A MARINHA E A PARTICIPAÇÃO NO 25 DE ABRIL

Manuel B. Martins Guerreiro
Resumo
Caracterização da Marinha: tradição, cultura, organização, missões e efectivos de oficiais em Dezembro de 1973. Desde 1970, jovens oficiais de Marinha oriundos da Escola Naval organizam um movimento sócio-profissional e uma estrutura política que veio a desembocar no 25 de Abril de 1974. Assinala-se em especial as decisões e compromissos assumidos na reunião de 130 oficiais na velha sede do Clube Militar Naval no Marquês de Pombal.
Palavras-chave: Marinha; Escola Naval; Clube Militar Naval; 25 de Abril de 1974.
Abstract
Characterization of the Navy: tradition, culture, organization, missions, and officer numbers in December 1973. Since 1970, young Navy officers from the Naval Academy have organized a socio-professional movement and a political structure that came to fruition on the 25th of April 1974. Particular note is made of the decisions and commitments made at the meeting of 130 officers at the old headquarters of the Clube Militar Naval in Marquês de Pombal.
Keywords: Navy; Naval School; Naval Military Club; April 25, 1974.
Para abordarmos o tema e melhor entendermos o que foi a atuação e participação do movimento de oficiais de marinha, nomeadamente os mais jovens, interessa evidenciar em traços largos algumas das características da marinha: tradição, cultura, organização e efetivos de oficiais no início de 1974.
1. Introdução, formação e cultura
A Marinha é o mais antigo ramo das Forças Armadas, dispõe, desde D. Dinis (1317) de uma estrutura e meios permanentes de âmbito nacional com ligação e dependência direta do rei de Portugal.
O mar, meio onde a Marinha opera, apresenta por vezes características de grande hostilidade e perigo, dificultando por si próprio a execução das normais tarefas profissionais, aumentando os riscos e os obstáculos. Porque constitui um meio hostil, exige uma adaptação e aprendizagem específicas, relativamente morosas: aquisição de indispensáveis capacidades técnicas, desenvolvimento e aprofundamento de aptidões, perícias e qualidades necessárias ao exercício das múltiplas tarefas no mar. A segurança das pessoas e do navio, os riscos e o perigo da vida no mar, a complexidade tecnológica dos meios e armas navais, obrigam a uma apurada formação, estudo e treino para se enfrentar o mar, navegar e cumprir as missões com clara consciência de que o mar sulca-se mas não se vence.
A vida a bordo nas unidades e em terra e a natureza da profissão obrigam à assimilação e ao desenvolvimento duma linguagem própria e de uma cultura específica tendente a reduzir ou limitar os fatores de erro, valorizando aptidões e capacidades de cooperação, estudo, integração de esforços e sentido do coletivo, indispensáveis à operacionalidade e segurança dos navios. É fundamental a qualidade na preparação e na execução, é preciso fazer «Bem Feito» talant de bien faire o que obriga ao estudo apurado, à preparação cuidada, ao treino continuado e a uma correta avaliação dos riscos e perigos a enfrentar.
A Marinha e os seus profissionais erigiram ao longo dos tempos um património material e imaterial caracterizado por uma dimensão cultural imbuída de valores de serviço à pátria, à sociedade e às comunidades específicas a que pertence.
O navio, o mar e os grandes horizontes imprimem traços indeléveis no nosso comportamento, formas de atuação, modos de encarar e agir perante factos concretos. O mar é muito variável, temos de saber construir com ele uma relação permanente para o bom e para o mau tempo, prevendo o melhor e o pior. Hoje o desenvolvimento científico e tecnológico, a capacidade de previsão rigorosa e a informação instantânea, bem como a construção de plataformas que podem navegar e em certos casos substituir os navios, vão com certeza modificar em parte a cultura, valores e formas de estar dos profissionais do mar e, sem dúvida, reduzir o seu número, isso será no futuro, a transformação será relativamente lenta, mantendo sempre alguns traços essenciais.
Muitos dos elementos que marcam a cultura das gentes do mar continuam inteiramente válidos, são valores quase intemporais, como o trabalho de equipa, o estudo sempre necessário, a preparação prévia e o planeamento; estes são também valores fundamentais para a construção de sociedades mais livres, democráticas, colaborativas, participativas e solidárias. A formação dos marinheiros é um elemento essencial, não se nasce marinheiro. A necessidade da formação está enraizada desde sempre em toda a Marinha. Essa é uma preocupação permanente, disso depende o êxito das missões e mesmo a sobrevivência das pessoas e dos navios. No mar não se improvisa, mesmo em situações imprevistas. No mar não se correm riscos desnecessários, já bastam os que temos obrigatoriamente de enfrentar. Não se dispensa o estudo anterior, o rigor, a experiência e o treino intenso, não se pode dispensar uma formação devidamente qualificada. A par da evolução da transmissão do conhecimento científico e técnico, indispensável sempre que se obtenham novos meios, existe a permanência de práticas semelhantes consubstanciadas nos valores a transmitir e na tradição naval a assimilar, por isso as Marinhas utilizam como Navios-Escola velhos veleiros.
Os homens do mar aprendem a fazer bem feito, o que obriga a muito estudo prévio, preparação, planeamento, cuidado na execução e saber correr riscos, não se expondo e aos seus colaboradores a riscos desnecessários ou evitáveis.
