EDITORIAL


Abílio Pires Lousada & Humberto Nuno de Oliveira
Quando D. João III subiu ao trono (1521-1557), a outrora pequena Nação costeira da Península Ibérica projectara o seu raio de acção marítimo e a sua influência comercial pelos 'quatro cantos' do planeta, dominando vastas possessões territoriais. Paralelamente, beneficiando de uma estável política externa na Europa, incluindo com o vizinho ibérico, Portugal era um Estado moderno, consolidado e global. O Império Ultramarino Português apoiava-se no domínio de pontos estratégicos, que permitiam o controlo eficaz das rotas marítimas e comerciais mais importantes: Ceuta vigiava o Mediterrâneo; Alcácer-Ceguer e Arzila davam consistência à presença no Norte de África; Melinde e Mombaça, situados na costa oriental africana, serviam de pontos de abastecimento do último troço da rota indiana; Ormuz, posicionado na desembocadura do Golfo Pérsico, Goa, pérola do Malabar, e Malaca, a controlar a passagem do Oceano Índico para o mar da China, representavam o triângulo estratégico onde Afonso de Albuquerque alicerçara o império do Oriente; Macau, por sua vez, dominava o rio das pérolas e permitia a entrada no Sudeste da China. O Brasil estava ainda maioritariamente por desbravar.
Porém, o monarca constatou os constrangimentos que rodeavam a expansão ultramarina. Desde logo, o facto de o índice demográfico do País não acompanhar o ritmo de crescimento da expansão. Depois as crises económicas internacionais, em 1545-1553, e nacionais, em 1554-1562, que foram arruinando as finanças régias. Assim, consciente que o Reino tinha dificuldades em dar sustentabilidade a tão extensas linhas de comunicações, D. João III percebeu estar perante graves problemas de administração e defesa militar, agravados pelo facto de as praças ultramarinas começarem a ser alvo de cobiças externas e acções de pirataria. Perante estas evidências, foi decidido, a partir de 1542, dar corpo a uma estratégia de reconfiguração ultramarina.
O Norte de África foi a região mais 'sacrificada', com as praças de Azamor, Cabo de Guê, Safim, Alcácer-Ceguer e Arzila a serem abandonadas, devido à instabilidade constante originada pelos autóctones marroquinos e à frequente pressão dos turcos, além das suas reduzidas valias comerciais e espirituais. Portanto, o papel marroquino foi subalternizado em relação às ilhas do Atlântico, ao Brasil e aos entrepostos comerciais do Índico e do Pacífico, procurando-se aqui fazer um esforço adequado de acordo com as vantagens económicas e as obrigações religiosas. Na Europa prosseguiu a linha da neutralidade e de vassalagem à Cúria Romana e, em relação à Espanha, uma postura de cooperação e de vigilância fronteiriça.
No fundo, D. João III fixou a Oriente, controlou no Atlântico, vigiou na Europa, abandonou África e 'atacou' no Brasil.
Mas, a decisão de abandonar as praças africanas não foi totalmente bem aceite, existindo opositores à medida tomada. Num discurso panegírico da época, afirmava-se ser “(…) mais justa e mais conveniente a conquista de África, que a da Índia, (…) [porque esta] estava muito longe e não rendia cousa, que com ela se tornasse a gastar e aquela estava doente e era muito prejudicial à Hespanha a sua vizinhança, e convinha domalla, e estender nella o império lusitano"[1].
Em 1557 morreu D. João III, sucedendo-lhe o neto, D. Sebastião, que contava três anos de idade. A rainha-viúva, Dona Catarina, assumiu a regência, governando até à sua substituição pelo cunhado, o infante-cardeal D. Henrique, nas Cortes de 1562-1563. É nessas Cortes que se reequaciona a política africana, deliberando-se que “não se larguem os logares de África, nem Mazagão", acrescentando ainda que “devem edificar fortalezas no Algarve e que todos devem contribuir para a guerra de África, para a fortificação e provisão militar de Tânger e, finalmente, que todos tivessem armas até duas léguas da costa"[2].
Em 1568, D. Sebastião ocupou o trono, deparando-se no reino, na Europa e no Império com um "mar de constrangimentos". Na corte, predominava o tema do Norte de África e a preocupação relativa ao perigo castelhano, que aumentava na proporção do seu próprio poderio. A Europa, a braços com o cisma cristão, mergulhara na secessão religiosa e na instabilidade política, com as questões de fé e de poder a conduzirem os Estados a guerras frequentes, situação agravada pelo perigo turco que espreitava nas fronteiras a Leste do continente e a Sudoeste do Mediterrâneo. No Ultramar, cresciam as dificuldades de manutenção da coesão das possessões orientais e a costa do Brasil era sistematicamente assaltada pelos piratas e corsários, que tornaram insegura a rota do Atlântico. A própria costa algarvia passou a sentir os efeitos da pirataria moura e britânica.
