Verificamos, assim que, Luís de Camões, em "Os Lusíadas", não se limitou a contar os feitos passados de Portugal, como também incitou o jovem rei D. Sebastião a seguir o caminho das armas e da glória militar. Nesta perspectiva o seu poema funcionou como um instrumento de exortação e legitimação das aspirações de cruzada do monarca, reflectindo o espírito do tempo, no qual o desejo militar e a missão religiosa estavam profundamente entrelaçados.
Embora não se possa responsabilizar Camões directamente pelo desastre militar, a sua obra contribuiu para alimentar o fervor guerreiro e o sentido de missão divina que caracterizaram o reinado de D. Sebastião. "Os Lusíadas" celebravam a glória militar, e D. Sebastião interpretou essa exaltação como um chamamento para seguir os exemplos heroicos do passado. A visão camoniana de um rei guerreiro e missionário, defensor da fé e do império, foi fundamental para a formação da auto-percepção de D. Sebastião como líder militar.
O incitamento militar de Camões e o ambiente de fervor que rodeava D. Sebastião culminaram na fatídica batalha de Alcácer-Quibir em 4 de Agosto de 1578. O rei, convencido da sua missão providencial, decidiu liderar uma expedição ao Norte da África contra o sultão mouro Mulei Moluco. A expedição resultou numa derrota catastrófica para Portugal, que perdeu grande parte das suas forças militares, e o próprio D. Sebastião desapareceu no campo de batalha, deixando o país numa crise dinástica que acabaria por resultar na União Ibérica (1580-1640).
A trágica campanha de Alcácer-Quibir, embora tenha sido um ponto de inflexão na história de Portugal, é também um testemunho da influência que obras como "Os Lusíadas" tiveram sobre o imaginário político e militar do reino. Camões, na senda de outros antes de si, através do seu poema épico, ajudou a cristalizar o ideal de um rei-guerreiro que, embora glorioso na intenção, se revelou fatal na execução. O incitamento militar contido na sua obra continuou, no entanto, a ser uma das grandes marcas da literatura portuguesa e do legado cultural deixado para as gerações seguintes.
D. Sebastião cresceu imbuído de valores cavaleirescos, e entre muitos Camões foi uma das vozes que ajudou a cristalizar esses ideais. O jovem rei via-se como um cruzado moderno, destinado a liderar Portugal numa nova era de conquistas. “Os Lusíadas", com suas referências constantes ao heroísmo dos antigos guerreiros e navegadores, funcionou como uma espécie de manual simbólico para o monarca, exaltando as virtudes militares e espirituais da cruzada.
Poder-se-á, assim, ver na propensão de D. Sebastião em atender e organizar militarmente a nação, uma obsessão individual ou uma manifestação de insânia como tantos autores pretenderam ao longo de séculos?
Parece-nos claramente que não. O soberano sempre demonstrou, de facto, uma enorme preocupação pelos serviços militares do reino, mas tal mostra tão somente, quanto a nós, um vasto conhecimento sobre quais eram as necessidades do reino.
Tantos afirmaram o contrário e que foi de facto um exagero e insânia, atestatória da loucura do monarca e apenas o resultado de uma má educação e de educadores excessivamente militaristas. Embora tais premissas sejam verdadeiras, eram-no transversalmente na sociedade portuguesa de então e, como sabemos hoje, tal ideia não corresponde minimamente à verdade.
Embora os homens de cultura, como vimos, o tenham conduzido a tal, parece-nos demonstrado que tais medidas foram absolutamente necessárias e resultantes das profundas transformações porque passava a nação e a cristandade.
BIBLIOGRAFIA
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TEIVE, Diogo de – Epódos que contem sentenças uteis a todos os homens, as quaes se accrescentão Regras para a boa educação de hum Principe: composto tudo na Lingua Latina. Pelo insigne Portuguez Diogo de Teive (...). Traduzido na vulgar em verso solto por Francisco de Andrade. Copiado fielmente da Edição de Lisboa de 1565. Lisboa, Na Of. Patr. de Francisco Luiz Ameno, 1786.
NOTAS
[1] Apenas lhe sobreviveu uma filha natural, Ana Chaves (1520-1600) gerada antes do casamento de sua mãe (e, igualmente, do pai), Cezília de Chaves, uma mulher judia, desterrada, juntamente com a filha, pelo então Príncipe para São Tomé e Príncipe. Ana Chaves chegou a ser uma rica proprietária de terras e importante figura local.
