HOMENS DE GUERRA NA RENASCENÇA: D. AFONSO DE PORTUGAL, 2.º CONDE DE VIMIOSO – CONSIDERAÇÕES SOBRE GUERRA E MENTALIDADES

Gonçalo Couceiro Feio
Resumo
A figura e a vida do segundo conde de Vimioso remete-nos para uma reflexão sobre o quadro vivencial, de cultura e mentalidades comum entre os fidalgos na Renascença: uma vida dividida entre o serviço à Coroa e a acção militar – também como serviço. A Guerra surge como obrigação de um fidalgo mas também como um direito que lhe assiste por nascimento.
Palavras-chave:Cultura e mentalidades; guerra; posição social.
ABSTRACT
The life of Afonso de Portugal, second count of Vimioso, offers a solid referral of a noble's obligation to serve the Crown both in war and peace. During the Renaissance war is not only a noble's obligation: it is also his right.
Keywords: Culture and demeanour; war; social standing.
De Vimiozo a Casa esclarecida
celebra, conta a estirpe derivada
dos Heroes, que à Patria derão vida,
a memoria feliz, fatal a espada(…)[1]
Dado à estampa em Lisboa 1735, a Vida do Infante D. Luiz constituiu, à época, a mais completa biografia do Infante de Portugal e Duque de Beja. O seu autor, José Miguel João de Portugal, 9.º conde do Vimioso, do Conselho de D. João V e académico da Academia Real apresenta um muito completo rol de eventos que marcaram a vida do Infante. Texto de fôlego, traduz a sensibilidade do autor para as circunstâncias que, em torno da vida do Infante, lhe moldaram o carácter. Mostra, também, o entendimento que um homem do século XVIII tinha da história e dos protagonistas de um tempo duzentos anos anterior a si, o que enriquece, sobremaneira, a leitura hodierna.[2]
Reconhecidamente inteligente e curioso por natureza, D. Luís teve Pedro Nunes por mestre de geometria, astronomia e filosofia, sendo que o ilustre salaciense era apenas quatro anos mais velho que o infante. Destinado a um papel sempre secundário por ser irmão mais novo do rei, D. Luís soube granjear a simpatia e o respeito na corte e o Piedoso não lhe negou afecto e consideração, concedendo-lhe o grão-mestrado do priorado do Crato aos 21 anos de idade. Lugar honroso a que não correspondia um comando efectivo de forças militares, já que as Ordens Militares se encontravam em claro declínio na sua importância estritamente militar no reino e no império.[3] O papel dos Hospitalários conhecerá novo fôlego quando em 1530 Carlos V lhes oferecer a ilha de Malta e a velha ordem de S. João se tornar na principal defesa da cristandade europeia no seu flanco sul.
Aliás, a cultura militar esteve sempre presente na educação e na acção do príncipe. E será precisamente por causa do seu cargo como prior do Hospital e pela educação militar que recebeu – embora não tenha naturalmente tido o mesmo percurso nas armas que a maior parte dos jovens fidalgos recebia, em combate nas praças d'Além ou na Índia - que entrará em cena o protagonista principal deste escrito, o avoengo do autor da biografia do Infante, D. Afonso de Portugal, 2.º conde do Vimioso.
Antes porém de chamarmos o protagonista ao palco, atentemos no contexto e nas coordenadas que o farão protagonizar um primeiro episódio que lhe trará reconhecimento e prestígio. A margem sul da Europa e da cristandade, há muito que conviviam com o problema da pirataria e corso, instigados sobretudo pela Sublime Porta, como forma de pressão e desgaste, como expressão incontornável da expansão otomana. O problema da pirataria foi um verdadeiro problema europeu e não apenas de Portugal. Em 1533, o turco Barba-Roxa era nomeado primeiro almirante da frota otomana. No ano seguinte, conquistou a Argélia e a Tunísia e, de Tunes, começou a lançar constantes ataques à costa italiana. A presença berbere e turca nas costas portuguesas era agora constante. Com efeito, em 1526 os turcos tinham derrotado os húngaros em Mohacs, abrindo assim caminho à destruição da monarquia húngara, e três anos mais tarde cercaram Viena, numa acção militar que deixou a Europa perplexa. A conquista de Bagdade aos Safávidas por Solimão, o Magnífico (1494-1566) em 1534, dava ao império otomano uma profundidade estratégica, ameaçadora da República Cristã.