As linhas mestras da política imperial de D. Sebastião centraram-se na pacificação, evangelização e disciplina no Oriente, instando o vice-rei, D. Luís de Ataíde, a cristianizar as populações, a fazer justiça, a disciplinar a tropa e os colonos, a empreender conquistas[3], a povoar Angola e S. Jorge da Mina e a vitalizar o Brasil. Desta forma, numa inversão estratégica relativamente a D. João III, D. Sebastião decidiu viabilizar o império do Norte de África. Seguindo o raciocínio de Jorge Borges de Macedo, três ordens de razões devem ser levadas em linha de conta: a incomportabilidade do projecto oriental tal como se apresentava, o crescente perigo da hegemonia da Monarquia Hispânica e o avanço turco no Norte de África[4].
Em relação ao primeiro ponto, é crível que se tenha entendido que a manutenção dos dispersos e cobiçados domínios no Oriente estava, a prazo, condenada, procurando a sua substituição pela reconstituição do império africano de D. Afonso V, situado nas proximidades da metrópole e de mais fácil sustentação. Depois, o poder hispânico era um problema de crescente preocupação, com as influências tentaculares de Filipe II na Europa a atormentar a integridade do País. Daí ter D. Sebastião procurado acordos diplomáticos com as coroas britânica e francesa, que servissem de contrapeso às ambições continentais do vizinho ibérico. A política marroquina inseria-se neste contexto, já que a posse de praças-fortes em Marrocos permitia não só controlar o tráfego marítimo do Atlântico como manter uma certa pressão sobre a fronteira sul do território peninsular de Filipe II. Por fim, existia a questão turca, pois o controlo da zona de Marrocos pelos otomanos deitaria por terra o equilíbrio peninsular e europeu idealizado pelos portugueses, ao mesmo tempo que a rota do Atlântico poderia ser afectada e as costas portuguesas estariam sob constante ameaça.
Se esta concepção estratégica é coerente e perfeitamente compreensível, embora discutível, a sua operacionalização e execução táctica revelaram-se um autêntico fracasso. À frente de um exército com cerca de 17 mil combatentes, dos quais 6 mil eram estrangeiros – alemães, italianos, castelhanos, contingentes de Tânger [5], animado pelo espírito de aventura, da fé e do saque, deficientemente enquadrado e comandado, inadequadamente armado e pesadamente equipado, com fraca experiência de combate e insuficiente conhecimento do adversário, D. Sebastião embrenhou-se na aridez do território norte-africano. Ante um adversário melhor preparado para as especificidades do combate, a Batalha de Alcácer-Quibir, travada em 4 de Agosto de 1578, resultou no desastre que se conhece.
Com o desaparecimento do monarca e de muitos dos nobres que o acompanhavam, esfumou-se a reconstituição do Império Português no Norte de África e, com ele, a própria soberania portuguesa, que mergulhou nas 'trevas' devido ao não acautelamento da sucessão dinástica. Para trás ficava um País moribundo e órfão, que abriu uma grave crise dinástica em Portugal, que o casto cardeal-rei Dom Henrique não soube, não pôde ou não quis resolver.
Em 1580 revivia-se a crise de 1383-85, com um desenlace diferente, sendo o problema jurídico-ideológico da sucessão resolvido pela via político-militar, onde prevaleceu o direito do mais forte, ou seja, do rei da Monarquia Hispânica Filipe II, após derrota de D. António Prior do Crato na Batalha de Alcântara, a 25 de Agosto de 1580. Uma batalha onde os tércios hispânicos, uma das mais temíveis e experimentadas máquinas de guerras, e o traquejo de comando do duque de Alba, ditaram leis.
Vencido, mas protegido pela população, D. António tornou-se num foragido dentro do seu país, a quem durante meses foi movida implacável perseguição pelos agentes de Filipe II. Por fim evadiu-se, via Setúbal, para França, dando seguimento à resistência; encontrou nos Açores uma base de apoio geográfica para lançar a reconquista de Portugal[6]. Através da irredutibilidade dos terceirenses e da tenacidade do corregedor Ciprião de Figueiredo, assente na divisa «antes morrer livres que em paz sujeitos», logrou a memorável vitória em Angra, no combate da Salga de 25 de Julho de 1581, contra as forças espanhola de Pedro Valdés.
