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A ACÇÃO MILITAR DE 16 DE MARÇO: O TIRO DE PARTIDA

 

 

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Vitor Manuel da Silva Carvalho

 

 

 

 

Resumo

O golpe falhado de 16 de Março de 1974 foi o tiro de partida para a bem sucedida operação militar de 25 de Abril. O Regimento de Infantaria N.º 5, das Caldas da Rainha, foi a primeira unidade a desenvolver uma acção de força contra o regime. Que não foi bem-sucedida por falta de coordenação entre as várias unidades disponíveis para participar, com o RI 5 a ser o único a sair do quartel. Dela se retiraram ilacções, colheram ensinamentos e motivação acrescida para o Movimento decidir, pouco tempo decorrido, avançar para nova acção militar contra um regime que o não esperava em tão curto espaço de tempo decorrido.

Palavras-chave: Regimento de Infantaria N.º 5; MFA; Regime; acção militar.

 

Abstract

The failed coup of March 16, 1974 was the trigger for the successful military operation of April 25. Infantry Regiment No. 5, from Caldas da Rainha, was the first unit to develop forceful action against the regime. Which was not successful due to a lack of coordination between the various units available to participate, with RI 5 being the only one to leave the barracks. Lessons were drawn from it, lessons learned and increased motivation for the Movement to decide, shortly after, to move towards new military action against a regime that did not expect it in such a short space of time.

Keywords: Infantry Regiment N.º 5; MFA; Regime; Military Action.

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Imagem 1 – O Presidente da República, Dr. Mário Soares condecora o Estandarte Nacional do RI 5 com a insígnia de Membro Honorário da Ordem da Liberdade.

 

No final de Dezembro de 1973 ou Janeiro de 1974, o Brigadeiro Castro Serrano, 2.º Comandante da Região Militar de Tomar efectua, sem aviso prévio, uma inspecção operacional ao Regimento de Infantaria N.º 5 (RI 5), principalmente à Companhia Operacional, durante toda uma semana. No final, tendo corrido bem, fez um discurso elogioso. Mal sonhava, nem nós, o que estava para acontecer.

Os anos de 1973 e início de 1974 são de intensa actividade conspirativa na congregação de esforços, de união de grupos, de maneiras de ver e analisar a situação militar e política. Nesse sentido, é de realçar a reunião dos oficiais do quadro permanente oriundos de milicianos (QC/QP), em 4 de Novembro de 1973 na Quinta de Rio Alcaide (Porto de Mós). Nos dias 1 ou 2 de Março de 1974, na reunião de Oeiras em casa do Major Vitor Alves, dá-se a junção das Coordenadoras de Oficiais do Quadro Permanente (QP), ditos Puros, e dos (QC/QP), designados “Espuros", onde estão presentes o anfitrião, Majores Otelo e Hugo dos Santos e os Capitães Armando Ramos, Alberto Ferreira, Virgílio Varela, Pais de Faria e Andrade Moura. Já por mais de uma vez que os Generais Costa Gomes e Spínola haviam feito chegar que os dois Grupos tinham de se entender, sem esse entendimento nada feito e isso aconteceu nessa Reunião em casa de Vitor Alves.

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Imagem 2 – Placa na Quinta de Rio Alcaide.

 

