ASPECTOS ÉTICO-MILITARES DA BATALHA DE ALCÁCER-QUIBIR. DERROTA ENSAIADA PARA FINS POLÍTICOS?

Gisela Ildefonso

Armas do reino, por D. Sebastião (1572). Cruz Templária com inscrição “Com este sinal vencerás". Escudo e coroa rodeada das setas de São Sebastião. Livro das Sagradas Escrituras, Torre do Tombo
Resumo
No livro recém-publicado D. Sebastião – O Regresso do Enigma, é revelada a diplomacia inédita trocada entre os monarcas de Portugal, Castela e Marrocos desde Alcácer-Quibir em 1578, até à perda da independência em 1580. O tema é antigo. Os documentos inéditos, reabrem o maior enigma da História de Portugal. Persistente o fio condutor: a velha ideia do Iberismo planeada por Carlos V, executado por Filipe em 1580, e retomado por Franco ao planear a invasão de Lisboa em 1940.
Entre variadíssimos documentos, encontramos as cartas trocadas entre Filipe e o duque de Medina Sidónia, sobre o cativeiro de D. Sebastião. É o próprio duque que prende o mensageiro mouro à chegada a Cádiz, a fim de evitar a disseminação da notícia, despachando depois um correio rápido para Madrid, a informar Filipe. O pagamento deste serviço ainda se encontra entre os documentos do Arquivo de Medina Sidónia. Até aqui nada de novo. O conteúdo destas cartas já havia sido referido brevemente em 1992. A duquesa de Medina Sidónia descende de D. Luísa de Gusmão (neta do 7º duque de Medina Sidónia e quem incitou D. João IV a restaurar a Independência). Restaurar a monarquia é outro assunto.
Palavras-chave: Alcácer-Quibir; Lei Militar; Diplomacia Secreta; Revisão da História; Política, Filipe II.
Abstract
In the recently published book D. Sebastião - The Return of the Enigma, the unpublished diplomacy exchanged between the monarchs of Portugal, Castile and Morocco from Alcácer-Quibir in 1578 to the loss of independence in 1580 is revealed. The subject is old - the documents are new. They reopen the greatest enigma in Portuguese History. The common thread persists: the old idea of Iberism planned by Charles V, executed by Philip in 1580, and taken up again by Franco when he planned the invasion of Lisbon in 1940.
Among the many documents, we find the letters exchanged between Philip and the Duke of Medina Sidonia, about the captivity of King Sebastian. It was the duke himself who arrested the Moorish messenger on his arrival in Cádiz in order to prevent the news from spreading, then dispatched a courier to Madrid to inform Philip. The payment for this service is still among the documents in the archive of Medina Sidonia. So far, nothing new. The content of these letters had already been briefly mentioned in 1992. The Duchess of Medina Sidonia is descends from Luísa de Gusmão (granddaughter of the 7th Duke of Medina Sidonia, who urged João IV to restore independence). Restoring the monarchy is another matter.
Keywords: Alcácer-Quibir; Military Law; Secret Diplomacy, History Review; Politics; Philip II.
A investigação iniciou-se como tese de doutoramento, mas o emergir de documentação inédita rapidamente desafiou as normas académicas, fomentando um pensamento crítico e imparcial. Rompendo com a obrigatoriedade do oficialmente correcto, a opção, sobretudo pelo interesse nacional, foi substituir a tese por livro. A História mandada escrever por Espanha nunca convenceu, ou não teria nascido o mito do sebastianismo - convicção de que D. Sebastião não morrera na batalha. Sucede que deparamos agora com provas. E quem conhece a letra de Filipe, sabe o que isto significa. Temos o direito, e dever, de questionar toda a narrativa da batalha, desde as decisões militares, até ao desfecho.
Numa primeira fase da investigação, o objectivo foi a exploração das motivações que levaram ao atraso da transladação do corpo de Ceuta para o Mosteiro dos Jerónimos (cinco anos, de 1578 a 1582). Esperar-se-ia a decomposição do cadáver para o tornar irreconhecível? Que outras hipóteses haveria que justificassem a demora? Após a leitura de dezenas de crónicas que mencionam “duas batalhas" emerge um segundo objectivo: possíveis razões subjacentes à versão da “derrota" portuguesa. À luz das intenções subsequentes de reivindicar o trono de Portugal, esta derrota propagada por Marrocos era, no mínimo, suspeita. Subsequentemente, a investigação acabou por questionar não só a morte do rei em batalha, como a própria derrota, e os relatos confusos das “duas batalhas". Que significavam exactamente? Estes documentos colidem com a versão oficial da História de que “no dia 5 de Agosto de 1578, um pajem cativo tinha identificado o corpo de D. Sebastião entre os mortos. No dia seguinte transportara o corpo num jumento até ao sultão, a troco de liberdade". No contexto político, Marrocos precisava de garantias de defesa costeira contra os turcos, a quem prometera entregar o porto de Larache em troca de apoio militar turco para Mulei Mohammed recuperar o trono, sem intenção de cumprir a promessa. Por seu turno, Filipe necessitava de legitimar a pretensão ao trono português, que desde D. Manuel I trazia a monarquia de Habsburgo de arma apontada. E com razão. Subtil, mas eficaz, a sucessão de D. Manuel não foi delineada por linhas direitas.