2. Organização, meios navais e efectivos
Até ao 25 de Abril de 1974, o Ministério da Marinha, além da Armada (marinha militar) englobava também o Fomento e Autoridade marítima, a Marinha mercante, as Pescas e a Marinha de recreio. Até à II Guerra mundial a Armada era sobretudo uma Marinha de tipo colonial com Avisos de primeira e segunda classe, navios adequados a fazer estação em longas comissões nas colónias em missão de soberania.
A entrada de Portugal na NATO em 1949 obrigou a um salto tecnológico e sobretudo operacional, novas doutrinas e táticas, nova logística de meios e recursos com reorganização de comandos e estruturas. O início da guerra colonial em 1961 impõe uma nova adaptação sem questionar a anterior, nem subalternizar a ligação operacional à NATO, continuámos a participar nos diferentes exercícios NATO e a estudar e aplicar a sua doutrina e táticas.
Desde 1958 que o poder político e as Forças Armadas portuguesas estavam conscientes do problema colonial e da ocorrência de uma possível guerra, começaram a preparar-se para isso ainda que de forma e intensidade variável.
Como a NATO impunha limitações e não permitia a utilização em África das fragatas classe Pereira da Silva construídas em Portugal com apoio americano a partir de um seu projeto de fragatas da classe Dealey, a Marinha portuguesa teve de encontrar alternativas e reorganizar a sua estrutura de comandos navais e zonas marítimas que ligavam em continuidade Portugal continental ao Ultramar: Comando Naval do Continente, Comando Naval dos Açores, Comando Naval de Cabo Verde e zona marítima da Guiné, Comando Naval de Angola e Comando Naval de Moçambique, criando uma ligação permanente de comunicações estratégicas que serviam todo o Governo nacional através das estações radionavais no continente europeu e nos diferentes comandos navais, ligando-se também a Macau e Timor.
Portugal assinou com a França e a República Federal Alemã contratos de construção de novos navios aptos a operar nas colónias e adequados à guerra colonial, em especial as corvetas da classe João Coutinho, concepção da engenharia naval portuguesa. Com a França foi assinado um contrato em 1964 para a construção de quatro fragatas Comandant Rivière, a nossa classe João Belo, e quatro submarinos classe Albacora. Foi criada uma missão em Nantes para construção dos referidos navios, entregues e aumentados ao efetivo entre os anos 1967 e 1969. Interessa assinalar que todas as guarnições desses navios – a lotação das fragatas era de duzentos homens e a dos submarinos de cinquenta, perfazendo um total de mil homens – passaram em França vários meses para fazer as provas de bordo e de mar, antes de receberem os navios, apercebendo-se naturalmente da grande diferença de situações políticas, económicas e sociais que se vivia em Portugal e em França; o mesmo se passou com os cerca de três centenas de homens que passaram pela Alemanha para receber as corvetas classe João Coutinho.
Portugal fez com a República Federal Alemã um contrato de construção de seis corvetas da classe João Coutinho, sendo constituída para o efeito uma missão em Hamburgo. Estes navios concebidos pela engenharia naval portuguesa foram construídos três na Alemanha, entregues em 1970 e 1971, tinham uma lotação de 97 homens e capacidade para alojar uma força de desembarque- tipo pelotão.
3. Meios navais, unidades de fuzileiros e mergulhadores
Além dos meios oceânicos referidos, as 4 fragatas classe João Belo e as 6 corvetas classe João Coutinho, a Marinha desenvolveu um intenso programa de construção nos estaleiros nacionais de Viana do Castelo, Arsenal do Alfeite, Mondego e São Jacinto: 10 navios patrulha classe Cacine; 10 Lanchas de fiscalização grandes classe Argos; 24 lanchas de fiscalização pequenas das classes Bellatrix 11, Júpiter 7, Alvor 3, Dom Aleixo 2. e Rio Minho 1; 6 Lanchas grandes de desembarque, 4 classe Alfange e 2 classe Bombarda; 57 Lanchas de desembarque médias de diversas classes e 25 Lanchas de desembarque pequenas.
No início de 1974, a Marinha dispunha dos seguintes meios navais:
- 8 Fragatas: a Pero Escobar, 3 classe Pereira da Silva e 4 classe João Belo;
- 6 Corvetas João Coutinho;
- 4 Submarinos Albacora;
- 16 Navios patrulha: 6 classe Porto Santo e 10 classe Cacine;
- 15 Draga-minas: 3 oceânicos classe São Jorge;
- 12 Costeiros: 8 classe Ponta Delgada (3 desarmados), e 4 classe São Roque;
- 14 Lanchas de fiscalização grandes: 4 classe Azevia no continente e 10 classe Argos em comissão na Guiné e Angola;
- 25 Lanchas de fiscalização pequenas;
- 6 Lanchas de desembarque grandes: 4 Alfange e 2 Bombarda;
- 36 Lanchas de desembarque médias: 16 classe 101, 17 classe 401, 2 classes 304 e 309 e 1 classe 204; 22 Lanchas de desembarque pequenas: 3 classe 105, 16 classe 201 e 3 classe 301;
- 22 Lanchas de desembarque pequenas: 3 classe 105, 16 classe 201 e 3 classe 301;
- 5 Navios hidrográficos: Carvalho Araújo e Afonso de Albuquerque no continente, Almeida Carvalho em Angola, Pedro Nunes na Guiné e Almirante Lacerda em Moçambique;
- 2 Lanchas hidrográficas: Mira e Cruzeiro do Sul;
- 3 Navios diversos: Navio Escola Sagres, Navio balizador Schultz Xavier, petroleiro São Gabriel;
- 3 Navios desarmados: 1 de apoio logístico São Rafael, 2 navios depósito: Santo André e São Cristóvão;
- Unidades de fuzileiros: 13 companhias e 15 pelotões independentes; 15 Destacamentos especiais, sendo 2 guineenses; - Unidades de mergulhadores sapadores; 2 Destacamentos e 2 secções.