A reunião de Cascais, a 5 de Março de 1974, foi a sequência lógica da Reunião de Oeiras, onde numa noite de intensos debates ficaram definidas as linhas orientadoras do que virá a ser o Programa do MFA. Na reunião em casa do Major Casanova Ferreira, a 12 ou 13 de Março de 1974, na Ajuda, com os Majores Otelo e Manuel Monge, o Capitão Virgílio Varela e eu, um Oficial da Região Militar do Norte e mais dois ou três, cujos nomes não recordo talvez um de cada Região Militar, concluímos que, com excepção do RI 5, as outras Unidades ainda não estavam “prontas". De qualquer forma, definimos Objectivos dentro de Lisboa, distribuímos Missões às Unidades, assentámos no Posto de Comando de Alternativa no Regimento de Cavalaria N.º 7 (RC 7). Alguém estranhou esta escolha, mas o Major Monge disse que o General Spínola lhe dissera que o Coronel Romeiras, comandante do RC 7, estava connosco, que a Ordem viria sempre da Comissão Militar e que a mesma seria confirmada presencialmente ao RI 5, pelo Capitão Armando Ramos, Otelo faria o mesmo à Escola Prática de Infantaria (EPI), o Major Casanova Ferreira à Escola Prática de Cavalaria (EPC) e o Major Monge a Cavalaria 7.

No dia 15 de Março de 1974, o RI 5 encontrava-se de prevenção rigorosa, com um terço do pessoal da Companhia Operacional, orgânica do Regimento, presente na Unidade. A Companhia Operacional era comandada pelo Capitão Luís da Piedade Faria, sendo o Tenente Silva Carvalho seu Adjunto. A Companhia tinha 3 Pelotões de Atiradores cada um com 1 Oficial subalterno, 3 Sargentos, 6 Cabos e 30 Soldados. Para além de todo o restante pessoal, oficiais, sargentos, soldados, não pertencentes à Companhia Operacional mas que estavam presentes por a mesma estar de Prevenção, da Companhia Operacional estava um terço da companhia, eu em representação do Comando com a Secção de Transmissões, Secção Sanitária, Secção Logística, Secção de Transportes e Secção de Alimentação e 1 Pelotão de Atiradores completo. Igualmente presentes na Unidade cerca de 100 instruendos do Curso de Sargentos Milicianos (CSM), 1.º Turno de 74[1], quase a Jurar Bandeira. Como eram de longe, normalmente não iam de fim-de-semana, vindo a ser englobados na Força.

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Imagem 3 – Escala de Serviço Extraordinário para 15 16Mar74.

 

Cronologia dos acontecimentos

Às 21h00 dizem-me para me dirigir à Porta de Armas, que está lá a minha mulher, que precisa de falar comigo (como tínhamos uma bebé, pensei que algo de grave tivesse acontecido, mas não, recebera um telefonema do Capitão Armando Ramos a pedir que me viesse avisar, “que era hoje e que vinha a caminho"). Nem queria acreditar no que ouvia, pois há dois dias que estava tudo atrasado, mas enquanto ele não chegava, pedi ao Oficial de Dia para desencadear as acções de Recolha de Pessoal residente na cidade, exercício que fazíamos com alguma frequência.

Pelas 23h00 chega o Capitão Ramos, que me diz que a acção vai ser desencadeada naquele dia, apresentando um croqui com o Aeroporto de Lisboa e que às 07h00 seria a hora H de assalto, pelo que teríamos de nos apressar, uma vez que as unidades do Norte já vinham a caminho! Ainda lhe perguntei, “não estás a brincar, pois não? É que a malta foi de fim-de-semana e só cá está o pessoal de serviço e pouco mais".

Entretanto haviam começado a chegar oficiais e sargentos que tínhamos ido buscar a casa, decidindo-se fazer uma reunião na caserna da 4. ª Companhia, uma reunião restrita onde o Capitão Armando Ramos nos explica a mim e aos Capitães Faria, Gil e Varela o que se estava a passar. Informou que a Comissão Militar, com os Majores Otelo, Casanova e Monge e o Capitão Armando Ramos, estava reunida em casa deste quando receberam uma chamada telefónica do Capitão Ferreira da Silva, de Lamego, a dizer que se haviam revoltado contra o Comandante da Região Militar do Norte e iam marchar … na altura não percebi se era sobre o Porto, se sobre Lisboa. Mais tarde disseram-me que seria sobre o Porto. Face a isto, a Comissão Militar decidira desencadear de imediato toda a operação. A Ordem vinha donde sempre me disseram que viria, veio confirmá-la quem sempre nos havia dito quem seria, não tinha motivos para desconfiar, afinal já andara na guerra, planeara operações, comandara homens em combate, já tinha visto e vivido tanta coisa mas ainda assim tudo isto me parecia surpreendente.

