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A MARINHA PORTUGUESA E A 2.ª GUERRA MUNDIAL​ 

 

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Augusto Salgado

Res​umo

A Marinha portuguesa chegou à 2.ª Guerra Mundial numa situação muito diferente, em termos de características e qualidades dos meios que dispunha. Se a neutralidade assumida por Portugal fez com que não participasse em acções bélicas, estes meios – navais e aéreos – travaram duros combates no salvamento de vários milhares de náufragos, no Atlântico e no Índico. Neste breve estudo, tentaremos mostrar a criação destes novos meios e as diversas acções que estes desempenharam durante este longo conflito mundial.​

Palavras-chave: 2.ª Guerra Mundial, Marinha portuguesa, neutralidade, salvamentos.

 Abstract

The Portuguese Navy arrived at the 2nd World War in a very different situation, in terms of characteristics and qualities of the means at its disposal. If the neutrality assumed by Portugal meant that it did not participate in warlike actions, its means – naval and air – fought hard battles in the rescue of several thousand shipwrecked people, in the Atlantic and in the Indian Ocean. In this brief study, we will try to show the creation of these new media and the different actions they played during this long world conflict.

Keywords: World War 2, Portuguese Navy, neutrality, Search & rescue.

 


A Armada até 1939 

Conforme refere António Telo, a Grande Guerra “mata o projecto da “grande esquadra" de 1912", mas os diversos responsáveis pela pasta da marinha no período entre guerras, muitos deles ainda imbuídos dos conceitos de Mahan, ou seja, do combate decisivo, continuam a considerar que o poder naval era fundamental para Portugal.

Contudo, não tendo Portugal conseguido os meios que ambicionava nas compensações pós-guerra, o país vê-se obrigado a adquirir pequenos meios navais ingleses (900 t)[1] – sloops – que, inicialmente classifica mesmo como “Cruzadores". A estes meios juntaram-se quatro torpedeiros austríacos[2], os únicos meios navais a que Portugal teve direito no âmbito das compensações de guerra, e que irão formar o núcleo da Marinha dos anos 20 do século XX.

Com o Almirante Pereira da Silva ao leme da Marinha neste período, os planos navais por ele idealizados, sempre no âmbito dos conceitos de Mahan, têm como principal adversário a já conhecida Espanha e uma ameaça vinda apenas de meios de superfície[3]. Ou seja, o papel da arma submarina durante a guerra e os próprios meios submarinos portugueses e espanhóis, são praticamente desconsiderados.

Assim, e face às imensas dificuldades económicas que o país atravessa no pós-guerra, a dimensão dos seus planos para a construção de uma nova Armada adequada à posição marítima de Portugal vai sendo drasticamente reduzidos pelos sucessivos governos. Contudo, Pereira da Silva realiza uma importantíssima reorganização das estruturas da Marinha, realçando, principalmente, o triângulo Lisboa, Açores e Cabo Verde. Esta restruturação, embora grande parte apenas se tenha concretizado “no papel", apontava para Lisboa como a principal base durante o período de paz e estruturas em Leixões e Ponta Delgada que funcionariam apenas em tempo de guerra[4].

Inicialmente, a efervescência política que se vivia em Portugal neste período e os antecedentes da participação revolucionária de elementos da Marinha, levam a que os governantes tenham menos confiança política nesta força. Contudo, paulatinamente, a situação inverte-se. Um dos indicadores mais interessantes é o facto de apesar da terrível situação em que os meios navais se encontravam nos anos vinte, a Armada terá cumprido, escrupulosamente, a redução dos gastos correntes impostos pelo novo ministro das Finanças, Oliveira Salazar. Para tal, teve mesmo de proceder ao abate ou à venda de alguns dos poucos navios que ainda a equipavam[5].

A partir de 1928, novamente com Oliveira Salazar na pasta das Finanças, mas com poderes reforçados, a situação económica do país altera-se e, estando os militares no poder, em termos financeiros é dada prioridade à renovação do Exército e da Marinha. Contudo, importava definir qual a estratégia nacional e, consequentemente, que programa de rearmamento devia ser implementado, no âmbito dessa mesma estratégia. São vários os factores, que aqui não vamos detalhar, que levam a que este rearmamento e modernização se inicie pela Armada e não pelo Exército, para além do Império Ultramarino e o facto do plano da Marinha permitir desenvolver as indústrias navais nacionais[6]. No meu entender, considero que o papel fundamental da Marinha na supressão da célebre Revolta de 1931 na Madeira e nos Açores terá sido um factor chave. Aproveitando-se do facto da Armada se encontrar nas graças do regime, Magalhães Correia, agora a chefiar a pasta da Marinha, apresentou um novo plano de restruturação – naturalmente que baseado nos planos anteriores de Pereira da Silva – mas mais adaptado e, eventualmente, mais realista às verdadeiras capacidades financeiras do país.

Deste modo e, ao contrário do que ocorreu quando Portugal entrou na Grande Guerra em 1916, em que a Armada era constituída apenas um conjunto anacrónico de meios navais, de capacidade militar muito limitada, a Armada em 1939 era constituída por um conjunto coerente de navios. Apesar da Armada, como espectável, desejar ter mais meios, conforme iremos referir mais à frente. Portanto, na minha opinião, estes novos meios foram uma espécie de “recompensa" à Armada pelo apoio de 1931 mas, também, deveram-se à visão do Ministro das Finanças Oliveira Salazar, sobre a importância do mar nas ligações com o Império colonial português.