[2] Casado com D. Joana de Áustria, com o objetivo de fortalecer os laços entre as coroas portuguesa e espanhola. Era filha de Carlos V e Isabel de Portugal e irmã de Filipe II. Voltou a Espanha logo em Maio de 1554, a pedido do irmão Filipe, deixando o seu filho recém-nascido com a sua sogra, a rainha D. Catarina de Áustria, a irmã mais nova de Carlos V.
[3] O problema em Portugal não era o da eventual falta de herdeiros, mas sobretudo o resultante do acordo de casamento de D. Maria Manuela, irmã do príncipe defunto, com Filipe II de Espanha (em 14 de Novembro de 1543), pelo qual, caso não houvesse sucessores directos, o reino passaria ao filho desta união, Carlos (8 de Julho de 1545), ocorrendo assim a união com Espanha, que os portugueses sempre abominaram.
[4] No dia 27 de Janeiro foi batizado pelo Cardeal D. Henrique, irmão do rei D. João III, recebendo o nome de Sebastião por causa de ter nascido no dia de São Sebastião, sendo seus padrinhos os seus avós, o rei e a rainha. Em virtude de ser um herdeiro tão esperado para dar continuidade à Dinastia de Avis, ficou conhecido como “O Desejado".
[5] Convocadas devido à renúncia da rainha regente D. Catarina, e da necessidade de nomeação de outro regente, o cardeal D. Henrique. Apesar do apoio do seu sobrinho, Filipe II, porquanto servia uma política conivente com os interesses do monarca espanhol, a rainha foi forçada a renunciar devido ao inflamado nacionalismo do povo e à vontade de pôr termo à política desastrosa de D. João III, que ela perpetuava.
[6] Loureiro, Francisco Sales, p. 97
[7] Ainda no final do reinado de D. Manuel I, em 1518, os xerifes do norte da África haviam proclamado a guerra santa contra o infiel e tendo como objectivo a libertação das praças ocupadas. Nessa campanha logo em 1524 apoderaram-se de Marraquexe, em 1533 moveram um cerco a Safim e em 1541, conquistaram a fortaleza de Santa Cruz de Cabo de Gué (Agadir). Esta conquista levou a um abandono das Fortalezas de Azamor e da Praça-forte de Safim, em 1542. Após a conquista de Fez em 1549, no mesmo ano foi abandonada a Praça-forte de Alcácer-Ceguer e no ano seguinte a Praça-forte de Arzila.
[8] Pode-se, também por esta razão, compreender a opção pela política militar norte-africana. De facto, dominando territorialmente o Norte de África defendia-se as costas do reino e, evitava-se a subida das hostes mouras às mesmas. O “Regimento das Alçadas" de 25 de Janeiro de 1570, refere “uma vistoria que se deveria efectuar no sentido de detectar possíveis estragos, avaliar o estado de conservação das fortalezas, bem como averiguar a sua existência em locais onde se julgava existirem. Refere-se, de imediato, que caso estivessem danificadas se deveriam prontamente tomar providências para colmatar tal situação, com especial incidência nas fortalezas de portos de mar e ainda de lugares junto à fronteira (raya), pois semelhante estado de coisas exigia uma rápida reparação", in Oliveira e Silva, p. 59-60.
[9] Nesta conjuntura podemos dizer que foram vários os reinos que empreenderam "cruzadas" particulares, sendo um dos melhores exemplos para esta situação a batalha naval de Lepanto (no golfo de Corinto), em 7 de Outubro de 1571, em que a armada cristã comandada por D. João de Áustria, derrotou a turca, quando a ameaça destes era uma realidade bem próxima, ocupando mesmo, zonas significativas do Norte de África.
[10] Loureiro, Francisco Sales, p. 113.
[11] Para Sá de Miranda, a poesia não era uma ocupação ociosa de intelectuais de salão, como havia sido para tantos que o antecederam, mas uma verdadeira missão sagrada, na qual o poeta deveria denunciar os vícios da sociedade, sobretudo da Corte, pautada pelo luxo que tudo corrompe. Ao invés deveria exaltar os hábitos tradicionais, simples e geradores de felicidade e de sociedades sãs.
[12] Loureiro, Francisco Sales, p. 76.
