MUSEU MILITAR DE LISBOA. A ARMADURA DE APARATO ATRIBUÍDA AO JOVEM PRÍNCIPE D. SEBASTIÃO -VERDADE OU IMAGINAÇÃO?

António N. Marcos de Andrade & Frederico Duque dos Santos
Resumo
O presente artigo revisita a propriedade de uma armadura de criança, atribuída a D. Sebastião, existente no Museu Militar de Lisboa, oferecendo rumos de pesquisa para essa signoficativa peça do espólio do Museu.
Palavras-chave: D. Sebastião; Armadura; Museu Militar de Lisboa
Abstract
This article revisits the ownership of a child's armour, attributed to King D. Sebastião, in the Lisbon Military Museum, offering research directions for this significant piece of the Museum's collection.
Keywords: D. Sebastião; Armour; Lisbon Military Museum
Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
(Fernando Pessoa, “Dom Sebastião Rei de Portugal”, in Mensagem)
O Museu Militar de Lisboa tem no seu espólio uma armadura atribuída a Dom Sebastião, sob o número de inventário MML00892, é descrita uma Armadura completa, com elmo fechado, tendo no peito um colar gravado com uma cruz ornada – em tudo semelhante à base das que surgem nas ordens de Alcântara, de Avis, de Calatrava e de Montesa – e, ainda, ao centro, as letras I H S[1] – que podem indiciar a sigla identificadora da Companhia de Jesus.
Figura 1 - Armadura completa, de criança, patente na exposição do Museu Militar de Lisboa.
Procurando saber a sua história encontramos o seguinte no catálogo da XVII Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura: Os Descobrimentos Portugueses e a Europa do Renascimento: Armaria dos séculos XV a XVII: Torre de Belém :
«Armadura; Portugal, ca. 1565 / Antiga col. R. D. / Aquisição, 1975 / Lisboa, M.M.L., inv. R/1
Armadura completa, com elmo fechado, tendo no peito um colar gravado com a cruz de Avis.
Presume-se ser esta a armadura com que o Rei D. Sebastião teria sido investido no cargo de Grão-Mestre da Ordem de Avis, em conformidade com a determinação do seu avô, o Rei D. João III, que atribuía a todos os futuros soberanos de Portugal o grão-mestrado daquela Ordem. Sob [sic] a cruz, ostenta a sigla IHS, da Companhia de Jesus, em virtude de o Príncipe ter sido educado por mestres daquela Companhia.
A presente armadura foi concluída por volta de 1565 e, até recentemente, julgou-se ter pertencido ao Rei Henrique III de França, erro este esclarecido por estudos ulteriores.
Além da que é hoje propriedade da Real Armeria de Madrid, existiam mais dez armaduras de D. Sebastião de que só restam peças isoladas:
A presente armadura foi levada para Paris pelas tropas napoleónicas, quando da primeira invasão francesa comandada por Junot.»[2]
Esta original e magnifica armadura de criança, em excelente estado de conservação, foi incorporada no espólio do Museu Militar em 1975. Pertencera ao colecionador Rainer Daenhardt que a entregou num acordo com o Estado Português. Este colecionador atribuía a armadura ao então ainda muito jovem Rei Dom Sebastião[3] que a teria usado “aquando da sua investidura no cargo de Grão-Mestre da Ordem de Avis".
A armadura aparentemente pode ser datável de circa 1565.
Tanto quanto se conseguiu apurar, Rainer Daenhardt, informou que a mesma armadura aparece descrita na obra de Jacques ROBIQUET, de 1916, Catalogue des armes et armures des souverains français et étrangers.
Para justificar a sua presença em território francês, Daenhardt sugeriu a possibilidade de a armadura ter sido confiscada em Portugal pelas tropas napoleónicas, mas sem bases seguras.
O arnês apresenta-se com uma gravação de buril; nela está representando um cordão suspenso ao pescoço, do qual pende um ornamento sobre o qual apresentamos as seguintes hipóteses de investigação:
1.ª hipótese: representação de uma hóstia em esplendor.
No centro encontra-se um círculo, possivelmente tentando simbolizar uma hóstia, dado ser ocupado com as letras «I H S». Desse círculo saem 4 braços, idênticos (aparentemente, no tradicional esquema de uma cruz grega). Os braços dessa cruz encontram-se engalanados com motivos florais que facilmente recordam ou lembram a designada Flor de Liz.
Foi talvez por entenderem que esses 4 braços eram quatro «Flores de Liz» e o saliente «H» no centro do círculo ao qual se encontram ligados, que levou à classificação de pertença da armadura ao já referido monarca francês.