A tomada de Túnis e a afirmação de uma cultura militar
Carlos V pede ajuda militar a Portugal para a campanha de 1535, enviando um pedido directo ao seu cunhado e rei, D. João III. O monarca nem hesitou. Na campanha do imperador jogava-se o prestígio dos Habsburgos, da cristandade, e até da Coroa de Portugal, ciosa do seu império e do prestígio europeu que granjeava. Em constante actividade militar em África e no Oriente, o poder militar português participava agora numa operação com forças europeias coligadas e em que os meios envolvidos e a organização táctica em muito superavam a capacidade a que os portugueses estavam habituados. Detentores de uma cultura de guerra assente no uso da fortaleza como eixo de projecção de poder, exímios na operação de surtidas e golpes de mão, de desembarques perfeitamente sincronizados com um enorme poder de fogo naval, com uma armada que conferia ligação aos pontos mais remotos de um império transcontinental, e habituados a uma escala reduzida de efectivos – reflexo da sua demografia – os portugueses eram agora chamados a integrar uma força de mais de 30.000 homens, de diversas proveniências geográficas e linguísticas. O rei ordenou a preparação de uma poderosa frota, composta por um galeão, duas naus e vinte caravelas de guerra. O galeão que comandava a frota, o S. João, era o famoso Botafogo, verdadeiro navio-almirante da armada da Coroa, o maior navio de guerra existente na época, montado com nada menos que 366 canhões, e que fora lançado ao mar um ano antes. A armada, na sua componente naval, foi comandada por António Saldanha como seu capitão de mar. A comandar as forças de terra, o próprio irmão do rei, o Infante D. Luís que, sem autorização do monarca, saíra a cavalo em direcção a Barcelona e quase causando um problema diplomático. Isto porque deixou Évora à noite, rodeado de um pequeno grupo de pessoas da sua confiança, onde pontuam nomes como Manuel de Sousa Chichorro, Rui Lourenço de Távora, D. Teodósio, Duque de Bragança, e D. Afonso de Portugal, a nossa personagem, que contava apenas 16 anos de idade. Iria comandar um efectivo de cerca de 2.000 homens, onde avultam alguns nomes como os de D. Francisco Coutinho, 2.º conde do Redondo[4] e capitão de Arzila, D. Francisco de Faro, 4.º senhor do Vimieiro e que combatera um ano antes no cerco de Safim, D. João de Castro, que servira nove anos em Tânger sob o comando de D. Duarte de Meneses. Comum a estes homens? O terem experiência na guerra africana.
Facto curioso desta campanha, entre outros, foi o das forças portuguesas terem sentido a necessidade de se integrar não só militarmente mas também ao nível da simbólica, da percepção do poder e das suas formas de expressão. A integração não foi apenas técnica e táctica, foi igualmente política pois há um pormenor que revela outras preocupações. Numa carta de instruções escrita ao Conde da Castanheira, lê-se:
«Eu queria que se dese vestido de libres das minhas coores a todolos bombardeiros d'armada, pera poderem servir em terra em hordenança cõ seus arcabuzes. Emcomēdovos muyto que lhe mandeis lloguo fazer vestydos de gibões e callças de tiras de maneira que vos milhor parecer; e se o tempo for curto, cortarse hã lloguo, e pelo maar iram acabado; e mandarlheis dar os atambores e pifaros que vos parecer que sam necesarios pera sayrem em ordenãça; o que mãdareys fazer cõ a brevidade que sabeis cõpre. […] Aos bonbardeiros vos encomēdo muyto que mandeis tambem dar as bandeiras que vos parecerem necesarias, pera a ordenança que ham de fazer quãdo sayrem em terra; e Belchior Soarez iraa por capitão d'elles, cõ capitães ou cabos d'escoadras que mais forem necesarios.»[5]
A uniformização dos soldados assume aqui um papel relevante no domínio da simbólica. Desembarcados os bombardeiros, vestidos com as cores e armas do rei de Portugal, dispostos em ordenança, com tambores e pífaros, identificados como sendo portugueses ou ao serviço da Coroa, mais do que função militar, que obviamente a têm, estes homens estão igualmente a desempenhar uma acção de marcação de presença política. Mostra-se assim o rei de Portugal, o seu poder e prestígio, também pelos ordenados contingentes que marcham com as suas cores. É tão importante este pormenor que o rei chega a sugerir que mesmo que não haja tempo, em terra, de tratar de confeccionar os gibões e as calças, que se o faça durante a viagem.