Mas Filipe II não ia transigir. Duas batalhas vão marcar o rumo dos acontecimentos a favor da Espanha: Vila Franca do Campo (25 de julho de 1582) e Baía das Mós (26/27 de julho de 1583). A primeira foi travada nas águas da ilha de São Miguel e opôs dois colossos navais: a frota francesa de Filipe de Strozzi e a espanhola do marquês de Santa Cruz. A esquadra francesa foi destroçada, Strozzi e 1200 marinheiros franceses morreram e D. António foi obrigado a recolher-se à ilha Terceira. Aqui ocorreu no ano seguinte o desembarque do Porto das Mós, para onde confluiu a maior das mobilizações navais e de efectivos terrestres espanhóis desde as operações em Portugal, três anos antes. A armada do marquês de Santa Cruz obrigou os franceses à rendição e a campanha terrestre de Lope de Figueroa sujeitou os terceirenses a lutarem até ao último fôlego. Os residentes foram finalmente derrotados e mais de metade da população foi massacrada[7].
Sem desistir, D. António ainda desembarcou em Peniche, em 1589, a partir de Inglaterra. Foi a derradeira tentativa de tomada do poder. Morreu em Paris em 1595, como um verdadeiro patriota.
E assim, dois anos depois de se fazer aclamar em Tomar, Filipe II foi-o na ilha Terceira e nos Açores, facto registado em auto no Livro da Vereação de Angra. Aqui mandou construir, no monte Brasil, o Castelo de São Filipe (hoje de São João Batista). Seguiu-se a União Dinástica Filipina dos Habsburgos de Espanha. Seis decénios e três reis de diferenciada matriz governativa, que oscilou entre a esperança e a indiferença, a contusão e a resistência, terminando em Dezembro de 1640 com a rutura da ordem política pelos conjurados portugueses e a entronização do Duque de Bragança como rei D. João IV de Portugal.
Esta Edição N.º 7 da Revista Portuguesa de História Militar (RevPHM) é dedicada a «O Reinado de D. Sebastião, a “perda de independência" e o período filipino», um tempo marcante e fundamental da História de Portugal que a nossa Revista não poderia deixar de abordar.
O primeiro artigo, de um dos directores, analisa o movimento de recuperação de valores culturais portugueses, empreendido pelos literatos, de Diogo de Teive a Luís de Camões, que promoveram um quadro quase adulatório de D. Sebastião instando-o ao regresso às abandonadas virtudes militares e apelando ao combate pela fé cristã.
O Prof. Doutor Gonçalo Couceiro Feio analisa a figura e a vida do segundo conde de Vimioso remetendo-nos para uma reflexão sobre o quadro vivencial, de cultura e mentalidades comum entre os fidalgos na Renascença: uma vida dividida entre o serviço à Coroa e a acção militar.
Os dois artigos seguintes, do Coronel Pedro Esgalhado e da Drª. Gisela Ildefonso, embora em perspectivas diferentes, o primeiro tratando da questão da formação militar do rei, o segundo levantando hipóteses de investigação sobre os interesses políticos conducentes à derrota de Alcácer-Quibir, oferecem-nos razões documentais que podem condenar a tese da morte do soberano naquela batalha, defendendo que o mesmo tenha sobrevivido à mesma.
Ainda sobre aquela batalha o Doutor Luís Costa e Sousa, a propósito do projecto “Moving City", oferece-nos as mais recentes investigações sobre a componente humana do exército do rei D. Sebastião, permitindo uma inovadora revisitação a um dos maiores desastres militares da história portuguesa.
Abandonando o reinado de D. Sebastião, o Coronel Manuel Casas Santero, relata a vida de Sancho Dávila, o famoso Mestre de Campo General do exército do Duque de Alba, particularmente o seu determinante papel vitoriosa na Campanha de Portugal, em 1580. Deste mesmo período o Coronel José Paulo Berger, descreve circunstanciadamente as características da inexpugnável defesa do porto de Lisboa, que quase tornavam impossível a sua penetração, levando à audaciosa manobra hispânica de desembarque a oeste de Cascais, que obrigou as forças do duque de Alba a tomar, por terra, todas as fortificações até Belém, deixando o caminho livre para a vitória final em Alcântara.
É justamente sobre esta batalha, travada em 25 de Agosto de 1580, que o artigo do Prof. Doutor José Manuel Garcia, através de uma descrição e contextualização da batalha, mostra a importância deste combate que foi decisivo para pôr fim à dinastia de Avis e iniciar a chamada União Ibérica.
O texto do Tenente-Coronel Luís Silveira, correleciona dois conflitos armados que tiveram lugar na ilha Terceira no início da União Dual, que ficaram conhecidos por “Batalha da Salga", em 25 de Julho de 1581, e por “Batalha das Mós", em 26 e 27 de Julho de 1583.
Da pena do outro director, uma completa resenha sobre a política desenvolvida pelos Filipes durante os sessenta anos da União Dinástica e, sobretudo, como a reacção interna que a sua governação produziu acabaram por despoletar a conspiração conducente ao golpe palaciano de 1.º de Dezembro de 1640.