As negociações do corpo duram cinco anos, marcadas pela morte do cardeal, relatada desde Almeirim[1] por carta do espião de Filipe, Andrea Corzo: “O cardeal está por horas". Analisada a carta preservada na Biblioteca da Ajuda e concluindo-se ser tão autêntica quanto os documentos de Medina Sidónia, começa a desenhar-se a complexidade de um cenário político que não se resolvia com soluções simplistas como um cadáver trazido por um jumento. Que nunca por tolos nos conheçam. Incidentalmente é este mesmo Andrea quem negocia o corpo de D. Sebastião entre Filipe e Marrocos, significando que há mais para investigar. Em lugar das crónicas escritas pelo inimigo, o livro aplica a metodologia policial à História, a chamada “Hora de Ouro" das investigações criminais, quando todas as provas ainda estão frescas e sem contaminação. E foi assim que se partiu dos primeiros dias a seguir à batalha, até à negociação seis meses mais tarde, com o corpo a ser transportado de Alcácer-Quibir para Ceuta, até à assinatura da entrega. Enganou-se quem mandou juntar outros ossos ao corpo de “D. Sebastião" aquando da passagem do cortejo fúnebre pelo cemitério do Espinheiro em Évora, vindo de Ceuta. Uma análise de ADN facilmente separa a verdade do mito. A ciência avança e o mundo também. Tudo o que quisermos saber, acabaremos por descobrir.
Narrativa e poder. Chegar à guerra é, só por si, a maior das derrotas
Importa não esquecer o enquadramento das tréguas secretas negociadas por Castela, com o adversário marroquino em 1577, depois de se ter comprometido a assistir Portugal. Do ponto de vista ético, poderá a natureza destas tréguas ser interpretada como traição de guerra, considerando que ocorreram num momento crítico e em detrimento dos interesses portugueses?
Seguem-se outros aspectos éticos: D. Sebastião poderia ou deveria ter abandonado a batalha ao circular a informação de que as nossas tropas eram em menor número que o contingente adversário? A auto-proclamada vitória marroquina reflecte o que se passou de facto no campo de batalha, ou tratou-se de uma construção política e falsa propaganda? E os cativos, se eram em número de dez mil, quantos eram os mortos e feridos? Como se certificaram dos seus nomes num campo de batalha cheio de cadáveres, para elaborar a lista de falecidos? Por quem foram reconhecidos desfigurados pelas feridas e altas temperaturas, sem familiares? Porque não foi o corpo do rei reconhecido pelos fidalgos seus amigos que o viram trocar de cavalo várias vezes? E os milhares de combatentes da batalha que até hoje não se pronunciaram sobre a morte? Quem calou esses testemunhos? Poderá ser um desafio considerável a tarefa de encontrar testemunhos para um evento que não ocorreu.
O que Carlos V e Filipe pretendiam com a anexação de Portugal a Espanha não era unir os Habsburgos a Lisboa, Porto ou Aveiro, mas sim absorver o colossal Império Português. Brasil, África, Ásia, o primeiro império global da História, espalhado por vários continentes e com vantagens para Portugal, perdidas por Castela depois das duas potências dividirem o mundo em Tordesilhas. Nunca recuperaram do engano a que foram sujeitos, tentando conquistar território perdido. De Lisboa ao Japão, de Ceuta ao Brasil, da Guiné à Índia, as riquezas tinham um fim em vista: pagar a dívida dos Habsburgos aos maiores banqueiros que até hoje existiram, os Fugger, fiadores de Carlos V para o pagamento da sua eleição como imperador romano-germânico (quase um milhão de florins). Sem contar com os gastos em defesa contra a pirataria do Mediterrâneo, a batalha de Lepanto, e tomada de Túnis e Argel, as guerras religiosas na Flandres fechavam o segundo ciclo de bancas rotas em 1575, com a monarquia Habsburgo em sérias dificuldades. A morte política de D. Sebastião abriu caminho a transformações que moldaram o curso da História. O Império Austro-Húngaro, etapa posterior na história da Casa de Habsburgo originaria um fenómeno chamado Hitler, nascido naquele território[2]. As suas acções foram instrumentalizadas pelos ingleses, permitindo a entrega da Palestina aos sionistas e estabelecimento do Estado de Israel. Simultaneamente, Filipe foi forçado a retirar-se da Flandres para se concentrar em Portugal, abrindo espaço aos ingleses para a consolidação do protestantismo. A terceira e mais importante consequência para a Europa, e grande objectivo de D. Sebastião, foi a desistência dos turcos de avançar sobre Marrocos com o fim de repetir as invasões muçulmanas, mantendo o islão afastado de uma Europa já envolta em escaramuças religiosas desde a Contra-Reforma. Objectivo cumprido, a conjuntura que se seguiu selou o destino das três maiores religiões no Ocidente e redefiniu o (des)equilíbrio de poderes que hoje conhecemos. Uma morte política que mudou o mundo.
Na sua essência, o livro centra-se em responder à pergunta fundamental: Quem negociou o corpo de D. Sebastião, sabendo que estava vivo? A quem serviu? Fomos realmente derrotados, ou a versão foi criada pelo adversário, para nos desmantelar moralmente? O processo de como se chegou à perda da independência em 1580 é detalhado minuciosamente, com a narrativa a avançar dia após dia nos bastidores das cortes portuguesa, castelhana e marroquina, contrastando com a versão que até hoje conhecemos de crónicas ao serviço político. Herdeiro de um império além-mar vastíssimo, pairou sobre este jovem, a responsabilidade dramática de guardião da nação, com a função de reavivar o projecto dos Descobrimentos. Assumiu o trono num momento crítico marcado por estas mudanças geopolíticas, crescentes pressões sobre o já debilitado império português. Não restam dúvidas de que Alcácer-Quibir foi o confronto mais significativo no Mediterrâneo do século XVI, contrariamente ao que argumentou o historiador Braudel, que define a batalha de Lepanto (1571) como a mais marcante. A importância da nossa batalha não se restringe à escala nacional, ou a questões fundamentais ainda não esclarecidas, mas sobretudo à dúvida que agora se levanta, de que haveria razões de sobra para perpetuar a versão oficial da vitória como derrota. A narrativa é questionável, sobretudo pela coincidência de objectivos políticos. Como chegámos até aqui?