Assim, em 1932, deu-se início à edificação da nova esquadra, agora com o Comandante Magalhães Mesquita na pasta da Marinha, após saída de Magalhães Correia por razões de saúde. Com as finanças nacionais em ordem, numa altura em que no resto do mundo sentia os efeitos da queda da bolsa de New York, Portugal conseguiu negociar, em dois contratos separados, e com diversos estaleiros ingleses, a aquisição ou a construção em Portugal de: cinco Contra-torpedeiros[7] (VougaLimaDãoTejo e Douro), dois Avisos[8] de 1ª classe (Afonso de Albuquerque, Bartolomeu Dias), dois Avisos de 2ª classe (Gonçalo Velho e Gonçalves Zarco) e três submarinos (Espadarte, Golfinho e Delfim)[9]. Para além dos meios contratados inicialmente para adquirir em Inglaterra, estava previsto ainda a aquisição de um Transporte de Hidroaviões, a ser construído em Itália. Contudo, problemas cambiais levaram os estaleiros italianos a rescindir o contrato. Será esta rescisão que permitirá atingir os números atrás apresentados, com a aquisição do quinto Contra-torpedeiro, do terceiro submarino e de dois novos Avisos. Estes últimos Avisos, o João de Lisboa e o Pedro Nunes, são construídos em Lisboa, mas com base em planos desenvolvidos por um oficial da Marinha portuguesa[10].

Em termos de capacidades, os novos contra-torpedeiros tinham sido pensados para operar, principalmente, entre Portugal e os arquipélagos Atlânticos, ao contrário do que tinha ocorrido na Grande Guerra. No entanto, não tinham raio de acção suficiente para alcançar directamente Cabo Verde. Em termos de armamento, era semelhante ao britânico no período pré-guerra, com deficiências em termos anti-aéreos e não estavam equipados para a luta anti-submarina. Importa lembrar que, nesta altura, a Alemanha também não podia possuir qualquer meio submarino, pelo que não era ameaça. No entanto, a Espanha, o “nosso inimigo" tinha diversos submarinos operacionais, conforme já referimos. Em termos de defesa anti-aérea, os nossos navios estavam armados com armamento semelhante aos navios ingleses da época. Já os Avisos, foram pensados para as colónias, tendo os de 1.ª classe vindo, inicialmente, equipados com um meio aéreo orgânico próprio. Este meio acabou por ser retirado durante a guerra, em favor de mais armas anti-aéreas, durante as modernizações que Portugal conseguiu ir negociando com a Inglaterra.

Importa também realçar que, não tencionando Portugal adquirir navios de maior categoria, tipo cruzador, todos os navios mencionados foram equipados com peças de artilharia de 4.7 polegadas iguais, ou seja, 120mm, mas de 50 calibres. Ou seja, maior comprimento e, subsequentemente, maior alcance que as peças de mesmo calibre que equipavam outras nações, incluindo a Royal Navy[11]. Adicionalmente, importa realçar que esta nova força naval utilizava combustíveis líquidos, o que anteriormente só ocorria com os quatro já mencionados torpedeiros austríacos.

Para além dos meios navais, antes do conflito, são também adquiridos 33 novos meios para a Aviação Naval, de várias proveniências, maioritariamente britânica. Estas aquisições foram alvo de muitas críticas, mesmo internamente na Marinha. Só a aquisição, já durante o período da guerra dos pequenos hidroaviões Grumman G.44 Widgeon, é que permitiu dotar a Armada com alguma capacidade efectiva de patrulhamento marítimo[12]. Importar referir que, de forma não organizada, o número e tipo de aeronaves da Aviação Naval foi sofrendo alterações durante a guerra, assim como a aviação do Exército, através da “retenção" e, posterior compra, de aeronaves Aliadas, que pelas mais variadas razões aterravam intactas em território nacional. Naturalmente que, adicionalmente, muitas outras houve que nada foi possível utilizar, por se encontrarem muito danificadas[13].

Em termos de estrutura de apoio, a passagem do Arsenal de Marinha, agora dotado de verdadeiras capacidades oficinais e de construção, para a margem Sul, mais concretamente para a zona do Alfeite, onde a Escola Naval já funcionava desde Novembro de 1936, permitiu também, a partir de 1939, que fosse prestado o necessário apoio oficinal internamente, aos novos meios navais. Algo que era deficiente em períodos anteriores e que nunca seria possível efectuar aos meios previstos no Programa de 1912, caso este tivesse avançado.

Curiosamente, é neste período entre guerras, mais concretamente a 29 de Fevereiro de 1936, que a Armada perde o seu único navio de salvamento, o célebre Patrão Lopes. Foi um navio que esteve presente praticamente em todas as situações de encalhe ou de naufrágios ocorridas nas costas de Portugal continental na época, ganhando a fama de ser o navio que saía quando todos os outros entravam nos portos para se abrigar. Os despojos deste navio, cujas acções de salvamento na zona da Península Ibérica tiveram início ainda sob bandeira alemã, nos finais do século XIX, e que foi o mais pequeno navio alemão requisitado em 1916[14], jazem actualmente nas proximidades do Bugio. 

Entretanto, o ano de 1936 fica marcado por um outro acontecimento, que irá colocar em perigo a paz na Europa – a Guerra Civil Espanhola. Este conflito volta a trazer à superfície o “perigo espanhol", em especial nos períodos que em Madrid estão governos de Esquerda que apoiam aqueles que se opõe ao regime de Lisboa. Perigo esse que Salazar considera, naturalmente, mais real vindo através das fronteiras terrestres do que pelo mar. Assim, o novo plano naval, proposto em 1937 pela Marinha, e que prevê um aumento substancial no número de meios navais já existentes é, naturalmente, rejeitado pelo regime. E, nem mesmo a aquisição de apenas mais alguns meios foi possível, face à ameaça de guerra na Europa que começava novamente a surgir no horizonte. O Velho Continente encontrava-se, novamente, numa corrida ao armamento naval, como no período que antecedeu a Grande Guerra.