Às 24:30h desencadeámos a acção para neutralizar o Comando. Junto com o Capitão Varela subi ao edifício do Comando, enquanto outros camaradas (Tenentes Lucas, Mendes, Carvalhão e Rocha Neves) nos faziam a segurança, de armas na mão. Toquei à porta do gabinete do comandante e apareceu-nos o 2.º comandante, Tenente-Coronel Farinha Tavares. Ao verificar que o Comandante não estava, o Capitão Varela ficou a falar com o 2.º comandante e eu corri para o quarto do Comandante ao fundo do corredor. Toquei à porta e ele apareceu em pijama. Fiz continência e pedi para que me acompanhasse, perguntando se podia fardar-se. Anui e esperei que se vestisse (não me pareceu muito surpreendido, o que estranhei).

O Comandante “apresentara-se" na Unidade naquela tarde, uma tarde anormalmente quente, e sob formatura na Parada principal pregara a toda a Unidade um grande discurso, mais parecia uma “prachadela", onde falou de disciplina, lealdade e não sei que mais pois, às tantas, já nem o ouvia. De facto tudo sucedia de modo tão surpreendente e tão rápido.

O Capitão Varela ficou no gabinete a falar com os comandantes a tentar convencê-los a aderir ao Movimento. O novo Comandante, Coronel Horácio Loureiro Lopes Pinheiro, até lhe disse que era amigo do General Spínola, mas não conseguiu que eles lhe dissessem que aderiam, pelo que ficaram sob prisão. Assim, a partir daquele momento, o Capitão Virgílio Varela assumiu o Comando da Unidade.

Entre as 03h00 e as 04h00, contactei vários camaradas em Leiria, Mafra, Academia Militar, Vendas Novas e, por incrível que pareça, disseram-me que iam cumprir a missão que lhes estava destinada, excepto Vendas Novas, onde falei com o Capitão Duarte Mendes, que disse estar praticamente sozinho na Unidade, pelo que não poderíamos contar com a EPA. Por fim contactei o RC 7, na Ajuda, onde supostamente funcionaria o Posto de Comando de Alternativa e pensava falar com o Major Monge. Não o tendo encontrado, pedi para falar com o Coronel Romeiras, que nunca apareceu ao telefone, pelo que desliguei. Só muitos meses depois soubemos que alguém enganara o General Spínola, pois o Coronel Romeiras não estava connosco.

Enquanto estive nesta acção de neutralização do Comando e de contactos telefónicos, o Capitão Armando Ramos efectuou na Sala de Oficiais uma reunião com todos os Oficiais e Sargentos, explicando o que se estava a passar e logo ali o pessoal foi enquadrado e dadas missões conforme a Ordem de Operações. Quando entro na Sala de Oficiais a efervescência era muita. Aproximam-se o Capitão Ramos e o Capitão Faria que me diz: “com o pessoal que temos na Unidade conseguimos organizar uma força, vai ser uma força muito especial, pois até terá oficiais e sargentos a fazer de soldados, bem como instruendos do CSM (Curso de Sargentos Milicianos), uma vez que os poucos soldados presentes são os do Pelotão de Atiradores da Companhia Operacional e vai ser assim organizada":

  • Grupo da frente, sob o Comando do Capitão Gil,
  • Grupo do meio, sob o Comando do Capitão Freitas,
  • Grupo da rectaguarda sob o comando do Capitão Faria.
  • Com o restante pessoal, o Varela e o Oficial de Dia organizaram a defesa do Aquartelamento e mantiveram a Unidade em funcionamento.
  • Para coordenar os 3 Grupos foi escolhido o Capitão Armando Ramos. Para seu adjunto e para fazer a ligação entre todos nós (o Capitão Ramos não era Oficial do RI 5), fui eu o escolhido, Tenente Silva Carvalho!