Chegado ao terreno, e apesar de o comando da armada ter sido entregue a António Saldanha, foi tido como natural que o Infante D. Luís assumisse o comando de todo o contingente expedicionário português. Era o irmão do rei, o Prior da ordem do Hospital e, apesar de quase ter causado um problema diplomático, era o co-cunhado do imperador. Outra coisa não seria possível admitir-se. E apesar da sua quase exclusiva vida cortesã, D. Luís não era de todo desinteressado das coisas da guerra; pelo contrário. Há que compreender que a Europa vivia num período de enorme transição no que à arte da guerra dizia respeito. As transformações tecnológicas, as armas de fogo, mudaram a face da guerra. Foi necessário inclusivamente criar novos escalões, técnicos, de comando intermédio. A nobreza não estava habituada a outra coisa que não fosse o exercício do comando por mérito de nascimento. Mas a guerra mudou e a infantaria voltou em força ao campo de batalha. Processo lento mas seguro, o combate apeado, conjuntamente com o poder inaudito das armas de fogo ligeiras e pesadas, marcou a mudança da tipologia da guerra. Mesmo assim, veja-se, uma tecnologia, a pirobalística, não substituiu inteira e repentinamente a neurobalística. Ambas conviveram durante praticamente todo o século; por outro, o comando foi maioritariamente exercido por quem tradicionalmente o exercia. Simultaneamente, os exércitos de cidadãos-soldados bem como as hostes senhoriais desaparecem gradualmente dando lugar ao militar profissional. A nova guerra impunha práticas colectivas muito bem organizadas, muito bem treinadas e interiorizadas, que não se compadeciam em nada com a secular concepção de guerra da nobreza europeia e cristã, a do cavaleiro que com o seu prestígio e a sua hoste fazia a guerra de sua mão ou ao serviço de outrem, na maior parte das vezes para defesa da honra pessoal ou do seu senhor, onde imperava o acto de bravura individual.
Na melhor das tradições militares, na véspera da acção, Carlos V reúne o seu Conselho de Guerra. E neste conselho têm lugar os comandantes militares experimentados na guerra europeia, homens que há muito acompanham o imperador. Homens como o Duque de Alba que, aos 28 anos, já tinha em si uma aura de prestígio que iluminava a Europa; Andrea Doria, de 69 anos, um homem que toda uma vida comandou forças na terra e no mar, impondo o respeito e a vitória em praticamente todas as operações em que participou; os portugueses, D. João de Castro, que recusou todas as honras que o imperador lhe quis atribuir no fim da bem sucedida campanha; E foi no meio deste escol de homens que D. Afonso de Portugal, de apenas 16 anos, foi convidado pelo próprio imperador para assistir ao seu conselho de guerra. Não será difícil imaginar a alegria e sentido de honra que o jovem descendente de Nun'Álvares Pereira, de remoto sangue real, terá sentido neste dia.[6]
Serviço de Deus e de El-Rei
D. Afonso de Portugal, 2.º conde de Vimioso nasceu em 1519. O seu pai era D. Francisco de Portugal, 1.º conde de Vimioso, título criado em 1515 por D. Manuel I. D. Francisco, por sua vez, era filho de D. Afonso, bispo de Évora, que fora obrigado a seguir a carreira eclesiástica por D. João II já depois de ser pai. O bispo de Évora, era filho de D. Afonso II de Portugal, conde de Ourém e marquês de Valença, primogénito de D. Afonso I, Duque de Bragança e de D. Beatriz Pereira de Alvim, filha de Nuno Álvares Pereira. Ou seja, o primeiro conde do Vimioso, D. Francisco, era trineto de D. João I, rei de Portugal, e do Condestável do