Logo no início do conflito no país vizinho, a Armada portuguesa é utilizada no apoio de cidadãos nacionais que pretendessem regressar a Portugal. Estas acções decorreram em vários portos do Mediterrâneo e do Norte da Península Ibérica, sendo principalmente regatados cidadãos nacionais e alguns brasileiros. Contudo, os navios portugueses também recebem a bordo diversos cidadãos apoiantes de Franco que se encontravam em territórios controlados pelo governo Republicano. Naturalmente que essa não era a sua missão e, ao fazê-lo, os relatórios oficiais existentes no Arquivo Histórico da Biblioteca Central de Marinha, refere que o faziam por “razões humanitárias". Contudo, o oposto nunca ocorre. Talvez tais atitudes não sejam surpreendentes, pois da leitura dos mencionados relatórios conseguimos perceber que ao nível dos oficiais haveria uma certa “simpatia" pela causa de Franco. No entanto, apenas numa única vez os apoiantes de Madrid são referidos num relatório como “vermelhos".

No âmbito destas missões, há a destacar o apoio que os navios deram à embaixada portuguesa em Madrid, que se tinha deslocado para Alicante, devido à ofensiva das tropas de Franco. Esse apoio não se limitou à disponibilização de alojamentos, ao embaixador e a outros elementos da embaixada, para além das respectivas famílias, mas, também de comunicações. Neste período importa também destacar a missão de repatriamento de refugiados apoiantes do governo de Madrid que se tinham deste lado da fronteira e que Salazar os quis retirar do país o mais rapidamente possível. Esses refugiados, em especial os que se encontravam na zona de Barrancos, foram levados até Lisboa, onde embarcaram no paquete Niassa, que foi escoltado pelo Douro. Os dois navios seguiram até Terragona, que se encontrava na mão das forças governamentais, numa missão que teve alguns momentos de tensão com as autoridades locais, em especial, quando o Niassa se encontrava atracado ao cais. 

Importa aqui referir que este episódio tem levantado alguma controvérsia nos diversos investigadores que têm abordado este assunto, pois estes afirmam que o governo de Madrid desconhecia a intensão de Lisboa enviar os refugiados para o mencionado destino. Efectivamente, à chegada, em terra ninguém estava à espera da chegada deste grupo de pessoas. Até porque, nessa cidade, havia falta de todo o género de abastecimentos. No entanto, no Arquivo Histórico de Marinha, existe documentação que mostra claramente que Lisboa, através do ministério dos Negócios Estrangeiros, tinha informado previamente o governo de Madrid da sua intenção. Muito provavelmente, na situação complicada que se vivia em Madrid, e a própria saída da cidade do governo, a informação “perdeu-se" sem ter chegado aos verdadeiros interessados.

Estas acções humanitárias dos navios da Armada terminam em Setembro de 1936, após a conhecida “Revolta dos Marinheiros", ocorrida no Tejo. Efectivamente, após este episódio, os navios da Armada apenas saem de Lisboa para patrulhas em águas nacionais ou para exercícios em águas portuguesas. A “normalidade" regressa após a conclusão do conflito em Espanha, e é marcado pela ida até Sevilha, após um exercício naval, de vários meios navais portugueses. Naturalmente que esta força naval e os seus elementos, foram apoteoticamente recebidos, tendo sido organizada, inclusivamente, uma tourada em honra de Portugal[15].​

O Mundo em Guerra

Contudo, como é comummente conhecido, infelizmente aqueles que previam um novo confronto generalizado na Europa, viram os seus receios confirmados, quando a 1 de Setembro de 1939 as tropas alemãs entraram na vizinha Polónia. Dois dias depois, a Inglaterra e a França declaram guerra à Alemanha, mas não intervêm nos combates que estão a decorrer no território da Polónia. A guerra com estes dois países europeus vai travar-se, inicialmente, apenas no mar, através de navios de superfície e submarinos alemães pré-posicionados no Atlântico.  

De imediato, Portugal, ao contrário do que tinha ocorrido no anterior conflito mundial, declarou a neutralidade. Apesar das “simpatias" que o regime nutria pela Itália de Mussolini e, em menor escala, da Alemanha Nazi, Portugal manteve-se fora do conflito que irá, mais uma vez, provocar destruição na Europa e no mundo.

No mar, à semelhança do que tinha ocorrido entre 1914 e 1918, a guerra alterou profundamente as rotas marítimas mundiais e, novamente, Portugal não se encontrava preparado para esta eventualidade. O número de meios navais nacionais existentes à época era insuficiente para assegurar as necessidades do país e, muito menos, das suas colónias, incluindo os arquipélagos atlânticos. Curiosamente, no período pré-guerra, a maioria do movimento dos portos nacionais encontrava-se, como habitualmente, na mão dos britânicos, mas a Alemanha encontrava-se já muito próximo, em termos de importância.

Em termos da importância estratégica de Portugal e dos arquipélagos atlânticos, nos anos iniciais da 2.ª Guerra Mundial e, contrariamente ao que a maioria dos investigadores refere, mesmo sem movimento comercial, todos arquipélagos Atlânticos Ibéricos vão desempenhar um papel importante e não apenas os Açores. Naturalmente que os autores espanhóis tentam realçar a importância das Canárias, que também tem de ser incluído neste conjunto, embora a posição de Espanha no conflito seja diferente da de Portugal. Franco devia muito – em termos políticos, militares e financeiros – à Alemanha e à Itália, pelo apoio que recebeu durante a guerra civil que devastou o país entre 1936 e 1939.

Efectivamente, só em finais de 1941 ou, quando muito, nos inícios de 1942, quando Hitler percebe que afinal a Rússia não iria ser fácil de derrotar, é que toda e qualquer ideia de intervenção alemã na Península Ibérica ou nos arquipélagos mencionadas é abandonada. Tal não impede que os Aliados, primeiros os ingleses e depois os americanos, não mantivessem o seu interesse, em particular nos arquipélagos de Cabo Verde e dos Açores. A Madeira, por não possuir nenhuma capacidade portuária ou porto natural, como o Porto Grande do Mindelo, apenas é incluída nos planos Aliados inicialmente, mas depressa deixa de ter qualquer interesse, mesmo em termos de planeamento.