Eramos todos oficiais com experiencia de comando de tropas, incluindo em combate, todos louvados e condecorados. À época, todas as Companhias, mesmo as de Instrução, tinham nas suas arrecadações armas e munições, por isso todas tinham quarteleiros em permanência. Ainda assim houve necessidade de ir ao Paiol munições, o que foi possível com o contributo, se não me falha a memória, do Tenente Montalvão, que era quem tinha as chaves.

Na frente de toda a coluna segue a viatura com o pessoal que vai entrar no aeroporto, onde me integro com o Capitão Armando Ramos. Ocupámos lugar na cabine da viatura do Pelotão de Atiradores da Companhia Operacional, que era a primeira da coluna e fui eu, que quando o Faria me fez sinal que estava todo o pessoal dentro das viaturas, dei ordem ao condutor para arrancar e a coluna e iniciar a marcha. A coluna transportava armamento pesado e ligeiro, mantimentos, combustível e munições para aguentar três dias nas posições. Cada comandante organizou e formou o seu grupo armou, municiou, distribuiu viaturas e mandou embarcar.

O objectivo era dominar a segurança que exista e obrigar a Torre de Controlo a desviar os aviões e encerrar o aeroporto. Os restantes grupos à entrada de Lisboa divergiriam e cercariam toda a área circundante do aeroporto, isolando-o.

Às 04h00 passámos a Porta de Armas a caminho de Lisboa.

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Imagem 4 – Livro de banda desenhada sobre a Revolta das Caldas com imagem da coluna a passar pela Porta de Armas.

 

Eram 05h30 quando no Carregado uma coluna da GNR em grande velocidade, no sentido Sul-Norte, cruza-se connosco. Toda a estrada era por nós ocupada, não deixando que qualquer viatura nos ultrapassasse o que motivava uma fila enorme de viaturas atrás de nós.

Depois, às 06h00 entramos na auto-estrada e, a 3-4 km da portagem, eu, que ia a pensar como é que iria desenvencilhar-me dentro do aeroporto, pois não se fizera qualquer reconhecimento, sou desperto com gritos do Capitão Ramos Armando que o condutor parasse, pois avistara do outro lado da estrada, no sentido Sul/Norte, uns paisanos a fazer-nos sinais. Eram os Majores Casanova Ferreira e Manuel Monge. O Capitão Ramos foi falar com eles e, ao regressar, diz-me que temos de retroceder, pois “a coisa tinha falhado", dado que as outras unidades não tinham aderido. Atravessamos o separador da auto-estrada e toda a coluna inverteu a marcha de regresso às Caldas da Rainha.

A tristeza foi enorme, estávamos prestes a atingir o objectivo e, àquela hora, ainda não havia quaisquer tropas adversas na zona da portagem, o que havíamos confirmado uns minutos antes, ao contrário do que veio a dizer o Governo e muitos ainda hoje dizem. Não, àquela hora ninguém nos esperava na portagem.

O Major Otelo, incumbido de ir a Mafra, onde chegou mas não encontrou ninguém, pois o pessoal estava em exercícios de campo, resolveu ir ao encontro dos Majores Casanova e Monge, mas quando chega à zona da portagem encontra GNRs. Recua, desaparecendo dali.

Entretanto, a coluna da GNR, que pouco antes se cruzara connosco, passa de novo em grande velocidade, agora em direcção a Lisboa. Parecia um “jogo de gato e rato".