Relativamente a efectivos, a Marinha dispunha no final de 1973 de cerca 18.500 elementos repartidos pelo continente europeu e ilhas, pelos organismos e instalações em terra dos diferentes Comandos Navais e Zonas marítimas e pelas guarnições dos meios navais operando no continente e nos teatros africanos. No total. a Marinha tinha em permanência em África cerca de uma centena de unidades navais: dos meios oceânicos às lanchas de fiscalização e desembarque - grandes, médias e pequenas.
As lanchas na Guiné desempenharam tarefas de grande importância, quer no combate directo quer na logística militar. Nos 13 anos de guerra a Marinha criou: 45 companhias de fuzileiros – 21 para Angola, 13 para Moçambique e 11 para a Guiné; 62 destacamentos de fuzileiros – 17 operaram em Angola (Leste e Zaire), 26 na Guiné e 19 em Moçambique (Niassa e Norte); havia também pelotões independentes em Cabo Verde, Angola e Moçambique.
Os efectivos de pessoal embarcado e dos fuzileiros nos 3 teatros de operações era semelhante, ligeiramente maior nos embarcados, que rondavam os 2.000 efectivos, além do pessoal em terra nos diferentes comandos e instalações navais, com um total a rondar os 5000 e os 6000. Importa indicar que a Marinha criou nos três teatros de operação oficinas navais e instalações fabris para a manutenção, reparação e docagem dos seus meios navais, mantendo todos os serviços de Marinha da farolagem às capitanias de portos
4. Efectivos de oficiais no fim de 1973
Definidos e caracterizados os meios navais e os efectivos da Marinha em finais de 1973, assinalamos os dos oficiais do quadro permanente nessa época, sobretudo os oriundos da Escola Naval – são esses que participam no Movimento que se tinha criado na Marinha desde 1968 e que se articulará em 1973 e 1974 com o Movimento dos Capitães.
Oficiais oriundos da Escola Naval são 954; do Serviço geral 279; e do Serviço Especial 63, sendo 10 fuzileiros. Existiam também 17 oficiais do recém-criado quadro de fuzileiros.
No total a Marinha dispunha de 1407 oficiais do quadro permanente em serviço, incluindo médicos e farmacêuticos, o que não preenchia o total dos quadros de 1505, dado que se criaram muitos lugares de adidos, em particular nos serviços de Marinha e fora da Marinha. O número de oficiais superiores ultrapassava o do quadro da classe de Marinha em 87 elementos. Por sua vez, existia a falta de 123 (30%) de oficiais subalternos: segundos e primeiros-tenentes oriundos da Escola Naval, os que mais embarcavam, comandavam unidades navais oceânicas de menor deslocamento ou unidades de fuzileiros.
A Marinha desde 1958 recorreu a oficiais milicianos da reserva naval, sendo que em Dezembro de 1973 os seus efectivos eram de 428 elementos, dos quais 196 eram fuzileiros. Estes oficiais deram um contributo muito significativo nos Navios patrulha, nas Lanchas de fiscalização, em especial no comando das pequenas lanchas, como técnicos especialistas e, sobretudo, nas unidades de fuzileiros.
Os oficiais subalternos oriundos da Escola Naval que integram o movimento da Marinha são da ordem de 40% dos existentes, percentagem bastante significativa, que tem muito a ver com a longa maturação do nosso movimento, as diferentes formas e a natureza da nossa actuação.
5. Início da mudança, desassossego dos anos sessenta
Nos anos sessenta começou a manifestar-se entre os jovens oficiais de Marinha (Escola Naval) um claro descontentamento e insatisfação profissional, quer pela obrigatoriedade de alguns serem forçados a ingressar na especialidade de fuzileiro, que não existia nem estava prevista quando da sua admissão à Escola Naval, quer pela comparação entre os nossos padrões profissionais ou de desempenho e os de outras marinhas da NATO. Esse descontentamento encontrou expressão e manifestou-se através de pedidos individuais de saída da Marinha, que ultrapassaram as seis dezenas. Em 1968, nas reuniões no Clube Militar Naval concorrem duas listas aos Corpos Sociais e, em 1970, constituiu-se e foi aprovada em Assembleia Geral uma Comissão Cultural independente e autónoma relativamente à Direcção.
Por outro lado, os mais jovens oficiais de Marinha e cadetes da Escola Naval sentiram e viveram muito o ambiente e as lutas académicas de 1969 e a repressão que se lhes seguiu, até porque muitos deles também frequentavam ou tinham frequentado a universidade. Quando em Janeiro de 1970 iniciámos a organização do movimento dos jovens oficiais, existiam duas sensibilidades: a dos que tinham ingressado na Escola Naval até ao início dos anos sessenta e a dos que entraram depois, já com a guerra em curso. Nos primeiros a insatisfação e a frustração eram mais de natureza profissional e social, ainda que também tivesse base e sustentação política; nos segundos a insatisfação era de natureza e características contestatárias, mais sintonizada com a juventude académica em geral, assumindo expressões de clara contestação ao regime e à guerra colonial.