Mais a Sul, com o fim da ameaça vinda do Norte de África, através das colónias francesas da zona e a subsequente invasão do Norte de África em Novembro de 1942 pelos americanos, afastaram definitivamente a ameaça que pairava sobre Cabo Verde. Curiosamente, nesse ano de 1942, quando os cerca de seis mil soldados portugueses estão definitivamente instalados, é quando os Aliados, em especial os americanos, são a única eventual ameaça ao arquipélago. E será a partir dos inícios de 1943 que os Açores passam a interessar ainda mais aos Aliados, que começam a pressionar, de forma mais dura, Oliveira Salazar.

A Armada em tempo de Guerra

Conforme já mencionado, no início da guerra são principalmente os meios de superfície alemães, previamente posicionados, que de imediato iniciam os ataques contra a navegação mercante Aliada. Nesta altura, há poucos submarinos posicionados à volta de Inglaterra e no Atlântico, incluindo um ou dois ao largo da costa Ocidental da Península Ibérica. Apesar de serem poucos, logo no dia 6 de Setembro, ou seja, três dias depois da Inglaterra e a França declararem guerra à Alemanha, o U-38, do tipo IX, afundou ao largo de Lisboa o navio mercante inglês SS Manaar, após uma breve troca de tiros à superfície[16]. Uma baleeira deste navio seria encontrada no dia seguinte, com 16 tripulantes a bordo, pelo vapor português Carvalho Araújo. Outros 30 chegaram também no dia 7 a Lisboa, a bordo do navio mercante Neerlandês SS Mars. As outras baleeiras foram recolhidas por outros navios mercantes mas, nestes casos, os náufragos não foram desembarcados em território nacional.

Contudo, esses não foram os primeiros náufragos a pisar solo nacional. No dia anterior, dia 6, o rebocador de Lisboa Europa I foi recolher ao navio neerlandês SS Eidanger 32 náufragos do navio inglês SS Bosnia, que tinha sido afundado na véspera pelo submarino alemão U-47, comandado pelo futuramente célebre Günther Prien.

Começava assim, logo nos primeiros alvores deste conflito, uma importantíssima actividade não apenas dos meios navais nacionais, militares e civis, mas também de estruturas em terra, de apoio a náufragos, vítimas da guerra no mar. Este apoio, que decorreu principalmente no Atlântico Norte e no Índico, em especial em Moçambique, de forma intensa até 1943, é actualmente praticamente esquecido, em termos internacionais e mesmo em termos nacionais. A partir desta data praticamente não foram encontrados mais relatos destas acções de salvamento. No total, pelos diversos portos nacionais, em navios de guerra ou mercantes, terão passado cerca de 6.000 homens e mulheres, das mais diversas nacionalidades[17]

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Fig. 1 - Capa da Revista​ de Marinha realçando as missões de salvamento da Ar​mada (RM, Ano VII, nº194, 20JUL1943).

 

Talvez ainda menos conhecido, são as acções de busca e salvamento realizadas com o apoio da aviação naval, muito nos moldes do que actualmente é realizado. Um dos exemplos mais interessantes foi o caso do naufrágio do paquete britânico SS Avila Star, torpedeado perto dos Açores a 5 de Julho de 1942. Os primeiros sobreviventes são recolhidos, por acaso, pelo contra-torpedeiro Lima, que se dirigia para os Açores para uma comissão no arquipélago, três dias após o afundamento. A última baleeira, que incluía duas mulheres, só foi encontrada no dia 25 de Julho, perto da costa de Marrocos, após ter sido detectada por um dos mencionados hidroaviões, enviado especificamente à sua procura. Naturalmente sem meios para os recolher, pois as aeronaves eram muito pequenas, conforme já referimos, de Lisboa largou de imediato o Aviso Pedro Nunes que conseguiu voltar a encontrar e proceder ao salvamento dos náufragos[18].

Entretanto, a realidade da guerra submarina leva a Inglaterra a apoiar a modernização, tímida inicialmente, dos nossos navios, com a colocação de calhas para bombas de profundidade, colocação de circuitos de desmagnetização e aumento da capacidade anti-aérea dos meios de superfície. Curiosamente, só em 1944 é que os navios foram equipados com equipamentos ASDIC (o precursor dos actuais sonares) que, pelo seu “secretismo", obrigavam que estes apenas fossem operados por elementos ingleses (quatro por navio)[19].

Se, inicialmente, para a defesa próxima dos portos a Armada recorreu, como já tinha ocorrido na Grande Guerra, a embarcações civis, após a concessão das Lages a Inglaterra cedeu a título de empréstimo oito grandes patrulhas. A destacar, entre os navios civis requisitados, o caso do arrastão Açor, que já tinha realizado a mesma função no anterior conflito. Já os recém-chegados navios ingleses encontravam-se bem preparados para a luta anti-submarina e para a rocega de minas, com bom armamento e equipados com equipamentos ASDIC. Inicialmente tinham guarnições britânicas, mas com comandante português, situação que foi sendo alterada com o decorrer da guerra. Os quatro primeiros (P1 a P4) ficaram adstritos à protecção do porto da Horta, acompanhados de um navio (B1) para operar a barreira anti-submarina lá colocada. No porto de Lisboa, possivelmente por se encontrarem a maioria dos meios navais nacionais, apenas foram adstritos dois patrulhas (P7 e P8). Já o P5 e o P6), que não eram mais do que grandes navios de pesca convertidos em patrulhas, vão para Ponta Delgada. Após a modernização dos contra-torpedeiros, os patrulhas P5, P6, P7 e P8 foram devolvidos a Inglaterra em Junho de 1944[20].