Às 08h00, à saída da auto-estrada em Vila Franca, uma Força da GNR, comandada pelo Tenente Sebastião, fez-nos sinal para parar. O Tenente diz que os seus chefes queriam saber quem comandava a coluna e o que é que se passava. O Capitão Ramos disse-lhe que os seus chefes não eram os nossos e que era melhor ele sair dali, pois estava quase a ficar entalado entre nós e a força de cavalaria que vinha pela Ponte, apontando para a Ponte Marechal Carmona sobre o Tejo. O Tenente da GNR insistia em perguntar quem estava a comandar a força, até que ele lhe responde que é um Major e prosseguimos a marcha para Caldas[2].

Pelas 09h00 passámos a ser sobrevoados por um avião.

Às 10h30 chegada ao RI 5. Fui a casa, pois morava perto, arrumei os papéis e panfletos comprometedores, entreguei-os à minha mulher e disse-lhe para partir para casa do meu pai, em Porto de Mós, onde ele deveria esconder toda a papelada, a que ninguém poderia aceder, recomendando-lhe que ficasse por lá. De regresso ao quartel, telefonei para Lamego, falando com o Capitão Bordalo Xavier. Disse para irmos para Norte, que virão outros ao nosso encontro na região da Bairrada, mas colocados ao corrente da situação, os Majores Casanova e Monge agradecem, mas respondem que não.

O cerco ao RI 5 inicia-se pelas 14h00, montado com a ajuda de meio aéreo e forças do RI 7, RI 15, EPC, Polícia Móvel, GNR e PIDE, sob o Comando do Brigadeiro Castro Serrano.

A determinada altura, a sentinela na guarita junto à Sala do Soldado comunica ao Sargento da Guarda que há um militar do lado de fora a pedir que chame o Tenente Silva Carvalho. O Capitão Faria diz-me para ir ver o que se passa. Era o Capitão Fernando Ramos do RI 2 (Abrantes). Estivéramos reunidos naquela semana ou na anterior, a dizer que se quiséssemos fugir que o poderíamos fazer por aquele lado.

Até cerca das 16h00, decorrem conversações entre o Brigadeiro Serrano, do lado de fora do portão principal do aquartelamento, e os Majores Casanova Ferreira e Manuel Monge, do lado de dentro. Só nos rendemos quando vimos que a Comunicação Social entretanto chegara.

5. Brigadeiro Serrano no exterior.jpg6. Major Casanova dialoga com Brigadeiro.jpg

Imagens 5 e 6 – O Brigadeiro Castro Serrano do lado de fora da Porta de Armas / Major Casanova Ferreira a dialogar com o Brigadeiro Serrano.

 

Às 17h00, o Brigadeiro Serrano e os Majores que o acompanhavam entram no aquartelamento. Os Oficiais do RI 5, de Alferes para cima, são detidos na Biblioteca, de Alferes para baixo na Casa de Oficiais, Sargentos e Soldados no Refeitório Geral.

Enquanto aguardávamos a chegada à Biblioteca do Brigadeiro Serrano, o Major Casanova, na tentativa de minorar as consequências do acto, disse que quando fossemos interrogados para se dizer que se tratou de uma Manifestação de Desagravo aos Generais Costa Gomes e António de Spínola pelo facto de terem sido demitidos. Assim fizemos.

São 19h00 quando é efeito o arrolamento de todo o material de guerra pertencente ao RI 5, sendo colocado na Parada e, posteriormente, levado para fora do Quartel.

Eram 20h00 quando o Brigadeiro Serrano entra na Biblioteca, acompanhado dos Comandantes do RI 5 e dos “seus" Majores, referindo: “congratulo-me pela maneira como se renderam, pois se assim não tem acontecido não teria qualquer hesitação em bombardear o Quartel. Lamento que numa Unidade, pela qual tenho um apreço especial, se tenha passado um caso destes. Espero que os senhores reflitam na insensatez do acto e saibam suportar as consequências".