Se seguirmos antes a hipótese de as letras representadas «I H S» se encontram no centro de uma hóstia, como identificadoras da palavra IESV abreviada em caracteres gregos, a escrita do Novo Testamento e a abreviatura comummente usada, teremos não a sua relacionação com a casa real francesa, mas com um combatente pertencente à ordem da Companhia de Jesus.
Aparecem gravuras da segunda metade do século XVI e do século XVII em que o símbolo da Companhia de Jesus se encontra engalanado com semelhantes arranjos.
2.ª hipótese: a representação dos braços da cruz terem também um outro significado heráldico. Ser uma cruz ornada – em tudo semelhante à base das que surgem nas ordens de Alcântara, de Avis, de Calatrava e de Montesa.
Embora mais difícil de aceitar, pode não ser impossível e tratar-se-ia assim da armadura de um cavaleiro de uma destas ordens anteriormente nomeadas que ingressara na Companhia de Jesus. Tanto pode ter sido francês, como espanhol, como português.
A prudência histórica leva a colocar muitas dúvidas a que a inscrição «I H S» (a esta inscrição ser autêntica e primitiva) não pertencesse ao legítimo proprietário. Nunca o Rei de Portugal colocaria como seu o símbolo Jesuítico de outrem. É certo que o preceptor e confessor do Rei era dessa companhia; mas, repetimos, no nosso entendimento o Rei não usaria as siglas da ordem do Padre Jesuíta Luís Gonçalves da Câmara.
Também é sabido que as Ordens religiosas militares foram incorporadas na coroa no reinado de D. João III, 1551. O Rei de Portugal passou a ser o Grão-Mestre não administrativo do conjunto das três principais ordens: Avis, Cristo e Santiago, em conjunto. E em conjunto passaram a fazerem-se representar no adorno real. Não aparenta fazer, assim, sentido, que D. Sebastião se apresentasse com apenas um dos símbolos.
Figura 2 – Detalhe do peitoral da armadura.
Observando com atenção o arnês, podemos concluir: em primeiro lugar que o conjunto parece ter sido fabricado pela mesma oficina, à exceção do elmete[4]. Segundo, já referido por alguns estudos, o elmete poderá ter sido em tempos uma borguinhota[5] à qual foi acrescentado material até chegarmos ao modelo atual; terceiro, no interior do arnês há vestígios assinaláveis de danos, alterações e reparações – a maior parte do couro que existiria originalmente no interior do conjunto foi substituído por couro e tecido vermelho.
Figura 3 – Detalhe do elmete.
De uma forma geral, no caso das armaduras régias portuguesas, é difícil reconhecer quando uma armadura é atribuível a um dado monarca e, ainda mais difícil, será comprová-lo. Por outro lado, os eventos ocorridos no nosso território fizeram perder grande parte do nosso património histórico. São exemplos o terramoto de 1755, as Invasões Francesas, os leilões do Arsenal do Exército em 1834, e as grandes dificuldades financeiras em que ficou o país após o fim das Guerras Liberais
Figura 4 - Retrato de D. Sebastião (cerca de 1562). Atribuído a Alonso Sánchez Coello (1531–1588), Schloss Schönbrunn, Wien, Áustria [identificado em 2010].
Dom Sebastião, ao longo de toda a História de Portugal, é uma figura que levanta paixões e antipatias, incertezas e inquietações, quimeras e mitos. O seu reinado estendeu-se de 1557 a 1578 e foi marcado por sonhos e visões messiânicas que culminaram em tragédia nos campos de Alcaçer-Quibir e transformaram profundamente o destino de Portugal, conforme nos ensina Queiroz Velloso. De qualquer modo, essa visão fatalista tem-se vindo a esfumar e, apesar de muitas opiniões, ultimamente alguns autores tem escrito sobre este facto da nossa História com outro olhar sobre aqueles acontecimentos.
Nascido em 1554, Dom Sebastião, filho do Príncipe Dom João Manuel (1537-1554) e de Dona Joana de Castela (1535-1575), era neto de do nosso Rei Dom João III e foi aclamado soberano do Reino de Portugal aos três anos de idade, após a morte do seu avô, dado ser filho póstumo. A sua educação foi confiada a tutores cuidadosamente selecionados pela rainha-avó, Dona Catarina da Áustria, e pelo seu tio Cardeal-Infante Dom Henrique. O jovem Rei foi, aparentemente, influenciado por ideais religiosos que o moldaram e inspiraram.
Diz-nos Frei Amador Rebelo, na Crónica de El-Rei D. Sebastião que «[…] Sendo el-rei menino, não somente o exortavam com palavras e exemplos de grandes reis e de grandes vitórias, mas, pelos livros por onde lhe davam lições, o persuadiram a tais empresas e a exercícios militares».
