um rei português, em 1640, as explorações para o interior, agora designadas por Bandeiras e patrocinadas por empreendedores particulares, invadiam e penetravam profundamente no território para lá da linha que delimitava o território da Coroa Espanhola.

[5] Aqui deve ser recordada a “bandeira fluvial de Pedro Teixeira", que, em 1637-1638, subiu o Amazonas até chegar ao Peru, com o objectivo de explorar os segredos do grande rio como via de penetração no continente e de verificar os melhores lugares onde o rio pudesse ser fortificado.

[6] Também a Sul, temos que referir a “bandeira de António Raposo Tavares", entre 1648 e 1645, que, a partir de São Paulo, chegou a Corumbá, na região de Mato Grosso, para em seguida alcançar o Pará, chegando a Belém e estabelecendo a ligação das bacias do Prata e do Amazonas, através dos rios Paraná, Guaporé e Madeira.

[7] O ciclo do ouro chegou ao fim na segunda metade do século XVIII devido ao esgotamento das minas. Foi seguido pelo ciclo do algodão que se tornou o principal produto exportado pelo Brasil de grande relevância para a economia brasileira, especialmente pela procura durante a Revolução Industrial, em especial pela Inglaterra.

[8] Este tratado fechou um conjunto de negociações diplomáticas entre Portugal e Espanha, na sequência das disputas territoriais que os movimentos expansionistas na região Sul do Brasil motivaram, em que por parte da Espanha foi reconhecido à coroa portuguesa a posse de parte dos territórios ocupados para além da “linha de Tordesilhas", com a aplicação do conceito de uti possidetis de facto, já concedido pelo anterior tratado de Madrid, de 1750.​​

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JOSÉ PAULO BERGER

Engenheiro Militar, coronel do Exército Português, pós-graduado em Museologia e Museografia, chefe do Gabinete de Estudos Arqueológicos da Engenharia Militar, docente da cadeira de Fortificação e Arquitectura Militar na Academia Militar, membro da Ordem dos Engenheiros e sócio da Sociedade de Geografia de Lisboa, da Associação dos Arqueólogos Portugueses, da Associação Portuguesa dos Amigos dos Castelos e da Associação dos Amigos da Artilharia de Costa Portuguesa.​

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Como citar este texto:

BERGER, José Paulo – Fronteiras e Fortificação no Brasil do Século XVIII Obras dos Engenheiros Militares. Revista Portuguesa de História Militar - Dossier: O Brasil na História Militar de Portugal, 1500-1822. [Em linha]. Ano II, nº 3 (2022). [Consultado em ...], https://doi.org/10.56092/UBAM4332


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