O Capitão de Mar-e-Guerra Augusto Alves Salgado oferece-nos no seu artigo, um panorama dos conflitos bélicos que, após a conquista de Lisboa, se vão travar principalmente no Atlântico, com o apoio dos reinos protestantes do Norte da Europa que apoiaram D. António na sua causa.
O Doutor Fernando Pessanha notabiliza a figura de Jorge de Mendonça Pessanha, célebre adail de Tânger e capitão de Ceuta, que se elevou ao estatuto de um dos mais insignes combatentes da Expansão Portuguesa no norte de Marrocos, no período da União Ibérica. Embora a sua memória tenha ficado eclipsada pela conjuntura adversa imposta pela Guerra da Restauração.
O contexto em que foi criado o Terço da Armada Real da Coroa de Portugal, a primeira unidade militar permanente criada em Portugal, surge-nos pelo texto do Dr. Fábio Laurentino que, num artigo que concluirá no próximo número da RevPHM, lembra as vicissitudes dos frequentes ataques às naus portuguesas e espanholas vindas do Brasil, da Índia e do Mediterrâneo, que determinaram, para um serviço de escolta e proteção, o embarque de soldados de Infantaria.
O contributo do Prof. Doutor Mostafa Zekri apresenta-nos o “Tratado de Artilharia"; do mourisco Ibrahim Ibn Ahmad Ibn Ghanim Ibn Muhammad Ibn Zakariya' al-Andalusi al-Ra'is, um manuscrito de grande relevância, que descreve de forma detalhada as técnicas e os conhecimentos relativos à artilharia em uso no século XVII no campo muçulmano.
O presente volume encerra com um texto sobre uma peça particularmente relevante do Museu Militar de Lisboa. O Coronel Nuno Marcos Andrade e o Tenente Frederico Duque dos Santos, revisitam a propriedade de uma armadura de criança, atribuída a D. Sebastião, existente naquele Museu, oferecendo novos rumos de pesquisa para essa significativa peça do seu espólio.
O artigo de fecho, conforme norma da RevPHM, é feito por artigo extra-dossier. Paulo Morais-Alexandre, escreve-nos sobre a construção da Heráldica das tropas Paraquedistas enquanto força integrada na Força Aérea Portuguesa.
Ao encerrar este Editorial, cumpre aos directores da RevPHM agradecer penhoradamente a todos os autores que, com a sua dedicação e saber, contribuíram para o presente número, presenteando os leitores com textos de qualidade a bem do conhecimento histórico-militar de Portugal.
NOTAS
[1] J. M. Queiroz Veloso, “História Política" in História de Portugal, Direcção de Damião Peres, vol. V, Barcelos, Edição Monumental da Portucalense Editora, 1933.
[2] Humberto Nuno de Oliveira e Sérgio Vieira da Silva, “Elementos para o Estudo da História Militar do Reinado de D. Sebastião", in Boletim do Arquivo Histórico-Militar, 67.º vol., Lisboa, 1997.
[3] Carlos Selvagem, Portugal Militar, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1991.
[4] Jorge Borges de Macedo, História Diplomática Portuguesa, Constantes e Linhas de Força, Lisboa, Instituto de Defesa Nacional, 1987.
[5] Alcide de Oliveira, Alcácer-Quibir, a Vertente Táctica, Lisboa, Direcção de Documentação de História Militar, 1988.
[6] Abílio Pires Lousada, Glórias e Desaires da História Militar de Portugal, Lisboa, Manuscrito/Editorial Presença, 2018.
[7] João Pedro Vaz, Campanhas do Prior do Crato. 1580-1589, Lisboa, Tribuna da História, 2005.
ABÍLIO PIRES LOUSADA
Militar Historiador e Mestre em Estratégia, co-Director da Revista Portuguesa de História Militar. Membro do Conselho Científico da Comissão Portuguesa de História Militar e membro fundador da Associação Ibérica de História Militar. Autor/co-autor de 18 livros e de mais de 70 artigos sobre História Militar e Estratégia. Prémio Defesa Nacional e Jornal do Exército
HUMBERTO NUNO DE OLIVEIRA
Historiador (doutor em História), co-Director da Revista Portuguesa de História Militar. Membro do Conselho Científico da Comissão Portuguesa de História Militar e da Direcção de História e Cultura Militar. Presidente da Academia Falerística de Portugal. Professor da Faculdade de História da Universidade Estatal Ucraniana - Dragomanov (Quieve). Cumpriu, como Miliciano, o Serviço Militar Obrigatório no Exército Português
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Como citar este texto:
LOUSADA, Abílio Pires & OLIVEIRA, Humberto Nuno de – Editorial. Revista Portuguesa de História Militar - Dossier: O reinado de D. Sebastião, a “perda de independência” e o período Filipino. [Em linha] Ano IV, nº 7 (2024); https://doi.org/10.56092/PLVU5803 [Consultado em ...].