Um exército europeu
Na década de 1570, o perigo do retorno muçulmano era bem real para Portugal e Castela. O objectivo principal de Filipe era a conquista do porto marroquino de Larache na costa do Atlântico, ponto estratégico no combate à pirataria que prejudicava seriamente o comércio castelhano (e português). A costa espanhola era, face à proximidade com Marrocos, mais aberta à invasão. Os planos de estabelecer em Larache um centro de operações contra piratas e corsários eram, em princípios de 1570, um assunto importante. A partir de 1576, quando Malik recupera o trono de Marrocos com a assistência dos turcos, passa a um assunto inadiável. Toda a situação geopolítica muda de configuração. D. Sebastião embarca numa dupla missão: atacar Larache para evitar a ocupação pelos turcos com a cumplicidade de Marrocos e, salvar o comércio e riquezas provenientes do nosso império português além-mar, que equilibram a economia. A presença turca representava uma ameaça significativa às possessões portuguesas no Oriente. A apropriação de Larache por parte dos turcos implicaria sobretudo a perda do controle português sobre o Atlântico, que, em conjunto com a já comprometida situação no Índico, poderia resultar em consequências desastrosas. Além disto, acrescia aos dois reinos o mesmo objectivo: conter o Islão.
Já D. João III evidenciara esforços para o recrutamento e mobilização de um exército, mas foi D. Sebastião quem avançou significativamente neste processo. Regularizou as obrigações militares da população através da “Lei de Armas", de 9 de Dezembro de 1569, onde mandou que houvesse gente armada para a defesa e protecção das aldeias, vilas e cidades: todos os vassalos com idade entre 20 e 60 anos deveriam dispor de armas e cavalos[3]. Retirou assim a exclusividade de servir com armas à nobreza. Um ano mais tarde, publica o Regimento de 10 de Dezembro de 1570[4](que inclui o “Regimento dos Capitães-mores e mais capitães, e officiais das companhias de gente de cavallo e de pé"),conhecido como Regimento das Companhias de Ordenanças. Para garantir a segurança das rotas marítimas e a integridade das áreas costeiras, o Regimento compunha-se também das Vigias, Ordenanças especiais para protecção de portos e praias contra corsários e piratas.
Endurece as leis, que se alargam a muitas outras áreas no reino: contra “pessoas ociosas e vadias" (qualquer homem que não tenha amo nem senhor, nem ofício, nem outro trabalho em que ganhe a vida, nem negócio seu, passados vinte dias de chegar a qualquer cidade ou vila, que continue sem trabalho, ou que deixe o trabalho que tem, que seja preso e açoitado publicamente ou degredado por um ano para o além-mar). Define também os bairros de Lisboa onde deveriam viver as mulheres “solteiras": “qualquer das ditas mulheres solteiras que publicamente recolhem homens por dinheiro, devem sob pena de ser publicamente açoitadas e degredadas por um ano, viver nos ditos bairros na Rua dos Vinagreiros, Rua das Canastras, Travessa da Santa Marinha e Mancebia, quarteirão por detrás do Palácio dos Estaus" (Palácio dos Estaus, hoje Teatro Nacional D. Maria II). As leis continuavam em áreas tão diversas como juros sob empréstimos, sodomia, justiças eclesiásticas, etc. Nada foi deixado ao acaso. D. Sebastião, permaneceu igual a si próprio reflectindo o seu carácter nas decisões e leis que promulgou. O que a História mandou escrever foi outra coisa.
Em 1572, promove uma verdadeira revolução ao abolir privilégios sociais, até então intocáveis. Promulga a Reforma das Ordens Militares (Regimento e Estatuto sobre a Reformação das Três Ordens Militares). Autorizado por Pio V, introduz novas regras na atribuição de comendas: altera o sistema de recompensas e disciplina, pondo fim ao conforto daqueles que recebiam benefícios sem prestar serviço. Perturba os interesses estabelecidos, angariando a sua primeira hoste de adversários entre os nobres que até então usufruem de privilégios sem contrapartida.[5]
“Como governador e perpétuo administrador das três Ordens Militares de Cristo, Santiago e Avis, faço saber que estes estatutos e regimentos virem, que considerando eu como todas as ditas ordens que sucederam a dos templários, foram fundadas e instituídas pelos Pontífices, segundo consta das bulas de suas fundações para os cavaleiros delas pelejarem continuamente pela fé e defesa do reino contra mouros e infiéis que estavam senhores da maior parte de Espanha e do reino de Portugal. (…)
Até que lançados os mouros de Espanha com a longa paz e falta do exercício militar que dantes tinham, se foram desfazendo os conventos e ficaram neles somente os freires que se criaram para sacerdotes. Os cavaleiros pouco a pouco se foram havendo por livres e escusos de pelejar, como agora não pelejam. (..) As ordens segundo o estado em que estão, não cumprem em grande parte, porque nem os comendadores de Santiago nem os de Avis servem já na guerra para bem das suas comendas, de grande rendimento. E vendo eu a obrigação de como governador e administrador perpétuo das ditas ordens, tenho de as reformar e reduzir, e tirar os abusos que nelas pelo tempo se foram introduzindo.
E para se justificar tão larga concessão de rendas eclesiásticas, mas também para defesa e segurança destes reinos de Portugal, pela consideração dos hereges e pelo poder do xerife adversário, vizinho e fronteiro dos ditos lugares de África ser tão grande por mar e terra, ainda que as ditas ordens não foram instituídas como são para fazer guerra aos mouros, mas para defesa destes reinos (..), Sua Santidade passou sobre isto uma bula que revoga e extingue todos os privilégios e exempções, dispensações e indultos de todas as ditas três Ordens Militares e dos comendadores e cavaleiros delas e todos os costumes, estatutos, declarações e decretos. E daqui em diante se não lance o hábito regular a não ser aos que tiverem primeiro servido na guerra de África, ou três anos contínuos na Índia. E que não sejam admitidos ao serviço e merecimento do hábito os que forem de menos de dezoito anos cumpridos e tiverem disposição para servir na guerra, e que não tenham raça de mouro nem de judeu. Quem tem as qualidades acima ditas, será admitido ao hábito da Ordem e Milícia que escolher, e havido por idóneo para alcançar comenda".