Em termos de defesa dos portos, a protecção, por imposição inglesa, começa após 1941, pelo porto de Ponta Delgada, da Horta e do Mindelo. O primeiro por causa dos depósitos de combustível líquidos e o segundo pelos depósitos de carvão. Só depois é que vêm os portos no continente. Por exemplo, a defesa do porto de Lisboa, que é o mais completo, apenas fica concluído em 1943, e inclui: serviço de barragens, rocega de minas, patrulhas e vigilância e um centro coordenador. Este dispositivo juntava aos meios de Marinha os meios de defesa de costa do Exército. Em menor escala, encontrava-se o porto de Leixões[21].

Talvez mais modesto, por se tratar de um único navio, mas não menos importante, foi o papel que o petroleiro da Armada Sam Braz desempenhou durante o conflito. Este navio foi mandado construir em 1938 para apoiar a esquadra, no recém-inaugurado Arsenal do Alfeite, na margem Sul do Tejo. Com 3.500t de deslocamento, foi o maior construído na altura, tendo a sua construção apenas ter sido concluída em Novembro de 1942. Contudo, as dificuldades em Portugal conseguir importar combustíveis líquidos, não só pela escassez de petroleiros (alvos preferenciais dos U-boats), como também das limitações em importação impostas pelos Aliados, levaram que no período da guerra o navio fosse utilizado, quase exclusivamente, no transporte desses produtos. Nestas funções, realizou cerca de 24 viagens ao Mar das Caraíbas e quase em exclusividade às Ilhas de Aruba e Curaçau nas Antilhas Holandesas (uma em 1942 a Curaçau, oito em 1943, sete em 1944 e oito em 1945)[22]. De referir que estas ilhas, apesar de não disporem de petróleo, eram providas de importantes refinarias situadas junto de portos naturais ou canais profundos.

Estas viagens, de ida e volta de Lisboa às mencionadas ilhas, demoravam, em média, 40 dias, sendo o rumo indicado todas as manhãs de Lisboa, segundo informações facultadas pela Embaixada dos EUA. O objectivo era o navio não se cruzar com os comboios de navios Aliados que navegavam rumo à Europa, embora fosse frequente os tripulantes avistarem longos comboios de navios que navegavam no sentido contrário, sendo por vezes advertido por navios de escolta para mudar de rumo[23]. Este não era um procedimento habitual. Por norma, Portugal apenas tinha de informar, com antecedência, os movimentos previstos dos seus navios às embaixadas da Inglaterra e da Alemanha[24].

De entre as diversas peripécias que ocorreram com este navio há duas a destacar. A primeira ocorreu logo na primeira viagem, em que apesar do navio se encontrar desarmado com o casario pintado de branco, o costado de cinzento e ostentar grandes marcas de nacionalidade, no dia 2 de Dezembro de 1942 um submarino alemão obrigou-o a parar a tiro de canhão, só o deixando prosseguir após ter verificado a identidade do navio. A outra situação ocorreu em Março de 1944, em que o navio transportava, de forma “clandestina" em relação aos alemães, 1206 madeirenses para trabalhar na indústria da refinação do petróleo naquele pequeno país insular do Caribe. Todos iam com um contrato de trabalho invejável e transparente assegurado na petrolífera Shell. Aparentemente, durante essa viagem e, contrariamente ao que seria também habitual, o navio integrou um enorme comboio Aliado com mais de 150 barcos, entre navios civis e militares, que implicou várias alterações de rota e várias semanas de mar[25].

Também quase desconhecida são as peripécias e as dificuldades que os escassos meios da Marinha em Macau passaram durante o período da guerra. Situações essas que originaram das situações mais complicadas para a Armada. Ainda antes de 7 de Dezembro de 1941, face ao ambiente de guerra existente na região, fruto da invasão da China pelo Japão, Portugal conseguiu manter nesse território simultaneamente dois Avisos, para além da pequena lancha Macau. Contudo, após o início da guerra, apenas ficou um único Aviso. O primeiro nesta nova “modalidade" foi o Gonçalo Velho, cuja comissão decorreu entre Junho de 1940 e Março de 1941. Este foi rendido pelo Aviso João de Lisboa que largou de urgência dos Açores no início de 1941 e chegou a Macau em Maio desse mesmo ano. Após o ataque a Pearl Harbour e a ocupação de Hong Kong pelos japoneses, a presença do mencionado Aviso tornou-se complicada. Assim, um ano depois da chegada do navio ao oriente, é-lhe ordenado regressar a Lisboa, fazendo a viagem Oeste-Leste, por imposição do Japão. Aparentemente o navio navegou na zona da célebre batalha de Midway, sem ser avistado por nenhum dos contendores.

Em terra, Macau, apesar de não ter sido ocupado como ocorreu com Timor, também sofreu terríveis provações durante o conflito. O enorme aumento do número de habitantes, devido à chegada constante de refugiados de Hong Kong e da própria China, ocasionou imensas dificuldades, mesmo ao nível mais básico, como era a alimentação. No que se refere aos escassos meios materiais e humanos da Marinha presentes no território, em diversas situações o Capitão do Porto pouco ou nada conseguiu fazer contra as actividades japonesas no território. Inclusivamente, um dos navios da capitânia acabou por ser “requisitado" pelos japoneses. Já no final da guerra, a própria aviação americana chegou também a bombardear o território[26].