reino, vencedor de Aljubarrota. Naturalmente próximo da corte e da Coroa, dada a sua casa, ascendência e laços de sangue, dele pouco mais se poderia esperar que o serviço ao rei, de qualquer forma que o monarca assim o determinasse. Acompanhando o monarca a Castela em 1498 quando o rei ali se deslocou para ser jurado como herdeiro do reino, está em Arzila em 1509, um ano após o grande cerco, servindo como seu fronteiro e, comandando o seu próprio efectivo de homens, de cavalo e apeados, não pertencentes ao efectivo da fortaleza, realizando diversas surtidas (nem sempre com o acordo do capitão da praça, o 1.º conde do Redondo, D. Vasco Coutinho), em acções de razia, como cumpria ao fidalgo estacionado em praça africana, e segundo o tipo de guerra e acção militar que naquelas partes os portugueses se habituaram a fazer, com elevada eficácia, note-se. Depois de um ano na praça de Arzila e após um episódio em que não morreu em combate por pouco, D. Francisco regressa ao reino para novamente passar a África, desta vez na armada de D. Jaime, na extraordinária operação que culminou na tomada de Azamor em 1513. Regressada a armada ao reino, D. Manuel integrou D. Francisco no seu Conselho e outorga-lhe o título de conde em 1515, recomendando-o no seu testamento a seu filho que virá a nomeá-lo vedor da fazenda. D. Francisco, detentor do título, de função, do senhorio de diversas vilas, viveu uma vida de prestígio e admiração. Dele disse Damião de Góis ser o Catão Português. Por ser dado às letras e à poesia, Garcia de Resende incluí-lo-á no seu Cancioneiro Geral de 1516.[7]Seu neto, D. Henrique de Portugal, publicará em 1605 uma compilação dos seus escritos chamada Sentenças de D. Francisco de Portugal, I. Conde De Vimioso.[8]
D. Afonso, o segundo conde, terá um percurso de vida inverso ao do seu pai:[9] depois do episódio já referido do conselho de guerra de Carlos V, começará por ter uma vida cortesã associada aos cargos que desempenhava e entregue aos negócios políticos, e terminá-la-á em intensa, e derradeira, actividade militar. D. João III deu-lhe assento no seu conselho em 1544. Destinado a casar-se com a filha do Duque de Bragança, acabará por se unir matrimonialmente à filha do Senhor da Capitania do Machico e de Santa Cruz, Francisco Gusmão, cargos que receberá em dote. Estas capitanias tinham sido dadas por D. João III a António da Silveira, defensor de Diu que, com a autorização do monarca, as vendeu em 1548 a Francisco Gusmão, por 35.000 cruzados. Prática comum à época. Neste mesmo ano de 1549, morre seu pai e D. Afonso sucede-lhe na casa, com todos os títulos, ocupando o lugar de Vedor da Fazenda, cargo deixado vago pela morte de seu pai, e cargo que manterá quando D. Sebastião subir de facto ao trono em 1568. O conde do Vimioso acompanhará o jovem rei na primeira expedição a África em 1574. Levará consigo os seus três filhos, D. Francisco, sucessor da sua casa, D. Luís e D. Manuel, para além dos seus poucos homens de armas. Quatro anos mais tarde, e novamente com os filhos, acompanhará D. Sebastião na fatal jornada africana. Capturado no fim da batalha com o seu primogénito, acabará por morrer em cativeiro um ano mais tarde. Seu filho, D. Francisco, será resgatado e tomará partido de D. António Prior do Crato, morrendo em combate na batalha naval de Vila Franca, em 1582. Seu irmão, D. Luís, receberá a casa e alguns dos títulos pelos quais muito pugnou já que Felipe II praticamente expropriara os condes de Vimioso de bens, rendas e títulos, além de mandar prender a família em Espanha.