Quem não combater em África perderá privilégios. A nobreza deve servir e não apenas herdar. Quatro anos depois, inicia a preparação de tropas para a campanha de África. E aqui se distingue como o único soberano que, até à data, concebe uma coligação de forças europeias, congregando tropas italianas, alemãs, espanholas, inglesas e portuguesas para combater o avanço do islão em terras estrangeiras. Um passo à frente das cruzadas, pelo enorme exército debaixo de um só rei. E aos comandos: Portugal. Uma coisa eram as cruzadas para resgatar a Terra Santa. Outra era arriscar a vida para defender a Pátria. Esta iniciativa constituiu na prática o equivalente a um exército europeu, permanecendo inigualável até hoje. No actual projecto da UE, a posição política é de que não existe ameaça externa suficientemente credível para conceber a edificação de um tal exército nos dias de hoje. Poderemos, no futuro, ser surpreendidos.
Tréguas ocultas -ética ou traição?
Enquanto D. Sebastião preparava tropas para a guerra, Filipe enviava embaixadas para negociar a paz. A monarquia espanhola encontrava-se em 1575 sem recursos suficientes para sustentar a guerra em várias frentes. Depois de se comprometer com D. Sebastião a enviar galés para assistir Portugal, (Reunião de Guadalupe em Dezembro de 1576), envia em 1577 uma embaixada a Constantinopla, a fim de assinar a paz com os turcos sem o conhecimento (oficial) de Portugal. Posteriormente, leva a cabo uma outra trégua secreta com o sultão de Marrocos, sem o conhecimento (oficial)dos turcos. Torna-se assim o primeiro monarca católico a assinar tréguas com duas facções muçulmanas, contra o próprio sangue e contra a sua religião.
A promessa de assistência a Portugal mais não foi que uma cilada. As galés nunca deixaram o estreito de Gibraltar, onde estavam estacionadas com a coordenação do Almirante Álvaro de Bazán, Marquês de Santa Cruz. Destinavam-se ao próprio ataque espanhol a Larache, num acto secretamente planeado por Filipe, apanhado de surpresa pela eficácia de D. Sebastião. Não antecipava que este reunisse milhares de tropas em Lisboa em tempo recorde, adiantando-se a Castela.
Decorria então o mês de Julho de 1578. Acreditando na palavra do tio, D. Sebastião aguarda durante 18 dias em Arzila na companhia das tropas. As tréguas bloqueiam qualquer apoio. A eficácia da espionagem turca[6] e marroquina estrategicamente posicionadas (Tânger e Veneza), significa que possuem informações diárias sobre todos os movimentos de Filipe. Por outro lado, os ventos de Levante que sopram fortes nesse mês de Agosto impedem o desembarque dos mantimentos desde as naus até ao acampamento de Arzila, deixando o exército em estado de fraqueza e vulnerabilidade. Este cenário é detalhado através do embaixador espanhol Juan da Silva, cujos relatos transmitem o desespero, ao pedir a Filipe que honrasse a promessa ao sobrinho.
Lei da cavalaria versus regulamento de disciplina militar.
Ao dar-se conta da situação e de que não receberiam ajuda por mar, D. Sebastião envia tropas de volta à praia de Arzila, mas é demasiado tarde. A armada portuguesa partira já rumo a Larache. Não restava alternativa a não ser marchar os 48 km a pé, de Arzila ao rio Lucus, e dali juntar-se à armada que chegaria a Larache por mar. O desenrolar dos eventos não correspondeu aos planos concebidos.
Na narrativa popular e corrente de sentimentos que rodeiam este episódio da nossa História, D. Sebastião é, até hoje, criticado por não ter recuado. Nesse contexto, surgem os dois principais argumentos contra o monarca, acusando-o de falta de discernimento ao envolver-se em combate e por tê-lo feito sob temperaturas elevadas após dias de marcha, em lugar de retroceder (leia-se, desertar). A retirada teria feito de Portugal uma nação de cobardes. Personalizar esta decisão foi apenas uma arma da História para denegrir D. Sebastião. Desonrado o compromisso que se fez para com Portugal, restou ao jovem rei a decisão final, depois de reunir o Conselho de Guerra. Contra aqueles que descrevem a decisão de avançar como imprudente, encontramos resposta na Lei da Cavalaria medieval do mestre Ramon Llull[7]: “Todo o cavaleiro deve preservar três coisas neste mundo: honra, bens e vida". D. Sebastião foi o último dos Templários - em todos os sentidos. O equivalente à Lei da Cavalaria medieval de então, é o actual Código de Justiça Militar (CJM)[8], com os seguintes argumentos a favor de D. Sebastião, em relação à decisão de dar batalha:
Artigo 58.º (Actos de cobardia):
1. O militar que, em tempo de guerra, na expectativa ou iminência de acção de combate ou durante a mesma, sem ordem ou causa legítima, para se eximir a combater:
a) Abandonar a área de operações com força do seu comando;
b) Abandonar força, instalação militar ou qualquer local de serviço;
c) Fugir ou incitar os outros à fuga;
É punido com pena de prisão de 12 a 20 anos, nos casos das alíneas a) a c).