Não menos fácil foi a situação de Timor, o único território nacional ocupado por dois dos beligerantes. Efectivamente, nos meses finais de 1941, sob o pretexto de um possível ataque japonês, o território foi ocupado por forças australianas e neerlandesas. Após difíceis negociações com os Aliados e com a promessa do envio de um contingente militar numeroso, Portugal conseguiu negociar a retiradas das forças Aliada[27]. Desde Moçambique, foi preparada uma força expedicionária que embarcou no paquete João Belo, escoltado pelo Aviso Gonçalves Zarco. Esta força, que era composta por 800 homens das diversas armas, largou de Moçambique a 26 de Janeiro de 1942. Poucos dias depois, a 19 de Fevereiro, os japoneses desembarcaram e ocuparam Timor, tendo os navios recebido as notícias da invasão por rádio directamente desde Dili, no dia 21, quando estes se encontravam no meio do Oceano Índico. No dia 27 de Fevereiro, é ordenado aos navios alterarem o rumo e seguirem em direcção à Austrália. Apesar de politicamente Oliveira Salazar ter condenado o acto, Lisboa ainda não sabia o que fazer com a força expedicionária. Só no dia 2 de Março é que a força é ordenada seguir para Colombo, ou seja, retroceder, numa altura em que os navios já se encontravam com pouco combustível e poucas provisões. Finalmente, a 17 de Março os navios portugueses largam de Colombo com destino ao porto de Mormugão na Índia, tendo o paquete seguido, quase de imediato, para Moçambique, após ter desembarcado os homens que levava a bordo. 

Já o Gonçalves Zarco larga pouco tempo depois para esse destino, onde vai permanecer durante vários meses. Até Dezembro desse ano, realizou várias acções de salvamento a náufragos resultantes de afundamento por submarinos alemães e japoneses[28]. A destacar, o salvamento dos sobreviventes do torpedeamento do navio inglês Nova Scotia, que transportava não apenas militares Aliados, como prisioneiros italianos[29].

Em Janeiro de 1945, Timor volta a ser a razão para se concentrar uma força naval em Moçambique, com o objectivo de reocupar a parte portuguesa da ilha. Assim, sob o comando de Ivens Ferraz, o heroico sobrevivente do combate entre o Augusto de Castilho e o U-139, em 1918, largam em dias e com rotas diferentes, os Avisos Gonçalo VelhoAfonso de AlbuquerqueGonçalves Zarco e o Bartolomeu Dias, escoltando o paquete Angola. Posteriormente, também são enviados os navios Sofala e Quanza, com comida e material diverso. A força naval reúne-se ao largo de Dili em finais de Setembro, que após a rendição do Japão já se encontrava nas mãos das autoridades portuguesas sobreviventes à terrível ocupação nipónica e de forças australianas[30]. Apesar dos vários erros cometidos, em termos logísticos e de planeamento, foi a maior força naval portuguesa no Oriente desde há muitos séculos.​​

Uma neutralidade “frágil"

Conforme já mencionado, na sua posição de país neutral, e para além do caso de Timor, Portugal não travou directamente combates com nenhum dos intervenientes no conflito. No entanto, são inúmeros os exemplos em que o país e os militares são levados ao limite.

Talvez um dos grandes testes a essa neutralidade, raramente mencionado, é a questão dos navios dos países beligerantes em portos nacionais. Em termos dos navios mercantes, mais uma vez, e à semelhança do que ocorreu em 1914, também no início deste conflito os navios mercantes alemães que se encontravam no mar receberam ordens para se refugiar em portos neutrais. Nos portos portugueses, no início da guerra, refugiaram-se 21 navios no total: em Ponta Delgada os petroleiros SS Rudolf Albrecht e o SS Germania e os cargueiros SS Antiochia e o SS Eilkbek; na Horta o SS Klanssckee Luis e o SS Bornhofen; em Lisboa o Heligolands, em Mormugão o SS Braunfels, o SS Drachenfels e o SS Ehrenfels; em Moçambique o SS Allerdortmund, o SS Rufidgi, o SS Uhenfels, o SS Watussi e o SS Ussukuma[31]; em Angola o Windhuk, o SS Adolph Woermann, o SS Adolf Leonhardt, o SS Wameru e o SS Wgogo; em Macau encontrava-se um iate de recreio denominado Loia[32]. Adicionalmente a esta lista oficial, sabemos que na Guiné-Bissau largou, a 14 de Outubro, o SS Halle numa tentativa de se juntar a outros navios alemães que se encontravam nas Canárias. O navio foi interceptado por um meio naval francês e acabou por ser afundado[33].

Mas outros navios, até ao final do ano de 1939, também largaram dos portos nacionais onde se encontravam inicialmente e tentaram regressar à Alemanha. Por exemplo, um dos primeiros navios a largar de um porto português, neste caso de Lourenço Marques, terá sido o SS Ussukuma. Este navio conseguiu chegar sem ser interceptado ao porto argentino Bahia Blanca, a 13 de Outubro. No entanto, acabou por ser afundado pouco depois de se fazer ao mar, por navios britânicos empenhados na busca do célebre Cruzador-de-bolso alemão Graf Spee[34]. Nesse mesmo dia, o SS Uhenfels, com uma importante carga de polpa seca de coco, algodão e ópio, largou de Lourenço Marques, mas foi interceptado na zona da África do Sul por navios Aliados e apresado[35]. Já o SS Adolph Woermann manteve-se no Lobito até 16 de Novembro, data em que largou disfarçado do navio português Niassa. O navio é interceptado ao largo da ilha de Ascensão por um cruzador britânico, o que levou o seu comandante a afundar o próprio navio para evitar a captura. Alguns dias depois, no dia 23, fizeram-se ao mar dois outros navios alemães, aparentemente sem qualquer ligação entre eles. O primeiro foi o SS Antiochia que largou de Ponta Delgada, mas também foi interceptado e sofreu o mesmo destino a Sul da Islândia. O segundo foi o SS Watussi, que largou de Lourenço Marques, foi interceptado e afundado ao largo da África do Sul por navios britânicos que procuravam o já mencionado Graff Spee[36]