6. Criação do Movimento dos jovens oficiais de Marinha – sua natureza
Para articular as duas sensibilidades dos oficiais subalternos, dar-lhes força e capacidade de influência era necessário acertar ideias, estabelecer metas e objetivos, criar uma estrutura, elaborar um programa e usar formas de deliberação adequadas que todos aceitassem e respeitassem. Foi o que fizemos, tendo assim surgido o movimento dos jovens oficiais de Marinha, com dois objetivos claramente definidos e aceites:
- De natureza profissional – de bem servir o País e dignificar a Marinha –, que encontrava a inspiração nos Estatutos do Clube Militar Naval;
- De natureza claramente política – contribuir para o derrube do regime e a construção de uma sociedade mais justa e solidária, que se inspirava nos ideais republicanos e socialistas.
Estes dois objectivos eram inseparáveis e permitiram a correcta articulação e mútua integração das duas sensibilidades que se manifestavam contra a situação existente. Para a definição das nossas linhas e formas de actuação estudámos cuidadosamente a nossa história e cultura e os meios e possibilidades existentes, estabelecemos linhas claras e praticámos formas de deliberação democráticas específicas que viabilizaram a convergência dos esforços e contributos de todos para a libertação do país e do povo da situação de guerra, da ditadura, do atraso económico e do isolamento cultural e internacional em que o País se encontrava.
Para nós era claro que o regime político tinha de ser mudado. Com os elementos de que dispúnhamos e tínhamos ao nosso alcance, estudámos a história da República e da resistência à ditadura militar e ao Estado Novo, a Salazar e a Marcelo Caetano, procurámos perceber a razão do sucessivo fracasso dos movimentos e acções da oposição, interiorizámos os erros a evitar e os processos e formas de actuação que não deveríamos repetir. Concluímos, sem grande dificuldade, que teríamos de organizar, elaborar e fazer algo específico adaptado à situação concreta portuguesa de guerra colonial, ditadura politica, relativo bloqueio internacional e esgotamento de recursos nacionais e de capacidade do regime para encontrar uma saída.
Rejeitámos à partida qualquer organização ou orientação tendente a processos putschistas, pois tínhamos bem presentes os vários fracassos de anteriores tentativas de golpe militar ou dos métodos de fazer política da primeira República. E recusámos processos de cúpula, de golpes palacianos ou de gabinete. Enfim, percebemos que a tese do levantamento nacional e da insurreição popular armada era apenas teoria.
Concluímos que teríamos de partir da nossa base, das condições existentes na Marinha – a sua tradição, cultura, meios, princípios e valores – para motivar e consciencializar o maior número possível de pessoas, sobretudo os jovens oficiais, sargentos, praças e funcionários civis, para uma mudança profunda, de modo que o povo pudesse escolher democraticamente o seu governo e fosse alcançada a paz. Iniciámos assim de forma consciente, organizada e articulada em diferentes níveis de atuação, por via cultural e pela acção concreta, um processo de formação que foi agregando sucessivamente mais militares e os preparou para as futuras alterações.
A organização dos jovens oficiais assentava em 3 vectores:
- Os cursos da Escola Naval, muito ligados ao Clube Militar Naval;
- As zonas de residência;
- As unidades navais.
O nosso processo não foi de conspiração militar ou de preparação para um golpe militar, foi um processo de conscientização, de iniciativa cultural e de acção específica, legal ou não, de confronto, elaboração e difusão de ideias, de elevação do conhecimento, de incremento do espírito crítico, conduzido por um grupo de militares dentro de um dos ramos das Forças Armadas.
Para nos situarmos na época convém caracterizar em traços largos a situação de então, das forças armadas e em especial da Marinha.
7. Situação da Marinha e o exterior
No fim dos anos sessenta e início dos anos setenta, vivíamos num contexto de guerra fria. Portugal fazia parte da NATO, participando a Marinha Portuguesa em diferentes tarefas e manobras no âmbito da Aliança. No entanto, dado o nosso envolvimento na guerra colonial em três frentes, o regime ditatorial vigente estava internacionalmente isolado na ONU, com forte oposição dos países do terceiro mundo.
A posição de alguns países NATO era dúplice, interditando a Portugal a utilização na guerra colonial de armas e navios cedidos para a integração nas forças da NATO, o que nos obrigou à construção de navios específicos para a guerra como anteriormente indicado.
Quando ocorreu em Paris o movimento do Maio de 68 era ministro de Marinha o Almirante Pereira Crespo, homem de formação republicana e espírito aberto com quem era possível dialogar. Estava a desenvolver-se em França um programa de construção de quatro fragatas e quatro submarinos. No âmbito desse programa de reapetrechamento, cerca de um milhar de marinheiros – oficiais, sargentos e praças – passou vários meses ou mesmo anos em França. Um elevado número deles viveu directamente a experiência do Maio de 68.
Igualmente, no princípio dos anos setenta, a Marinha iniciou um programa de construção de seis corvetas na Alemanha e mais seis em Espanha. Também neste caso, três centenas de oficiais, sargentos e praças da missão de acompanhamento da construção e das guarnições tiveram a experiência de viver durante períodos alargados na Alemanha, que os levou a aperceberem-se claramente da hostilidade que existia contra Portugal: o país estava “orgulhosamente só", na expressão de Salazar.