O segundo argumento seria o Artigo 59.º (Abandono de comando):
O comandante de força ou instalação militares que, em qualquer circunstância de perigo, abandonar o comando é punido:
a). Com pena de prisão de 8 a 16 anos, em tempo de guerra e na área de operações;
O terceiro argumento seria o Artigo 60.º (Abstenção de combate):
Em tempo de guerra, o comandante de qualquer força militar que:
a). Sem causa justificada ou não cumprindo as determinações da respectiva ordem de operações, deixar de atacar o adversário ou socorrer força ou instalação militares, nacionais ou aliadas, atacadas pelo adversário ou empenhadas em combate;
b). Injustificadamente, deixar de perseguir força inimiga, naval, terrestre ou aérea, que procure fugir-lhe; é punido com pena de prisão de 5 a 12 anos.
O quarto argumento é o Artigo 66.º (Abandono de posto):
1. O militar que, em local de serviço, no exercício de funções de segurança ou necessárias à prontidão operacional de força ou instalação militares, sem motivo legítimo, abandonar, temporária ou definitivamente, o posto, local ou área determinados para o correcto e cabal exercício das suas funções é punido: (...)
O quinto argumento seria irónico: incitar à insubordinação, caso fosse o próprio monarca a encabeçar as tropas a desistir:
Artigo 90.º e 91.º: (Insubordinação colectiva):
Os militares que, em grupo de dois ou mais, armados, praticarem desmandos, tumultos ou violências, não obedecendo à intimação de um superior para entrar na ordem, serão punidos:
a). Em tempo de guerra e na área de operações, com pena de prisão de 8 a 16 anos os que actuarem como chefes ou instigadores de tais actos e com pena de prisão de 5 a 12 anos os demais participantes no crime;
Era impossível recuar, uma vez que a armada já havia partido por mar. Avançar para além do rio também era inviável, porque as forças marroquinas já se encontravam a postos. Diante deste cenário, a única opção era o combate. A deserção de que tanto se fala como alternativa por excelência, pouco honraria Portugal. Ou seria D. Sebastião e todos os seus capitães acusados de traição à Pátria. Que comandante o faria nos dias de hoje? Que nunca por cobardes nos conheçam.
Sob os regulamentos actuais, uma situação semelhante levaria Filipe a ser condenado como traidor, de acordo com o Artigo 11.º (Crimes contra a segurança e bens de país aliado). Isto porque não cumpriu a promessa de enviar galés e material de guerra conforme acordado, posicionando-se em lugar disso como aliado do adversário (Marrocos). Aacusação de imprudência por termos combatido em condições de temperaturas elevadas é ainda menos válida. Se considerarmos esse factor como impedimento, qualquer variação meteorológica inviabilizaria a ocorrência de guerras em climas quentes. O mundo seria outro. Nunca teria havido guerras coloniais, nem impérios.
O argumento da inferioridade de forças é igualmente frágil. O mérito de todas as batalhas reside na ausência de garantias prévias de vitória. Independentemente da disparidade numérica, a essência de qualquer batalha reside no desafio do enfrentamento. Não seria por ter informação que as tropas eram mais ou menos numerosas que as portuguesas, que desistiriam do combate. O que nos conduz ao próximo ponto.
Ética militar-vitória ou carnificina?
Eis então a questão fundamental: quem saiu vitorioso da batalha e o que se passou, tendo em conta a nova documentação? Como chegaram até nós as primeiras notícias? Porque se fala de duas batalhas?
No dia seguinte à batalha, a 5 de Agosto de 1578, a armada portuguesa ancorada em Larache espera D. Sebastião e as tropas. Em lugar disso, recebe alguns cavaleiros, partindo sem demora de regresso a Lisboa. Durante esse período, o paradeiro do rei permanece desconhecido, excepto a informação de que teria escapado ferido. Os escritos sebastianistas de D. João de Castro dizem que embarcou em Arzila e desembarcou ferido em Sagres. Também se fala sobre a descendência de D. Sebastião, propagando-se a partir daí o mito e um nunca acabar de fantasias, incluindo descendência de D. Sebastião, das Canárias ao Brasil. Não se conhece documentação nem num sentido nem no outro, que não seja suspeita de ter sido falsificada por jesuítas ou sebastianistas. Que se pronuncie quem tiver documentos genuínos.
No livro é publicada a primeira crónica proveniente da batalha, elaborada pelo espanhol Frei Luís Nieto. Proibida por Filipe, só disseminada 300 anos mais tarde! Frei Nieto descreve os marroquinos de tal modo impressionados que chamam a D. Sebastião "fogo vindo do céu". Talvez isso explique porque razão nas primeiras cartas a batalha é descrita como vitoriosa. E o medo era tal que nos armaram uma emboscada no dia anterior, que de pouco valeu. Contudo essa emboscada é confundida. A verdadeira batalha somente tem lugar no dia seguinte:
Cádiz, 9 de Agosto de 1578[9]
Tesoureiro Pedro Salinas ao Licenciado Tébar,
(…) Sua Alteza levava vinte e cinco mil de infantaria, seiscentos cavalos, e quarenta peças de artilharia. Marchando em boa ordem, chegou um espião ao rei e disse-lhe que numa ponte por onde havia de passar o rio que é fundo e com corrente, havia minas e barris de pólvora, e que se desviasse dali. Sua Alteza mandou dar-lhe duzentos ducados e desviando-se para a direita pelo vau do rio, saíram-lhe três exércitos formados que apanharam as tropas pelo meio e os capturaram, sem que escapassem mais de 14 a cavalo, feridos e maltratados.
Tudo começou e acabou em hora e meia. Alemães, castelhanos e portugueses ainda aguentaram algum tempo com esforço e muita ordem, mas perdendo-se os cavalos, abriram as fileiras e acabou-se tudo. Dizem que Sua Alteza pelejou corajosamente e que lhe mataram três cavalos e por último, viram-no a pé, de espada na mão e ferido num braço. Hoje disse-me António Manso, seu feitor, que o alcaide de Tetuão escreveu ao alcaide de Arzila a dizer que o rei está cativo.