A partir das 21h00, um a um, conduzidos ou pelos Comandantes ou pelos Majores e sob apertadíssima vigilância armada, fomos conduzidos a um autocarro que nos aguardava junto ao Átrio do Comando: a segurança dentro do autocarro é assegurada pelo Tenente-Coronel Peres Brandão, junto ao condutor, ao lado deste, virado para nós, sempre de pé até chegarmos a Lisboa e com munição na câmara da pistola; mudou um oficial mais corpulento, que estava nos lugares da frente por outro mais franzino; à retaguarda ia um Major também armado; este autocarro foi sempre escoltado por viaturas militares e pela PIDE.

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Figura 7 – Ordem de Serviço da DGS mº 94 de 4 de Abril de 1974, louvando os agentes envolvidos na detecção do golpe de 16 de Março.

 

Chegada ao Regimento de Artilharia de Lisboa (RAL 1) pelas 23h00, onde ficam a maior parte dos oficiais.

Já no dia 17 de Março, à 01h00, chegada do autocarro à Prisão da Trafaria com os Majores Casanova e Monge, os Capitães Ramos e Varela e Tenentes Garcia e Silva Carvalho. Já lá encontrámos o Tenente-Coronel Almeida Bruno e os Majores Farinha Ferreira e Pita Alves (não me recordo se já lá estava ou veio depois). Três ou quatro dias depois, juntaram-se a nós, vindos do RAL 1, os Capitães Faria, Gil e Freitas.

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Imagem 8 – Oficiais envolvidos no golpe das Caldas presos na Trafaria.

Em pé da esquerda para a direita: Major Casanova Ferreira, Tenente-coronel Almeida Bruno, Major Manuel Monge, Capitão Armando Ramos, Tenente Silva Carvalho e Tenente Ivo Garcia.

Em baixo da esquerda para a direita: Capitão Pita Alves, Capitão Gil, Capitão Virgílio Varela, Capitão Fortunato Freitas e Capitão Piedade Faria.

 

Uns dias antes do 25 de Abril, penso que foi o Major Casanova, “obrigou" o Capitão Varela a ir ao barbeiro da prisão. Então, o barbeiro comunica-lhe que o seu compadre pede que o informe que estarão juntos no dia do seu aniversário. O compadre era o Capitão de Cavalaria Alberto Ferreira, na altura colocado em Estremoz, o Capitão Varela fazia anos a 28 de Abril.

Na Prisão não tínhamos visitas. O General Spínola tentou visitar-nos mas foi impedido. Cortaram-nos o vencimento, mas ele fez saber para não nos preocuparmos, que o dinheiro que recebesse pela venda do livro «Portugal e o Futuro» seria para distribuir por nós (felizmente não foi preciso).

Refira-se que não tínhamos notícias sobre o que se passava no exterior. Entretanto alguém descobriu que o regulamento da prisão permitia que o preso pudesse casar lá dentro. Como o Capitão Varela andava para casar quando foi preso, “obrigámo-lo" a casar, para sabermos notícias do que se passava no exterior. Ele bem esperneou, mas casou, e o Tenente-coronel Almeida Bruno foi o padrinho.

Na manhã de 25 de Abril de 1974, uma força da Escola Prática de Artilharia (EPA) comandada pelo Capitão Mira Monteiro, liberta-nos do Forte da Trafaria e conduz-nos para o Monumento do Cristo-Rei, sendo aplaudidos por milhares de pessoas neste percurso, o que muito nos surpreendeu àquela hora. Pouco depois, eu e o Capitão Varela somos contactados do Posto de Comando do MFA para irmos para o Quartel-General da Região Militar, em São Sebastião da Pedreira, ajudar a coordenar a movimentação de forças naquela zona. Os Majores o Casanova Ferreira e Manuel Monge e Capitão Armando Ramos penso que foram para a Cova Da Moura. Em S. Sebastião da Pedreira rendi, ainda no dia 25 à tarde, o Capitão Mendonça Frazão, sendo rendido pelo Tenente Marques Júnior, no dia 27 ou 28.