Um facto curioso e revelador do ambiente na Marinha foi que na Escola Naval os cadetes divulgaram e distribuíram propaganda da campanha eleitoral da oposição, inscreveram-se nos cadernos eleitorais e votaram na Cova da Piedade em 1969.
8. Ligação e Inserção dos Oficiais de Marinha na sociedade portuguesa: o Clube Militar Naval
No clube desenvolvemos nos anos de 1970 a 1974 actividades de tipo sócio profissional articuladas com base no movimento de cursos da Escola naval dos anos de 1958 a 1970. Reuniam-se quinzenalmente as comissões de curso eleitas e criaram-se grupos de trabalho/tarefa para estudar problemas como o custo de vida e as condições de habitabilidade e operacionalidade dos navios e o prestígio da Marinha e dos seus militares na sociedade. O ministro, pelo despacho n.º 115 de 30 de Setembro, proibiu este nosso movimento, isso originou varias reuniões e a ida de 3 comissões ao Ministro que nos ouviu com atenção e percebeu que provavelmente o nosso processo era irreversível.
No clube desenvolvemos também um movimento de solidariedade com os camaradas que tinham saído da Marinha e que o ministro pelo seu despacho n.º 18 de 5 de Fevereiro de 1971 indica que não podem continuar sócios do clube. Em 1972 fizemos um abaixo-assinado com 150 assinaturas de oficiais contra a “visita" da PIDE/DGS a casa do tenente Miguel Judas à procura de um seu irmão estudante de medicina. Em Outubro de 1973 desenvolvemos um amplo movimento de repúdio pela actuação da PSP que havia agredido marinheiros, sargentos e um aspirante da Escola Naval. Foi elaborado, em papel selado uma exposição ao Ministro e recolhidas 312 assinaturas de oficiais que entregámos ao Ministro da Marinha, diga-se que o Ministro compreendeu as nossas razões e se manifestou solidário connosco.
Por intermédio das iniciativas profissionais, culturais e sociais realizadas no âmbito do Clube Militar Naval, os jovens oficiais de Marinha tinham oportunidade de contactar com muitos intelectuais e figuras da oposição ao regime. Organizávamos colóquios, conferências, seminários e debates que muito nos ajudaram a melhor conhecer a sociedade e a realidade portuguesa e a consolidar as ideias para a mudança do regime. Verificámos que em certos aspectos já tínhamos superado dificuldades que sentíamos por vezes aflorarem em alguns dos nossos interlocutores, que manifestavam surpresa perante o teor dos debates e fundamentos da argumentação. Para nós era claro e ponto assente que o problema da guerra colonial teria de ser resolvido por via do reconhecimento do direito à autodeterminação dos povos coloniais, sem “ses", o que não era bem visto pelos velhos republicanos; só em 1973 a oposição reconheceu sem reservas o direito à autodeterminação e à independência dos povos de Angola, Guiné e Moçambique.
Nos anos 1972/73 verificava-se na juventude universitária um elevado radicalismo verbal, que se reflectia em parte na sensibilidade dos mais jovens oficiais de Marinha. Apesar de toda essa proliferação de revolucionarismo verbal, de ideias sobre levantamentos populares ou revoluções populares armadas, conseguimos definir e seguir o nosso caminho, de forma completamente autónoma e independente, privilegiando a via cultural e as ações, algumas clandestinas, que considerámos adequadas à situação concreta da Marinha, sem repetir metodologias de conspiração militar do passado ou da oposição clandestina.
Reforçámos o trabalho na Marinha, visando enfraquecer e retirar ao regime um dos seus suportes essenciais: as Forças Armadas. Desenvolvemos acções de diferente natureza, algumas de âmbito ilegal. Construímos uma capacidade própria para actuação em diferentes situações, adquirimos duplicadores e organizámos processos específicos de elaboração, impressão e distribuição de documentos didácticos ou políticos, de nosso exclusivo uso e controle, actuando quando considerávamos necessária a nossa participação. Em Abril de 1973 uma delegação de 13 oficiais e 3 aspirantes e cadetes da Escola Naval esteve presente no terceiro Congresso da Oposição Democrática em Aveiro, visando obter um melhor conhecimento do que era a Oposição Democrática e quais as suas propostas para o País.
Tínhamos a noção da importância fundamental da convergência de ideias de um movimento no âmbito militar com os movimentos da Oposição Democrática para que fosse possível concretizar as aspirações fundamentais do povo português de paz, liberdade e progresso.
9. O Movimento dos Capitães e o programa do MFA
Em Setembro de 1973 surge o Movimento dos Capitães no continente, com base em questões de ordem corporativa. Acompanhámo-lo com muito interesse, percebendo que ele iria enfraquecer o poder, o Governo e os ultras defensores da guerra, mas, por outro lado, com algumas reservas, ao verificarmos que o general Spínola é uma das referências.
Preocupava-nos que o Movimento dos Capitães pudesse ser instrumentalizado e avançasse para um golpe militar sem ter previamente definido um programa político para a resolução do problema da guerra colonial e a instauração de um regime democrático em Portugal, livre da polícia política e sem presos políticos. Trabalhámos para que o Movimento dos Capitães elaborasse o seu próprio programa político. Em articulação com camaradas do Exército e da Força Aérea, conseguimos que tais ideias, elaboradas exclusivamente no âmbito militar, constassem num programa ou plataforma política.