À esquerda a cidade de Larache, com o rio Lucus a desaguar no Atlântico, onde a armada aguardava as tropas vindas por terra. Depois da marcha de 48 km desde Arzila, o exército atravessa junto à parte mais baixa, o vaudo afluente Magazen, onde são vítimas da emboscada. O local da batalha mantém-se igual até hoje, distando 17 km de Alcácer-Quibir. Fotografia da autora.
Canhão mandado fundir por D. Sebastião em Lisboa em 1578, para combater em Alcácer-Quibir. Media 1,77 m de comprimento, pesando mais de uma tonelada. Arrojava balas de 12,5 kg de pedra, a curta distância. Na bolada tem gravadas as armas nacionais e esfera armilar, e ao lado da Cruz de Cristo, a inscrição: "Com esta peça o Rei espalhará por sua ordem balas contra a gente infiel. Ferirá sob o Teu comando, os mouros.

Junto ao nome "Sebastianus LV RX (Lusitania Rex)", apresenta uma inscrição em latim, com moldura atravessada pela seta de São Sebastião. Sob o signo da cruz: "Esta cruz é sempre levada por ti ao peito contra os teus inimigos, grande Sebastião. Com esta como vencedora, Constantino domou os tiranos. Com os auspícios desta, os Selíbios dar-te-ão os castelos." Possivelmente relacionado com a mensagem enviada a D. Sebastião pelo Papa, junto com a relíquia concedida para a batalha (seta de São Sebastião).
Segundo a ficha técnica do museu, o canhão foi preservado, sem ter embarcado. Contudo, devido às argolas concebidas para fixação a bordo das naus e inscrições que indicam o seu propósito específico para a batalha (além da retenção da armada em Lisboa por mais de 10 dias em Junho, devido ao mau tempo), salvo a existência de uma razão significativa que tenha impedido o embarque, considera-se a possibilidade de investigação se teria de facto integrado a armada que seguiu para Larache após o desembarque em Arzila, regressando a Lisboa sem uso.
Museu Militar de Lisboa, Caves Manuelinas. Fotos Ricardo Lopes (Sargento-Ajudante).
Os primeiros cavaleiros chegados por terra a Espanha trazem notícias da vitória portuguesa. Para a posteridade ficou o contrário. As crónicas descrevem a vitória marroquina, e foi essa narrativa que prevaleceu até os dias de hoje na História de Portugal e por todo o mundo. Como explicar que nada se soubesse sobre a morte de D. Sebastião, tanto por aqueles que embarcaram na armada no dia 5 de Agosto depois de combater a seu lado, como pelos demais cavaleiros chegados a Cádiz? Seria possível que a morte de um rei passasse assim despercebida a tantas centenas de cavaleiros? Resta a probabilidade da narrativa ter sido adulterada para outra versão na manhã seguinte: a tal “identificação do corpo" pelo pajem, ao lembrar-se que na noite anterior tinha visto, entre os mortos, o cadáver do rei. Assaz conveniente.
Desta trama surgiu a oficialização da morte, ensinada por todo o mundo. O caso deu-se como encerrado, até 1956, data que D. Isabel de Alvarez Toledo, duquesa de Medina Sidónia, herda o espólio de família, aquando do falecimento do duque, seu pai. Guardados num armazém em Madrid junto com os móveis e herança, milhares de documentos contêm a chave da História de Portugal. Publicado um breve resumo num livro em 1992, estas cartas pessoais do duque permanecem à guarda do arquivo da Casa de Medina Sidónia. E as respostas dadas por Filipe permanecem religiosamente guardadas pela coroa espanhola no Arquivo Geral de Simancas. Quem conhece a letra de Filipe, sabe que os documentos não mentem.
Madrid, 19 de Agosto de 1578[10]
Filipe a seu irmão Juan de Áustria,
A jornada do rei de Portugal a África foi malsucedida. Parece que (o sultão) Maluco conseguiu reunir tanta gente que, por serem muitos, destruíram todo o exército, com grande perda do povo e nobreza. Da pessoa do rei de Portugal tem-se aviso que está vivo e ferido, mas até agora não se sabem mais detalhes.
Por mão do secretário António Pérez,
Eis então algo extraordinário que confirma a volatilidade da teoria corrente de que o exército foi derrotado em batalha: nas horas e dias que se seguiram à batalha, e já depois dos primeiros cavaleiros portugueses chegarem a Cádiz com notícias da vitória portuguesa, as crónicas espanholas relatam unanimemente que, enfurecido pela derrota, "após o término da batalha, o exército marroquino avançou sobre as desprevenidas tropas portuguesas e civis, destruindo todo o exército". Como explicar o avanço sobre tropas que já estavam dizimadas? Como matar quem já estava morto? A única conclusão possível é que essas tropas estavam, de facto, vivas e tinham saído vitoriosas, encontrando-se ainda perto do campo de batalha - cavaleiros e civis, desprevenidos a descansar à sombra das carroças e carros de bois. Na crónica de Frei Neto proibida por Filipe, é descrito como os civis são atacados e se refugiam debaixo das carroças, enquanto o exército é chacinado (as crónicas empregam a expressão “desbaratado"), remetendo-nos para a seguinte analogia, na actual Lei Militar:
Artigo 42.º (Crimes de guerra por utilização de métodos de guerra proibidos)
a) Quem atacar a população civil em geral ou civis que não participem directamente nas hostilidades;
b) Atacar bens civis, ou seja, bens que não sejam objectivos militares;
c) Lançar um ataque indiscriminado, que atinja a população civil ou bens de carácter civil, sabendo que esse ataque causará perdas de vidas humanas, ferimentos em pessoas civis ou danos em bens de carácter civil que sejam excessivos;
h) Matar ou ferir à traição combatentes inimigos;
É punido com pena de prisão de 10 a 25 anos.