Tipologias de guerra e adaptações sociais
D. Afonso de Portugal personifica o guerreiro português comum que mais facilmente as fontes coevas documentam. Um nobre, titular, cuja função é a de servir a Coroa e satisfazer a sua própria honra. O exercício da guerra e o exercício do comando na guerra são entendidos como naturais a quem nasce dentro da casta que destes assuntos se ocupa. Desde sempre. E mesmo perante o que alguma historiografia designou como a Revolução Militar, os nobres e fidalgos que se ocupavam da guerra, quase nunca a tempo inteiro – se exceptuarmos as verdadeiras dinastias dos Meneses e Coutinhos que se perpetuavam no comando das praças d'Além Mar em África – dificilmente admitiam a sua ignorância das coisas da guerra moderna. Quando a guerra começa a mudar a sua tipologia, quando as armas de fogo portáteis e pesadas começam a ocupar os campos de batalha europeus, quando a tecnologia associada à pólvora e toda a sua logística e quando a arquitectura militar começa a redesenhar-se por causa do poder destrutivo da nova artilharia, não se pôs em causa o multissecular comando militar entregue à ordem social que dele naturalmente sempre se ocupou. A guerra na Europa, antes da Revolução Francesa e antes da Revolução Industrial é um reflexo rigoroso da organização social no que à sua ordem concerne. Veja-se o curioso exemplo ocorrido na cidade do Porto e que bem ilustra este quadro mental. D. João III, a coberto da lei de 1508, nomeara em 1525 Bartolomeu Ferraz de Andrade como coronel-mor e comandante de todas as milícias a levantar no reino. No ano seguinte, nomeia Cristóvão Leitão «meu coronel que terá carreguo nesa cidade de ensinar e ordenar a dita gemte na dita ordenanca e eixercicio della».[10] O veterano das Guerras de Itália passará os próximo meses a constituir e levantar, pessoalmente, um verdadeiro exército miliciano prático na arte da guerra moderna no que à infantaria dizia respeito: disciplina, enquadramento, formações de combate à suíça, com piques e arcabuzes, exactamente como experimentou e viu praticar. Dada a circunscrição territorial, não podia deixar de estar presente o alcaide-mor do Porto, João Rodrigues de Sá, o qual marcou presença no início dos primeiros exercícios, deixou um criado seu no seu lugar, montou o seu cavalo e nunca mais ali apareceu. O combate apeado já tinha entrado na prática mas não ainda na estrutura mental de alguns fidalgos.
A própria legislação que se ocupava de assuntos militares, por exemplo, nunca deixou de lado a preocupação financeira e fiscal resultantes dos mesmos. As Ordenações Manuelinas, e sabendo a Coroa que a base social da cavalaria se alargava no princípio do século XVI com a abertura do caminho para o Oriente, estabelecem que todos os que sejam armados cavaleiros por feitos militares voltem a pagar o imposto da Jugada, mesmo que se encontrassem isentados pelos forais das terras da sua proveniência.[11] E a fiscalidade não era nem universal nem comum a todas as ordens sociais. A Lei das Armas de 6 de Dezembro de 1569,[12] aliás no esteio da Lei das Ordenanças sobre Cavalos e Armas de 1549, além de estabelecer o princípio da militarização do reino, organiza os contingentes em função de uma base fiscal, para determinação de obrigação de posse de armamento. Entram no cômputo os rendimentos individuais e os bens e são estes que determinam que armas terão de ter para o serviço à Coroa. E quando D. Sebastião, com o Regimento das Companhiasde 1570 tentar pôr de pé o maior e mais elaborado sistema de recrutamento e mobilização militar de súbditos-soldados de Quinhentos, será também a fiscalidade e as fontes de financiamento através da receita fiscal a tolher o passo aos intentos do monarca nalgumas partes do reino, pois levantam-se alguns representantes de vilas e cidades a tentar – e a conseguir - negociar o financiamento do dispositivo.[13]