Como já afirmámos, a forma de organização, a metodologia de decisão e a atuação do movimento dos oficiais de Marinha desde 1970, e o mesmo com o Movimento dos Capitães, não seguimos métodos nem processos do passado de conspiração ou de acções militares que articulavam militares e civis. Nem sequer no âmbito militar foram contactados militares mais antigos com conhecimento dessas práticas ou conhecedores de tais métodos para assumirem responsabilidades concretas na acção militar. Fomos algumas vezes criticados por isso, mas continuamos a pensar que a nossa forma de organização, actuação e decisão foi a mais adequada para a realidade e as circunstâncias então vividas. As críticas teriam alguma razão de ser se pela nossa parte fechássemos a porta ao contributo desses camaradas, mas a porta esteve sempre aberta em diferentes níveis e acções, muitos camaradas mais antigos perceberam isso e souberam dar o seu contributo. Constituem prova suficiente deste facto os nomes que nessa época escolhemos para integrarem as listas dos Corpos Sociais e da Comissão da Redação dos Anais do Clube Militar Naval.
No início de 1974, concluímos que, de uma forma ou de outra, os camaradas do Exército desencadeariam uma acção militar contra o regime, procurámos intensificar o contacto com o Movimento dos Capitães de modo a encontrar alguém com quem fosse possível um diálogo político aberto visando a definição e o estabelecimento duma plataforma política, clara e coerente. Assim, através do alferes miliciano José Leal Loureiro, o Capitão-tenente Almada Contreiras conseguiu uma ligação com o major Melo Antunes, que frequentava então o curso de majores em Pedrouços. Encontrámo-nos várias vezes no carro do Comandante (Cte) Contreiras, frente à Nortenha, no “Pote", em Alvalade, e em Algés, na minha casa. Constatámos que existia entre nós uma perfeita consonância de ideias e preocupações no que se referia à necessidade de uma orientação política democrática e progressista a estabelecer para o Movimento dos Oficiais das Forças Armadas (MOFA), evitando assim que pudesse ser atraído para um golpe militar de natureza putschista ou capturado por militares ligados a generais de forte matriz autoritária. Para nós o perigo existia, sabendo da influência do general Kaúlza de Arriaga em certos sectores militares, nomeadamente os para-quedistas. Também a personalidade e a figura do general Spínola não nos inspirava confiança.
Combinámos com o Major Melo Antunes uma forma de actuação e de apoio ao seu trabalho no âmbito do Movimento dos Capitães, onde ele tinha sido encarregado da tarefa de elaboração do documento politico. Em Março, Melo Antunes foi afastado e colocado nos Açores. Deixou ao Movimento um esboço de programa político e a nós (Cte Almada Contreiras) a ligação com Álvaro Guerra, jornalista do “República", a quem entregaríamos a versão final do Programa do MFA, quer a acção militar fosse vitoriosa, quer não. Essa missão foi desempenhada pelo 2.º Tenente Martins Guerreiro no dia 25 de Abril, cerca das 11.30h. O jornal publicou na segunda edição do dia 26 o texto que era a versão original do programa do MFA. Na noite do dia 25 na Pontinha o programa original foi alterado pelo General Spínola, numa longa reunião deste com o Major Franco Charais e o Cte Vítor Crespo, elementos do MFA que se encontravam na Pontinha e tinham participado na redação da versão final do programa.
Após a partida de Melo Antunes para os Açores, foi constituído um grupo de trabalho conjunto dos três ramos das Forças Armadas, coordenado pelo Major Victor Alves, para elaborar a redacção do programa. Da Marinha foram indicados para o grupo de trabalho os tenentes de Marinha Simões Teles, Pedro Lauret e Vidal Pinho que, naturalmente, relatavam e debatiam o desenvolvimento do trabalho com a coordenação do Movimento da Marinha. Realizaram-se várias reuniões em Oeiras e Algés, onde residia a maior parte dos seus elementos; o Cte Costa Correia também participou desde início em muitas destas reuniões em especial com camaradas do Exercito.
Quando o texto adquiriu uma forma completa foi apresentado aos generais Spínola e Costa Gomes que, por duas vezes, lhe introduziram alterações. Spínola, não obstante ter concordado com a última versão, antes de se desencadear a acção militar, pretendeu na noite de 25 de Abril ignorar o Programa do MFA, procurando anulá-lo ou alterá-lo profundamente ao que Charais e Crespo se opuseram com veemência. Apesar disso, foram introduzidas duas alterações muito significativas relativas à descolonização e à PIDE/DGS.
Após estas alterações, o Major Franco Charais convoca os jornalistas e procede de imediato à divulgação pública do Programa do MFA, travando a tentativa de substituição do programa por uma proclamação ao povo.
10. Síntese das acções desenvolvidas …
Pelo Movimento na Marinha, em actuação conjugada com os camaradas do Exército, nos dias 16 de Março e 25 de Abril, no seu âmbito e externamente.
- Controlo do grupo N.º 1 de Escolas da Armada de Vila Franca de Xira, por intermédio dos tenentes de Marinha Lobo de Oliveira, Pires Soeiro, Manuel Begonha e Ramiro Correia, assumindo o 2.º Tenente Pires Soeiro o comando da força que o comandante manda constituir para “interceptar" a coluna das Caldas da Rainha no dia 16 de Março. Esta força vai para junto da praça de touros e limita-se a observar o movimento da coluna – está solidária com o Movimento dos capitães conforme moção aprovada em 13 de Março no CMN.