Por outro lado, a confirmação dos milhares de mortos também é incerta e parece exagerada, considerando o grande número de cativos. A somar a isto, uma lista infindável de falecidos no campo de batalha circulou nos dias seguintes. Seria interessante investigar como foram identificados os milhares de mortos. Teriam bilhete de identidade no bolso da armadura? A quem interessaria colocar em circulação esses mortos como cativos, para obter avultados resgates? E a quem interessaria oferecer-se para pagar tais resgates e cair nas boas graças da nobreza do reino?
Segundo o embaixador espanhol em Lisboa “todos os dias chegavam vivos que há muito se tinham como mortos", significando que a “lista" de falecidos de Alcácer-Quibir tão pouco é credível.
Quanto à versão posta a circular por Marrocos e Filipe de constituir de facto uma vitória militar, será este o caso? Uma vitória militar é alcançada através de um conflito directo entre as forças combatentes no campo de batalha. Matar soldados e civis fora desse contexto levanta sérias questões éticas, principalmente em termos de regras de combate. Poderá tal ser reconhecido como uma 'vitória' militar? Que se pronunciem os peritos.
Morte política e pós- batalha
Desconhecendo-se o paradeiro de D. Sebastião nos dias seguintes, Filipe é vítima da sua própria armadilha: as galés estacionadas em Gibraltar prontas a atacar Larache, de nada servem. Com D. Sebastião prisioneiro, o ataque avizinha-se impossível.
Filipe pondera utilizar a frota para atacar Portugal, mas é demasiado cedo. Os pretendentes ao trono (D. António Prior do Crato e o Duque de Barcelos), levados astutamente por D. Sebastião para Marrocos a fim de evitar surpresas, também se encontram cativos, criando um problema acrescido.
O xadrez político que emerge é complexo: Se Filipe atacar Larache, o sultão liberta o duque de Barcelos e os Bragança avançam como candidatos ao trono (até aí representado por D. Catarina). Filipe tem tudo a perder. Por outro lado, encontra-se ao corrente da sobrevivência de D. Sebastião, e por isso impedido de aceitar a oferta do “corpo encontrado na batalha". Terá de esperar ou arriscar.
Não foi até hoje localizado nenhum documento oficial que comprove a morte de D. Sebastião. Apenas temos crónicas redigidas pelo inimigo. O auto da entrega do corpo a 10 de Dezembro de 1578 tão pouco é compreensível. Se na batalha não quiseram identificar o corpo que lhes poderia ter conferido a liberdade, porque razão o fariam 6 meses mais tarde já a caminho de Portugal? E qual o significado do que escreve Andrea Corzo, o negociador? Justifica que primeiro era para levar o corpo para Castela mas depois é instruído para o corpo seja levado para Lisboa, acabando por disputar a transladação com Frei Roque enviado pelo cardeal. Por outro lado, temos a emergência de salvo-conduto no arquivo de Simancas. É enviado pelo cardeal a Filipe e dali para o sultão, o que poderá demonstrar que o cardeal recebeu de facto o pedido de ajuda de D. Sebastião enviado por Filipe. Compreende-se que tenha tentado fazer sair D. Sebastião clandestinamente, pois seria impossível passar um salvo-conduto a um “morto". No documento Filipe autoriza que saiam de Alcácer-Quibir para qualquer porto por mar em Itália, num prazo de 6 meses.
Restam várias hipóteses, todas de momento em estudo.
1. Teria D. Sebastião falecido dos ferimentos no braço pouco depois, e sido enterrado em parte desconhecida, ou lançado ao mar por Marrocos?
2. Teria sobrevivido e o seu resgate sido pago? Esta hipótese é pouco viável dado que o pedido de resgate foi mantido secreto por Filipe. Como poderia o cardeal pagar, sem ter conhecimento do mesmo? Resta investigar o salvo-conduto.
Em Março de 1579 os emissários do alcaide de Tetuão visitam Lisboa. Pretendem, decerto, obter do cardeal o dinheiro do resgate, decerto ignorando que o pedido nunca alcançou Lisboa. E isto justificaria o porquê do cardeal nunca ter nomeado herdeiro, aguardando por D. Sebastião até ao fim dos seus dias. Para onde embarcou então El Rey, por quem foi protegido e sustentado, e terá de facto vivido em Itália como sempre se escreveu? A investigação prossegue de forma ininterrupta.
Já como Filipe II, o monarca castelhano falhou repetidamente nas negociações de resgate do pequeno duque de Barcelos, e do “corpo" de D. Sebastião, resultando no adiamento constante da trasladação para o Mosteiro dos Jerónimos. Quando finalmente esta se deu em 1582, era demasiado tarde-a crença na sobrevivência tornara-se irrevogável. Com demasiadas pessoas já ao corrente do cativeiro, o sebastianismo emerge como poderosa oposição a Castela, que o perpetua como mito. Porque o mito carregava consigo a aceitação tácita de que D. Sebastião jamais regressaria, deixando o caminho livre ao invasor. Filipe falhou também todas as tentativas de se fazer aclamar como herdeiro legítimo do trono português, vendo-se obrigado a invadir Lisboa. Esta correspondência sobre o cativeiro de D. Sebastião, coloca a ferida sob a forma como se processou a perda dessa independência, em cima de outra: desde Alcácer-Quibir, nunca mais fomos nação, apenas um reino.