O percurso de vida e o contacto com a arte da guerra de D. Afonso de Portugal inspiram-nos, eventualmente e também, a enveredar por outras considerações. Não é inoportuno, nem sequer difícil, relembrar o famigerado - enfim não é um debate, é uma ideia instalada nalguma historiografia de pendor militar, com origem em Carlos Selvagem[14] (e que fez escola) relacionada com a época ou data da criação de um exército permanente em Portugal. Ideia fútil porque se é verdade que o Conselho da Guerra em Janeiro de 1641 começa a criar unidades militares que virão a perdurar no tempo (depois da paz de 1668, atente-se, a maior parte do dispositivo e suas unidades serão dissolvidos), não é menos verdade que sempre houve senão unidades, forças de carácter permanente, desde a fundação da nacionalidade. Bastará recordar, em diferentes épocas, as mesnadas, as lanças, os besteiros, os bombardeiros da nómina e até as hostes senhoriais – embora estas comecem perder importância no século XVI dada a crescente modernização, estruturação e centralização do Estado - para podermos observar a permanência de forças militares no reino. Para não falar da guarnição das fortalezas ultramarinas, desde início do século XV, encargo logístico e financeiro da Coroa, e da Marinha, desde sempre com um carácter permanente quanto aos homens de marear e de guerra, estes mais fluidos na permanência. A questão, aqui, nem é tanto o saber se se tratam de forças profissionais, conscritas, de hostes privadas, de mercenários ou de unidades que formalmente perduram no tempo, onde o ensino e a aprendizagem militares, com auxílio de um corpo doutrinário, fazem construir e perdurar uma dada cultura militar. A questão é uma mera formalidade pois bastar-nos-á pensar que para o Rei, para a Coroa, para o Estado, havia sempre forças permanentes, prontas para, num espaço de tempo razoável, serem mobilizadas. O monarca apenas precisava mandar convocar os senhores do reino, os alcaides, os senhores das vilas, os fidalgos e os nobres que orbitavam a Corte para que, num razoável espaço de tempo, todos comparecessem à chamada com os seus homens, com as suas hostes, as quais, todas juntas e unificadas num comando, representavam uma força militar que não era de todo despicienda. O que podemos discutir – e esse debate é muito mais interessante – é se essa força era eficiente, bem conduzida, permeável à introdução de novas tecnologias, com conhecimentos técnicos suficientes para operar armas pirobalísticas, ligeiras e pesadas. Na lógica de quem vê de cima, o exército permanente nunca deixou de existir.
NOTAS
[1] PESTANA, José do Couto, Outavas Epitalamicas, Lisboa Occidental, na Officina da Musica, MCCCXXIX, p. 11.
[2] PORTUGAL, D. José Miguel João de, Vida do Infante D. Luiz, Lisboa Occidental, na Officina de Antonio Isidoro da Fonseca, MDCCXXXV.
[3] Ver o nosso «A Ordem de Malta em Portugal e as grandes transformações militares da Renascença», Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, pp. 182-186, Série 139, n.º 1-12, Lisboa, SGL, 2022. «D. Maria I, por Carta de 31 de Janeiro de 1790 corroborou e ratificou a anexaçãoo e união do Priorado do Crato à Casa do Infantado, de acordo com a bula papal de 25 de Novembro de 1789. O Alvará de 18 de Dezembro de 1790 extinguiu a Mesa Prioral do Crato, passando o expediente à Junta do Infantado. Foi criada uma nova Mesa e um juiz dos feitos da Casa e Priorado. A Casa passou a controlar o Grão-Priorado do Crato, que se compunha, para além da vila do Crato, de Gáfete, Sertã, Amieira, Proença-a-Nova, Cardigos, Oleiros, Belver, Envendos, Gavião, Tolosa, Carvoeiro e Pedrógão. Através de Carta de Lei de 19 de Julho de 1790, D. Maria I declarou e regulou a jurisdição da Casa e Estado do Infantado.» in, BRAGA, Joana, Casa do Infantado e Grão Priorado do Crato: catálogo, 2016, Lisboa, ANTT, ID L 731, p. 9.
[4] O conde do Redondo merecia a admiração pessoal do Imperador Carlos V, tal o seu afamado mérito militar. Cf. CRUZ, Maria do Rosário Themudo Barata, As Regências na Menoridade de D. Sebastião, elementos para uma história estrutural, Lisboa, INCM, vol. I, 1992, p. 132.
[5] Letters, of John III King of Portugal, 1521-1557, The Portuguese Text Edited with an Introduction by J.D.M.Ford, Cambridge, Harvard University Press, 1931, pp. 225-6.
[6] «Tambem nesta jornada honrou, e distinguiu com especialidade Carlos V. a D. Affonso de Portugal, filho primogenito do Conde do Vimioso: porque naõ tendo mais de dezaseis annos, o mandou entrar no seu Conselho de Guerra, estando authorisado com a sua augusta presença, e comporto dos mais insignes, e famosos Capitães daquelle seculo; e dizendolhe porèm que naõ votasse pelos seu poucos annos. Mas sendo extraordinaria a merce daquela assistencia, naõ foy pequeno o favor desta recomendaçaõ». PORTUGAL, D. José, ob. cit. pp. 60-1.