- Participação na elaboração do Programa do MFA como indicado e sua defesa continuada em reuniões, em casa do Tenente Simões Teles e outros locais, nomeadamente Miraflores.
- Ligação à imprensa por intermédio do Cte Almada Contreiras para divulgação de informações que se considerassem necessárias, e do programa a partir do momento de não recuo do Movimento, independentemente do seu desfecho.
- Ligação constante ao Exército de forma organizada e disciplinada, em contacto directo através do Cte Almada Contreiras / Major Vitor Alves e através do nosso grupo de ligação, além de ligações pessoais como era o caso do Cte Costa Correia. Participação em variadas reuniões de camaradas do Exército: Cascais, Algés/Miraflores, Lisboa.
- Cte Vitor Crespo presente na Pontinha, integrado no posto de comando do MFA.
- Posto de comando na Armada no centro de comunicações, dirigido pelo Cte Almada Contreiras. Este oficial teve intervenção directa na escolha da canção Grândola Vila Morena como sinal para saída das tropas, sendo ele quem faz ligação com Álvaro Guerra que estabelecia ligação com a Rádio Renascença
- Capitão de Mar e Guerra Pinheiro de Azevedo, comandante do Corpo de Fuzileiros, integrado no nosso movimento desde 1972, foi indigitado para membro da Junta. Conhece e tem em seu poder a ordem de operações/ anexo de transmissões – a pedido do Capitão-tenente Almada Contreiras dá ordem para a saída de forças de fuzileiros da sua unidade. É o único futuro elemento da Junta de Salvação Nacional que corre riscos e participa directamente na acção militar do 25 de Abril. Mais que uma vez recebeu ordem do CEMA para mandar os fuzileiros intervir contra o MFA, conseguindo neutralizar as ordens do CEMA e actuar no sentido de apoio à acção do MFA.
- Tentativa, na manhã de 25 de Abril, dos Fuzileiros sob o comando do Cte Martins Cavalheiro, para a tomada da sede da DGS com o destacamento de Vargas de Matos, que não resulta nesta fase; posterior cerco da sede da DGS por forças dos Fuzileiros: destacamento comandado por Vargas de Matos e companhia comandada por Lobo Varela, sob o comando do Cte Costa Correia e de cavalaria de Estremoz do capitão Andrade Moura, que termina com a rendição da DGS no dia 26 de Abril pelas 09h30.
- Tomada de Caxias pelas forças de Fuzileiros sob o comando do Cte Abrantes Serra em colaboração com os paraquedistas do capitão Mário Pinto; posterior libertação dos presos políticos em Caxias com intervenções do Cte Abrantes Serra e majores João Menino Vargas e Franco Charais; e de Peniche com intervenção do Cte Machado dos Santos e do Major Moreira de Azevedo. Foi determinante a ordem dada ao Major Menino Vargas Major Charais que, contra a orientação do General Spínola, mandou libertar todos os presos.
- Neutralização da fragata “Gago Coutinho" por acção e influência dos elementos do MFA nela embarcados – Caldeira Santos, Almeida Moura e Dores de Sousa. O Cte da fragata recebeu ordens directas do Estado-maior da Armada e do CEMA, por mais de uma vez, para abrir fogo de salva e real, de modo a manifestar a posição da Marinha a favor do Governo.
- Neutralização da “ordem" de aprontamento para a fragata Sacadura Cabral que estava no Arsenal havia terminado os fabricos, neutralização da indicação para se constituir uma força na Base Naval de Lisboa com as forças de desembarque dos navios para intervirem em Lisboa contra o MFA, foi relevante a actuação de Soares Rodrigues e Vidal Pinho.
- Neutralização das tentativas do Cte Calvão para obter armamento na Direcção de Armas Navais de modo a com um grupo de fuzileiros destruir as antenas radio de Porto Alto, nem conseguiu constituir o grupo de fuzileiros foi relevante a actuação do director – Cte Molarinho do Carmo, do Cte Costa Correia e Ferreira de Carvalho
- Controle da BNL e da Esquadrilha de Submarinos por intermédio dos tenentes Paiva de Andrade, Lourenço Gonçalves, Mendes de Morais e Sequeira Alves, com utilização dos equipamentos de comunicações de um submarino de modo a estabelecermos ligação entre o posto de comando na Pontinha e a fragata Gago Coutinho, ordenando-lhe que saísse a barra.
- Neutralização e alteração da ordem de saída para o mar do NRP São Gabriel, por acção do 1.º Tenente Ferreira da Silva.
- Neralização, por intermédio do Cte Geraldes Freire, Cte Abrantes Serra e outros oficiais da Escola de Fuzileiros, de todas as instruções e ordens que o Chefe de Estado-maior da Armada deu para intervenção dos fuzileiros da Escola contra o MFA.
- Entrega por Martins Guerreiro na manhã do dia 25 ao jornal “República" (jornalista Álvaro Guerra) da 1.ª versão do Programa do MFA para publicação, antes da alteração que o General Spínola lhe introduziu à noite.