Após a invasão de Portugal por Espanha a 25 de Agosto de 1580, os capitães de Ordenanças foram “dispensados". As Ordenanças que defendiam as nossas fronteiras, foram “desmanteladas". As naus que regressaram de Alcácer-Quibir foram “incorporadas" na armada espanhola, acabando destruídas pela Inglaterra na derrota da Invencível Armada, em 1588. As liturgias e símbolos do Reino de Portugal criados por D. Sebastião foram “eliminados". Os testemunhos portugueses de Alcácer-Quibir foram silenciados. Chamou-se a isto União Ibérica. Falamos de intervenção militar, sem nos determos à roupagem posteriormente atribuída a esse acontecimento, de “União das Coroas" ou “Monarquia Dualista". São conceitos que pertencem a áreas diferentes, militar e politicamente, e não se sobrepõem. Enquanto uma invasão militar envolve o uso da força para conquistar território, uma monarquia dualista envolve negociação, por meio de acordos, num arranjo integralista de um governo compartilhado entre dois monarcas. Quem era o duo? Não vamos confundir a História.
Na verdade, o eixo Filipe-Franco manteve-se até há poucas décadas. Quem achar que o Iberismo "não é bem isso" pode sempre reler os detalhes dos planos de Franco para invadir Lisboa em 1940, com o objectivo de evitar o ataque britânico através de Portugal, assim que a Espanha tomasse Gibraltar (sob controle britânico). A invasão seria levada a cabo por Lisboa, de modo a dividir o país em 3 partes. Com a aviação espanhola a disponibilizar para esta missão uns meros “cinco grupos de bombardeiros, dois grupos de caças, duas esquadrilhas de reconhecimento, quatro esquadrilhas de caças Fiat CR-32 e dois grupos de assalto", tornou-se necessário pedir ajuda (a História repete-se)... à Alemanha, no que seria uma estimativa de 250.000 homens. Valeu-nos Hitler e Mussolini, que torceram o nariz. Resta o comentário do ministro de Interior de Franco, Serrano Suñer[11]: “Ninguém pode deixar de ter em conta ao olhar para o mapa da Europa que, geograficamente falando, Portugal não tem o direito de existir".
A História não deve ser julgada em retrospectiva. Os povos não são os seus governantes. As armas agora são outras. Contudo e para terminar, a armadura cerimonial de D. Sebastião datada de 1567 ainda descansa na Armeria Real de Madrid. Não longe, encontra-se Olivença por restituir. E pelo meio, Alcácer-Quibir por contar.
Que nunca por vencidos nos conheçam. E não menos por armas, que por factos. Alcácer-Quibir ainda não terminou.
NOTAS
[1] Gisela Ildefonso – D. Sebastião. O Regresso do Enigma, 2024, p. 233.
[2] Braunau am Inn, actualmente parte da Áustria.
[3] Lei das Armas, que cada huma pessoa he obrigada ter em todos os Reinos, e senhorios de Portugal. Leys e Provisões, Que El-Rei Dom Sebastião Nosso Senhor fez depois que começou a governar. Impressas em Lisboa per Francisco Correa em 1570, Coimbra, na Real Imprensa da Universidade, 1816, pp. 14-25.
[4] Regimento dos Capitães-mores e mais capitães, e officiais das companhias de gente de cavallo e de pé: e da ordem que terao em se exercitarem, 10 de Dezembro de 1570. Leys e provisões que elrei Dom Sebastião, nosso senhor, fez depois que começou a governar, impressas em Lisboa per Francisco Correa em 1570. Coimbra na Real Imprensa da Universidade 1816. pp. 150-151.
[5] PORTUGAL. Leis, decretos, etc. [Regimento & statutos sobre a reformação das três orde[n]s militares]. - [S.l. : per João de Barreyra, 1572]
[6] Emrah Safa Gürkan, “Espionage in the 16th century Mediterranean: Secret Diplomacy, Mediterranean go-betweens and the Ottoman-Habsburg Rivalry" (Ph.D. Diss., Georgetown University, 2012).
Juan R. Goberna Falque, Inteligencia, Espionaje y Servicios Secretos en España. Madrid: Ministerio de Defensa, 2007.
[7]Ramon Llull – O Livro da Ordem de Cavalaria (1279-1283). São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio/Editora Giordano, 2000.
[8] Diário da República n.º 265/2003, Série I-A de 2003-11-15. Lei n.º 100/2003. Livro I > Título II > Capítulo III. https://diariodarepublica.pt/dr/legislacao-consolidada/lei/1900-34499475-46261175
[9] Gisela Ildefonso – D. Sebastião. O Regresso do Enigma, 2024, p. 153.
[10] Gisela Ildefonso – D. Sebastião. O Regresso do Enigma, 2024, p. 166.
[11] Suñer foi ministro espanhol do Interior, Governação e Assuntos Exteriores de Franco, entre 1938-1942. Ver livro de Agudo, Ros Manuel. A Grande Tentação Os planos de Franco para invadir Portugal e dominar o mundo. Casa das Letras, 2009, pp 224-234.
GISELA ILDEFONSO
Analista de Due Diligence na área de prevenção de branqueamento de capitais. Licenciada em História pela Universidade Autónoma de Lisboa e Pós-graduada em Relações Internacionais pela Universidade Hebraica de Jerusalém (Arab-Israeli Relations, Soviet and Post-Soviet Policies in the Middle East, Iranian Fundamentalism in Islam) com a Dissertação: Russia and the CIS Muslims Republics – The Dispute Around Pipeline Routes for Caspian Oil. Ocupou funções de Inteligência Operacional na Polícia Metropolitana de Londres entre 2008-2017. Autora do livro D. Sebastião – O Regresso do Enigma. Amazon, Dezembro 2023.
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Como citar este texto:
ILDEFONSO, Gisela – Aspectos ético-militares da batalha de Alcácer-Quibir. Derrota ensaiada para fins políticos? Revista Portuguesa de História Militar – Dossier: O reinado de D. Sebastião, a “perda de independência" e o período Filipino. [Em linha] Ano IV, nº 7 (2024); https://doi.org/10.56092/SXRG3017 [Consultado em ...].