Durante seu curto reinado, D. Sebastião assumiu a liderança na defesa da cristandade contra os muçulmanos. Este zelo religioso e espírito aventureiro foram determinantes na sua decisão de empreender a desastrosa expedição militar ao Norte da África em 1578, culminando com a Batalha de Alcácer-Quibir.
Esta Batalha, resultou numa pesada derrota, sobretudo devido à morte (ou desaparecimento?) do Rei no campo de batalha. Portugal atravessou uma crise dinástica e política. Sem um herdeiro direto, o país enfrentou uma União Dinástica Ibérica, quando Filipe II da Espanha foi coroado, também, como rei de Portugal. O regresso esperado ou desejado de Sebastião, conforme acalentado por Bandarra nas suas Trovas, tornou-se num símbolo de esperança e resistência para os portugueses, dando origem ao mito sebastianista, crença messiânica no retorno de Dom Sebastião num dia de nevoeiro.
Dom Sebastião, apesar de seu reinado breve e trágico, deixou uma marca indelével na História de Portugal. O seu legado continua vivo e a levantar mistérios, representando o arquétipo do herói desaparecido cujas promessas de glória e redenção capturaram a alma portuguesa de uma época. O seu sonho imprudente continua a ressoar, simbolizando tanto a esperança quanto a ilusão no panorama histórico nacional.
Como nos refere Alexandre Herculano, “A nossa história, mais ainda do que a de outras nações da Europa, para surgir da sombra das lendas à luz clara da realidade, carece de indagações profundas, e de apreciações sinceras e desinteressadas."[6]
Podemos concluir que, da mesma forma como iniciamos este artigo, as certezas esfumam-se e resta-nos estudar e permanecer serenos perante a grandeza e o exemplo dos nossos antepassados.
Bibliografia
Daehnhardt, Rainer, Acerca das Armaduras de D. Sebastião, Lisboa, Publicações Quipu, 1998.
Daehnhardt, Rainer, Dom Sebastião, o Elmo e Alcácer-Quibir, Lisboa, Apeiron Edições, 2011.
Dias, João José Alves (coord.), Portugal do Renascimento à Crise Dinástica, vol. V, de Nova História de Portugal, direção de Joel Serrão e de A. H. de Oliveira Marques, Lisboa, Editorial Presença, 1998.
Velloso, Queiroz, D. Sebastião 1554 - 1574, 3ª edição, Lisboa, Gradiva, 2024.
NOTAS
[1] IHS do latim Iesus Hominum Salvator, Jesus Salvador dos Homens.
[2] XVII Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura: Os Descobrimentos Portugueses e a Europa do Renascimento: Armaria dos séculos XV a XVII: Torre de Belém (Lisboa, 1984, p. 71, n.º 63.
[3] Dom Sebastião foi coroado Rei, com apenas três anos de idade, por morte de seu avô o Rei Dom João III
[4] Elmete, é um pequeno elmo ou proteção de cabeça, utilizado no período medieval.
[5] Outra designação utilizada na época para designar uma proteção de cabeça.
[6] Herculano, Alexandre; História de Portugal Vol I, pág. 6 (4ª edição de 1875)
ANTÓNIO N. MARCOS DE ANDRADE
Coronel do Exército Português (Arma de Cavalaria), Director do Museu Militar de Lisboa. Entre 2016 e 2021 foi Director do Jornal do Exército e, de 2022 a 2024, assessor de estudos do Instituto de Defesa Nacional. É pós-graduado em Estratégia (ISCSP) e em História Militar (Universidade dos Açores/Academia Militar). Colaborador de diversas obras colectivas e autor de diversos artigos, é autor do livro «Morte ou Glória – A História do Regimento de Lanceiros N.º 2», Edição Fronteira do Caos, 2014.
FREDERICO DUQUE DOS SANTOS
Natural de Mafra (1992), Tenente em Regime de Contracto do Exército Português, a exercer funções no Museu Militar de Lisboa. Licenciado em Estudos Portugueses (FCSH/UNL) e mestrando em História, no mesmo estabelecimento de ensino universitário, e em História Militar (Univeridad Catolica de Murcia/Espanha).
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Como citar este texto:
ANDRADE, António N. Marcos de, SANTOS, Frederico Duque dos – Museu Militar de Lisboa. A armadura de aparato atribuída ao jovem príncipe D. Sebastião - verdade ou imaginação? Revista Portuguesa de História Militar – Dossier: O reinado de D. Sebastião, a “perda de independência" e o período Filipino. [Em linha] Ano IV, nº 7 (2024); https://doi.org/10.56092/XBVQ7151 [Consultado em ...].