- Alem destas acções, tínhamos também ligação organizada com a Escola Naval e o Grupo dois de Escolas da Armada, onde felizmentão foi necessário qualquer intervenção
O Governo na manhã do dia 25 desencadeou uma contraofensiva, procurando atacar as forças do Capitão Salgueiro Maia no Terreiro do Paço através das de Cavalaria 7 e forças da Marinha que conseguisse mobilizar. O Estado-maior da Armada e o próprio Chefe de Estado-maior deram ordens directas nesse sentido para a Fragata Gago Coutinho, Comando Naval do Continente, Base Naval, Força de Fuzileiros e Escola de Fuzileiros, o que nos obrigou a múltiplas acções de neutralização nas diferentes unidades. O Cte Calvão também tentou em ligação com o CEMA constituir um comando de fuzileiros para atacar e desactivar as antenas de Porto Alto.
A nossa estratégia e compromisso não foi a de envolver navios na acção direta, foi sim de solidariedade com os camaradas do Exército e em caso de necessidade neutralizar as unidades ou forças que o Estado-Maior da Armada quisesse movimentar contra as forças revoltosas do MFA, o que de facto aconteceu. Esse foi o sentido expresso na moção aprovada em 13 de Março de 1974 na reunião de 130 oficiais no CMN e do compromisso militar estabelecido diretamente com Otelo depois do golpe das Caldas de 16 de Março.
Em Setembro de 1973, quando surge o movimento dos capitães, decidimos reorganizar e alargar a nossa estrutura fechada no âmbito das zonas de residência, elegemos uma Comissão Coordenadora da Armada articulada em três grupos: ligação ao exército, militar, e direção interna. Considerámos prioritária a elaboração de um documento político com linhas democráticas claras, felizmente conseguiu-se fazer ligação direta com Melo Antunes com quem foi fácil acertar as grandes linhas dum futuro programa político
Nas vésperas do 25 de abril Otelo entrega ao Cte Vitor Crespo a ordem de operações, onde verificámos que a sede da PIDE/DGS e a prisão de Caxias não constavam como objetivos. Pelo facto, fizemos sentir a incongruência, ao que o Otelo nos respondeu: Se não concordam façam vocês. Isto criou-nos uma situação nova, no sentido de uma intervenção militar direta, o que ia além do nosso consenso interno e do nosso compromisso. Não obstante, por a considerarmos de interesse político fundamental, decidimos procurar viabilizar tal intervenção de última hora. Martins Guerreiro e Vítor Crespo contactam, no dia 22, Vargas de Matos, comandante do destacamento de fuzileiros que partiria em breve para Moçambique. Apesar da situação de comando muito recente em que se encontrava, aceitou actuar caso houvesse solicitação superior do comandante da Força de Fuzileiros, capitão-de-mar-e-guerra Pinheiro de Azevedo, que havíamos escolhido para membro da Junta de Salvação Nacional.
No dia 23, Martins Guerreiro entrega a Pinheiro de Azevedo a “Ordem de Operações", com a indicação de que um destacamento de fuzileiros poderia ser chamado a intervir.
11. Conclusão
A nossa organização nas suas diferentes formas e actuações não seguiu quaisquer modelos de actuação conspirativa anteriores do tempo da monarquia, da I República ou contra o Salazarismo, nem procurámos guiar-nos por teorias ou modelos revolucionários experimentados noutras situações e latitudes. Interpretámos sim as tradições e cultura da Marinha, organizámo-nos e actuámos em conformidade com os valores que recebemose os princípios democráticos e humanistas que defendíamos e eram tradição naval.
Não confundimos acção política com a acção militar, sabendo do risco para a democracia da substituição de uma pela outra.
Não confundimos transformações revolucionárias com radicalismo de atitudes ou de linguagem, procurámos combinar as diferentes formas tendo em atenção as diferentes situações e circunstâncias, pois sabíamos que para se conseguirem transformações profundas e duradouras é indispensável a adesão voluntária de um largo espectro de sensibilidades.
Ao longo dos vários anos de maturação do movimento na Marinha criou-se e consolidou-se um grupo bastante coerente e coeso. Bem consciente dos valores e princípios por que devíamos lutar nas diferentes situações ou missões que fôssemos chamados a desempenhar. Isso articulado com a nossa cultura, explica em grande parte a nossa forma de actuação em todas as funções que fomos chamados a desempenhar antes e depois do 25 de Abril, mantendo uma unidade essencial dentro da linha hierárquica escolhida para a Marinha e institucional de respeito e consonância com o Governo e o Presidente da República que havíamos escolhido e legitimado.
Manuel B. Martins Guerreiro
Contra-Almirante da Armada Portuguesa, na situação de reforma, com o curso da Escola Naval em Engenharia de Construção Naval (1962) e Curso de Engenharia Naval e Mecânica na Universidade de Génova (1969). Fez comissão de serviço na Guerra em África, na Fragata Nuno Tristão, em Angola e na Guiné. Como Primeiro-Tenente foi elemento dinamizador do MFA da Armada e membro do Conselho da Revolução (1975-1982).
Fez carreira naval na área da engenharia, sendo Director de Navios. Na situação de reserva foi Presidente dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo.
Descarregar este texto
Como citar este texto:
GUERREIRO, Manuel B. Martins – A Marinha e a Participação no 25 de Abril. Revista Portuguesa de História Militar - Dossier: 25 de Abril de 1974. Operações Militares. [Em linha] Ano IV, nº 6 (2024); https://doi.org/10.56092/IJEI8938 [Consultado em ...].