[7] Cf. e.g. OSÓRIO, Jorge A., «Do Cancioneiro «ordenado e emendado» por Garcia de Resende», Revista da Faculdade de Letras - Línguas e Literaturas, II Série, vol. XXII, Porto, UP, 2005, pp. 291-335, p. 307.
[8] Indispensável o estudo de Valeria Tocco, Poesias e Sentenças de D. Francisco de Portugal, 1.º Conde de Vimioso, Lisboa, CNCDP, 1999.
[9] Dotado de uma personalidade muito diferente da do seu pai, D. Afonso nunca se negou ao serviço à Coroa mas sempre fez questão de se queixar do pouco reconhecimento que recebia pelo seu esforço, da despesa que tinha sem ajuda de custo por parte do erário régio, da falta de dinheiro por promessas não cumpridas. O seu testamento, feito em 1573, mostra um homem algo amargurado que situa a honra ao mesmo nível da dívida pecuniária. O apontamento para o testamento encontra-se publicado em SOUSA, D. António Caetano de, Provas da História Genealógica da Casa Real Portuguesa, Tomo V, II Parte, Coimbra, Atlântida - Livraria Editora, L.DA, pp. 359-364.
[10] SANCEAU, Elaine, «A Ordenança no Porto no Reinado de D. João III», Porto, Separata do Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto, Vol. XXIX – Fasc. 3-4, 1957, p. 15.
[11] «E por quanto em os Nossos Luguares d'Alem Mar, e assi nas Armadas que Mandamos, se fazem soltamente muitos Caualeiros pelos Nossos Capitaens, Determinamos, e Mandamos, que os ditos Caualeiros que se fezerem de vinte e huũ dias do mês de Maio do anno de Nosso Senhor Jesu Christo de mil e quinhentos e dous em diante, e assi os que se daqui em diante fezerem, nom sejam escusos de paguar Juguada, posto que polos Foraes sejam escusos; saluo aquelles que leuarem Nosso Sobre Aluará[…]». Ordenações Manuelinas, Livro. II, Título 16, § 39.
[12] Publicada em Leys e Provisões, Que ElRei Dom Sebastião Nosso Senhor fez depois que começou a governar, Impressas em Lisboa per Francisco Correa em 1570, Coimbra, na Real Imprensa da Universidade, 1816, pp. 14-25.
[13] Será o que acontece na Guarda em que os vereadores da cidade, aproveitando uma onda de queixas dos capitães das companhias quanto a um conjunto de arbitrariedades que muitos senhores locais começaram a exercer, informam o rei de que a Câmara não tem dinheiro para a aquisição das bandeiras e tambores necessários aos alardos, a menos que o monarca ceda uns terrenos para serem arrendados em proveito do município. «(…) o juiz vereadores e procuradores della que enujarão dizer que na dita cidade e emseu termo ha treze companjnhas <sic> de gemte de ordenamca e que os capitaees dellas lhe pedyamque das Remdas do concelho lhe fizessem dar bandeiras e tambores como se dão nas outras cidades e villas do Reyno e que o dito comcelho tinha tão pouqua Remda que não habastaua pera tamta despesa (…)». ANTT, Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, Livro 30, fol.2.
[14] SELVAGEM, Carlos, Portugal Militar, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1991, p. 384.
GONÇALO COUCEIRO FEIO
Investigador no Centro de História da Universidade de Lisboa. Professor Auxiliar Convidado da Universidade Aberta. Membro do Conselho Científico da Comissão Portuguesa de História Militar.
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Como citar este texto:
FEIO, Gonçalo Couceiro – Homens de guerra na Renascença: D. Afonso de Portugal, 2.º Conde de Vimioso – Considerações sobre guerra e mentalidades. Revista Portuguesa de História Militar – Dossier: O reinado de D. Sebastião, a “perda de independência" e o período Filipino. [Em linha] Ano IV, nº 7 (2024); https://doi.org/10.56092/FPWE1464[Consultado em ...].