Também ocorreu, pelo menos uma vez, outro tipo de situação, que foi os navios mercantes navios alemães fazerem escalas em portos nacionais. Temos, por exemplo, o caso do petroleiro SS Trifels, que faz escala em Lourenço Marques, eventualmente nos dias inicias do conflito, onde substituiu a sua tripulação oriental por elementos alemães que se encontravam nos navios dessa nacionalidade fundeados no porto. Largou e conseguiu chegar a Ponta Delgada nos Açores, a 26 de Setembro. Largou desse porto a 12 de Novembro, disfarçado de navio russo (terá realizado esta operação no porto??), mas acabou por ser interceptado e aprisionado por um navio francês. Os navios entraram em Casablanca no dia 21 de Novembro de 1939[37]. Estes episódios são mais curiosos, pois a 21 de Outubro desse mesmo ano de 1939, Lisboa emitiu instruções a proibir que os navios alemães tivessem liberdade de movimentos nas entradas e largadas de portos nacionais. Como essas medidas só podiam ser implementadas pelas Capitanias, importa perguntar o que falhou!

Cumprindo as regras de neutralidade com menos rigor era o apoio que Portugal dava aos meios navais britânicos. São inúmeros os relatos de pequenos navios Aliados entrarem nos portos nacionais, não só para se reabastecerem, como também para efectuar pequenas reparações. Permanências essas que nem sempre cumpriam com o estabelecido nas regras internacionais.

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Fig. 2 - Capa da RM ilustrando o afundamento do vapor Cassequel português, por um submarino alemão (RM ano VI, nº143-31JAN1942)​​

 

A neutralidade portuguesa também foi posta à prova com os cerca de 10 navios nacionais que foram afundados pelos beligerantes, em especial por submarinos alemães. Contudo, também ocorre pelo menos um, o vapor Santa Isabel, que foi afundado por um submarino inglês no Mediterrâneo, por engano. Investigações mais recentes mostram que esse número poderá ter sido maior, se acrescentarmos navios que mudaram de bandeira após terem sido “requisitados", ou melhor “capturados" por algum dos países beligerantes. Haverá alguns exemplos no Oriente, de navios afundados por submarinos americanos quando navegavam com bandeira japonesa[38]. Outros navios houve, em especial navios e embarcações de pesca, que foram atacados com fogo de armas ligeiras por aeronaves de ambos os contendores, conforme informações que é possível encontra na documentação da época existente no Arquivo Histórico da Biblioteca Central de Marinha.

Mais numerosas são as inúmeras violações dos espaços de jurisdição nacional, em especial ao longo da orla costeira. Essas violações ocorriam no mar, com os navios Aliados a navegar dentro do Mar Territorial nacional (até 3 milhas de costa), para tentar evitar ataques da aviação alemã. Mas essas violações também eram realizadas por vectores aéreos de ambos os lados, que ou por combate ou por avaria acabavam por aterrar ou cair em território nacional[39]

Para além do território continental, ocorreram também várias situações semelhantes em Cabo Verde. Em especial, após o combate naval entre três submarinos alemães e um submarino inglês, em Setembro de 1941, na Baia do Tarrafal, do Monte do Trigo na ilha de Santo Antão. Importa realçar que o combate foi travado a menos de 300 metros da ilha[40]. Nos Açores, em Janeiro de 1942, ocorreu uma situação semelhante, envolvendo um submarino alemão, o U-581, e dois contra-torpedeiro britânico. Os dois U-boats posicionaram-se nos dois extremos do Canal da Horta, aguardando a saída de um navio de transporte britânico, o SS Llanggiby Castle, que tinha entrado no porto da Horta danificado por um torpedo disparado por um submarino alemão. Mais uma vez, um dos submarinos alemães não respeitou as águas de jurisdição nacionais, pois chegou mesmo a “espreitar" à entrada do porto da Horta. Já os britânicos, atacaram o submarino alemão a menos de duas milhas de costa, conforme é possível constatar pela posição dos destroços do mencionado submarino[41]

Mais uma vez, os interesses de Portugal não eram considerados por nenhum dos contendores. E, ao pedido de apoio urgente enviado pelo Capitão do Porto da Horta para que o Contra-torpedeiro português que se encontrava em Ponta Delgada se dirigisse para a zona, a resposta foi, naturalmente, um retundo não. Era preferível não colocar na já complicada situação um navio de guerra português, ainda por cima com uma “aparência" muito britânica. 

Mas, a guerra não se fazia apenas por pessoal fardado. Como é comummente conhecido, Portugal durante a 2.ª Guerra Mundial, e Lisboa em particular, era um verdadeiro “ninho" de espiões de todas as nacionalidades. Entre as diversas áreas de interesse das redes de espionagem, em especial as do Eixo, era a movimentação dos navios Aliados, mercantes e de guerra.

Após a informação ser obtida, nomeadamente nas docas de Lisboa, era necessário passar essa informação de forma rápida de modo que ainda tivesse valor operacional. Uma das formas para passar essa informação era através de rádios clandestinos sem fios.    Conhecedor dessa possibilidade e, muitas vezes, instigados pelos britânicos, Portugal logo no início do conflito, mandou fechar ou confiscar os rádios que eram conhecidos[42]. Apesar dessas precauções, duas situações envolvendo rádios clandestinos são famosas. A primeira é de um Sargento Condutor de Máquinas, que a partir do Farol do Cabo de S. Vicente transmitia com um rádio clandestino os movimentos de navios que observava a partir desse ponto estratégico da nossa costa. Uma pesquisa profunda de José Augusto Fernandes permitiu confirmar o que muitos consideravam quase como uma ficção. Afinal, o dito Sargento tinha um equipamento fornecido pelos alemães[43]. A outra situação, foi a do telegrafista do navio de apoio à frota do bacalhau, Gil Eanes. Neste caso, os britânicos não tiveram qualquer constrangimento em o retirar de bordo do navio quando este se encontrava em alto-mar. Após ter sido levado para Inglaterra, o telegrafista confessou que recebia dinheiro para relatar, via rádio, todos os movimentos marítimos que observasse[44].