[13] Nasceu em Braga c.1513/1514, falecendo depois de 1569. Foi um dos primeiros portugueses a receber uma bolsa de estudo para estudar em Paris, no colégio de Santa Bárbara, regressando por poucos meses a Portugal com 19 anos. Seguiu posteriormente para a Universidade de Salamanca, acabando por rumar à Universidade de Toulouse. Leccionou depois na Universidade de Paris, na Universidade de Montauban e na Universidade de Coimbra. A convite de Dom João III, fez parte do corpo docente do Colégio das Artes.
Em 1550 foi preso pela Inquisição, acusado de luteranismo e suspeitas de ateísmo. Foi liberto ao fim de um ano, regressando ao Colégio das Artes e tornando-se seu director. Posteriormente tomou ordens religiosas.
[14] Traduzida em 1786 por Francisco de Andrade.
[15] Nasceu no Porto cerca de 1520, vindo a falecer em Vila Viçosa a 9 de Setembro de 1589. Fidalgo e poeta português a quem se atribuí rivalidade com Luís de Camões.
[16] Nasceu em Lisboa, em 1528, falecendo na mesma cidade em 29 de Novembro de 1569, vítima da peste. Devido ao cargo do pai, na sua educação, conviveu com os filhos do Duque Coimbra e com outras pessoas de grande relevância nobiliárquica.
Frequentou os cursos de Humanidades, na Faculdade de Letras e de Leis, na Faculdade de Leis da Universidade de Coimbra, onde se doutorou em Cânones na Faculdade de Cânones. Foi temporariamente professor na mesma Universidade. Escritor e humanista português, é considerado como um dos maiores poetas do classicismo renascentista de língua portuguesa. Em 1567, foi nomeado Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa.
[17] Nascido em Ponte da Barca, cerca de 1530 e falecido cerca de 1605. Terá muito novo ido viver para Lisboa, tendo posteriormente regressado a Ponte da Barca, onde foi tabelião. Além disso exerceu vários cargos nas cortes de D. Sebastião e de Filipe II.
[18] Luís Vaz de Camões terá nascido em Lisboa, cerca de 1524, sendo filho de Simão Vaz de Camões e Ana de Sá e Macedo.
Em 1527, durante uma epidemia de Peste, a corte transferiu-se para Coimbra, e a família de Camões também, vindo a estudar no colégio do convento de Santa Maria. Em 1537, a Universidade de Lisboa é transferida para Coimbra e Camões inicia o curso de Teologia que abandona em 1544, para ingressar no curso de filosofia. Por esses anos envolve-se num com um espanhol, que vence embora termine preso Camões acabaria perdoado, com a condição de ser desterrado durante um ano para Lisboa. Na capital atinge notoriedade como poeta mas concita intrigas para o seu afastamento da corte.
Para se ver livre de tais intrigas, em 1547, resolveu embarcar, como soldado, para a África, onde serviu dois anos em Ceuta e onde perdeu o olho direito.
Em 1549, regressou a Lisboa entregando-se a uma vida boémia desregrada. Em 1553, fere um empregado do paço, sendo preso por um ano.
Libertado, em 1554, embarcou para as Índias. Esteve em Goa, participou em expedições militares e foi nomeado provedor em Macau. Em 1556 partiu para Goa, mas sua embarcação naufragou na foz do rio Nekong.
Em 1569, resolveu regressar a Portugal, chegando a Cascais em 7 de Abril de 1570.
Em 1572 a sua obra “Os Lusíadas", passando a receber do rei D. Sebastião uma pensão de quinze mil réis.
Passando dificuldades económicas e doente morreu em Lisboa, no dia 10 de Junho 1580, na mais absoluta pobreza.
[19] Tarefa que, como vimos, D. Sebastião tinha atribuído a Diogo Bernardes.
Humberto Nuno de Oliveira
Historiador (doutor em História), co-Director da Revista Portuguesa de História Militar. Membro do Conselho Científico da Comissão Portuguesa de História Militar e da Direcção de História e Cultura Militar. Presidente da Academia Falerística de Portugal. Professor da Faculdade de História da Universidade Estatal Ucraniana - Dragomanov (Quieve). Cumpriu, como Miliciano, o Serviço Militar Obrigatório no Exército Português
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Como citar este texto:
OLIVEIRA, Humberto Nuno de – “Para servir-vos, braço às armas feito". A pulsão militar nos literatos do reinado D´“O Desejado". De Diogo de Teive a Luís de Camões. Revista Portuguesa de História Militar – Dossier: O reinado de D. Sebastião, a “perda de independência" e o período Filipino. [Em linha] Ano IV, nº 7 (2024); https://doi.org/10.56092/LNFN4897 [Consultado em ...].