A 28 de Abril, integrado numa força da EPC, cujo nome do comandante me não recordo, escoltei um Coronel (Cor Morais (?), Videira (?)), que ia exercer o Comando da Região Militar de Tomar. Chegámos a Santarém noite alta, comemos qualquer coisa e integrados numa outra coluna da EPC, comandada pelo Capitão Cadavez, manhã cedo estávamos em Tomar. Para nosso espanto, a segurança do Quartel-general pareceu querer enfrentar a força de Cavalaria, que teve de apontar o canhão de um dos carros. Tudo acabou sem problemas de maior, só que o General não estava no Quartel. Diz-me o Capitão Cadavez, vai lá buscar o General, já estás habituado a prender comandantes … e lá fui eu. Estava numa vivenda ali perto, fardado e à espera. Cumprimentei-o e acompanhou-me sem problema algum. Ao final da tarde, na viatura cedida pelo novo Comandante da RMT, chego finalmente ao RI 5 e junto da minha mulher e da minha filha.

Em conclusão, o 16 de Março de 1974, embora involuntariamente contribuiu para unir ainda mais o MFA, para extrair ensinamentos, corrigir e evitar erros, para convencer quem ainda estivesse com dúvidas, para apressar todo um Movimento, foi como que um empurrão e, não menos importante, desequilibrar emocionalmente os adversários e dar Ânimo, Força, Esperança a toda uma sociedade, que andava triste e de braços caídos, fazendo renascer a esperança.

A partir daquele momento, toda a gente ficou a saber que era uma questão de dias. Como foi.

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Imagem 9 – Monumento evocativo do 'Golpe das Caldas', inaugurado a 24 de Março de 2018.


 

NOTAS

[1] Estes ex-militares, que após o 16 de Março foram distribuídos por todas as Unidades do País, possuem a particularidade de terem "passado" para além do 16 de Março, pelo 25 de Abril, 28 de Setembro, 11 de Março e 25 de Novembro.

Este 1º Turno de 74 reúne-se todos os anos no mês de Janeiro. Este ano celebrou o 50.º aniversário na sua antiga Unidade, hoje Escola de Sargentos do Exército (ESE). Na ocasião o Brigadeiro Monge esteve presente e ofereceu àqueles ex-militares a sua insígnia da Ordem da Liberdade, após ter dado prévio conhecimento a S. Exa. o Presidente da República, que passou a ficar exposta na Biblioteca da Escola, como agradecimento e reconhecimento pelo contributo prestado à Causa da Liberdade.

[2] Quando umas semanas depois fomos ouvidos em auto na Prisão da Trafaria, os oficiais averiguantes a todos nós perguntaram quem era o Major que comandava a Força e até nós prisioneiros, andávamos intrigados com a pergunta, pois na coluna não havia Major nenhum. Já muito depois do 25 de Abril, soubemos que a confusão resultara daquela boca do Capitão Armando Ramos para o Tenente Sebastião da GNR quando disse que era um Major que a comandava.​

Vitor Manuel Silva Carvalho

Coronel na Reforma, fez o Curso de Oficial Miliciano em Mafra e de Infantaria na Academia Militar. Cumpriu comissão de serviço na Guiné e foi, desde a primeira hora, elemento activo do “Movimento dos Capitães". Como Tenente, foi Adjunto do Capitão coordenador da coluna militar que, em 16 de Março de 1974, se sublevou no Regimento de Infantaria 5, nas Caldas da Rainha, e avançou sobre Lisboa. Afastou-se do MFA após o 11 de Março de 1975.

Posteriormente exerceu funções de instrução, ensino, comando e de Estado-Maior.

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Como citar este texto:

CARVALHO, Vitor Silva – A Acção Militar De 16 De Março: O Tiro De Partida. Revista Portuguesa de História Militar - Dossier: 25 de Abril de 1974. Operações Militares. [Em linha] Ano IV, nº 6 (2024); https://doi.org/10.56092/LHYB6319 [Consultado em ...].


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