Curiosamente, nos dois casos e, contrariamente com o que ocorria normalmente nestas situações, nenhum dos dois teve o desfecho habitualmente reservado aos espiões, o fuzilamento. Ambos sobreviveram à guerra. Por que razão, desconhecemos. ​

Em jeito de conclusões

O facto de Portugal não ter sido um dos países beligerantes durante a 2.ª Guerra Mundial tem suscitado muito pouco interesse aos investigadores para o estudo no âmbito da História Militar. Efectivamente, e ao contrário do que ocorreu em África ainda antes de 9 de Março de 1916, quando a Alemanha declarou guerra a Portugal pela requisição dos seus navios em portos nacionais, as forças portuguesas praticamente não entraram em combate com nenhum dos contendores.

Contudo, o espaço mais propício para que tal confronto pudesse ocorrer seria no mar, onde cerca de uma dezena de navios de pavilhão português foram afundados e um número ainda indeterminado foi alvo de ataques, com consequências menos graves. Outros países houve, como por exemplo o Brasil, em que o afundamento de vários navios por submarinos alemães levou o regime do presidente Getúlio Vargas a declarar guerra à Alemanha, apesar das conhecidas “simpatias" com o regime. Ou seja, uma situação em tudo semelhante a Portugal, mas com um desfecho diferente[45]. Se tal tivesse ocorrido, apesar de mais bem equipada durante a 2.ª Guerra Mundial, em comparação com o anterior conflito, a Armada portuguesa não se encontrava verdadeiramente pronta para responder às ameaças desta guerra. Que, curiosamente, não foram muito diferentes do anterior – faltavam as capacidades de luta anti-submarina e contra as minas. Mas também os outros países não estavam e, naturalmente, durante a guerra não havia capacidade para exportar, em especial para um país com ligações “perigosas" ao Eixo.

Contudo, os meios foram os suficientes para a Armada e o país, graças à posição estratégica dos seus territórios atlânticos e ultramarinos, desempenharem um papel importantíssimo, no salvamento de milhares de homens, mulheres e crianças, vítimas de um conflito em que, mais uma vez, as rotas marítimas foram fundamentais para a vitória dos Aliados.

Apesar de nos últimos anos terem vindo a surgir novos estudos sobre o tema, muito ainda haverá por descobrir, como o caso da participação de nacionais em navios de marinhas estrangeiras, em especial nas marinhas civis[46]. Ou, situações no mínimo “estranhas", como a utilização dos portos nacionais por navios militares de ambos os lados, em especial de um submarino alemão atracado a um cais da Horta, simultaneamente com um navio da Armada americana[47].


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Fig. 3 - Capa da revista alemã Der Adler, mostrando um dos temíveis FW200 – Condor a atacar um navio mercante. Estas aeronaves eram frequentemente avistadas ao largo de Portugal, vindas de Bordeus (der Adler, nº13, 24JUN1941)

 

 

Biobliografia

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NOTAS

[1] Recordamos que as canhoneiras da classe Beira, dos melhores navios que a Marinha teve durante a Grande Guerra deslocavam 500 t.

[2] Eram inicialmente seis, mas dois perderam-se durante a viagem até Portugal.

[3] TELO, António – Homens, Doutrinas e Organização1824-1974, t. I, Lisboa, Academia de Marinha, 1999, pp. 308-315.

[4] TELO, ibidem, pp. 316-319.

[5] TELO, ibidem, pp. 325-327.

[6] TELO, ibidem, pp. 327-332.

[7] Curiosamente, foram construídos nos estaleiros portugueses dois outros contra-torpedeiros, que a pedido de Inglaterra, forma cedidos à Colômbia. TELO, p. 338.

[8] Sloops na terminologia inglesa.

[9] OLIVEIRA, Maurício de – Armada Gloriosa. A Marinha de Guerra Portuguesa no século XX (1900-1936). Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 1936, p. 275.

[10] TELO, ibidem, pp. 339-340.

[11] Para compensar este maior comprimento, estas peças tinham um contrapeso característico na zona da culatra. 

[12] TELO, ibidem, pp. 386-387.

[13] GUERREIRO, Carlos - Aterrem em Portugal, Colares, Pedra da Lua, 2008.

[14] SALGADO, Augusto – “O Navio de Salvamento Patrão Lopes", Revista de Marinha, nº 991, 2016, pp. 62-63), “Navio de Salvamento Newa (pré-1914)", Revista de Marinha, nº 1021, 2021, pp. 78-79 e “Navio de Salvamento Newa em Lisboa (pré-1914)", Revista de Marinha, nº1027, 2022, pp. 62-63.

[15] SALGADO, Augusto - “Portugal and the Spanish Civil War at Sea, 1936–1939", The Mariner's Mirror, 107:1, 54-69. 2021.

[16] BLAIR, Clay – Hitler's U-Boat war. The Hunters. 1939-1942, New York, Random House, 2000. 

[17] GUERREIRO, Carlos – Portugal e o salvamento de náufragos de guerra durante a II Guerra Mundial. Dissertação de Mestrado elaborada para a obtenção do grau de Mestre em História Marítima, Alfeite, 2020. 

[18] SALGADO, Augusto e GUERREIRO, Carlos, “O salvamento dos náufragos do Avila Star", National Geographic – História, nº 5, Jun-Jul 2023, pp. 18-23.

[19] Setenta e cinco anos no mar (1910-1985), Vol. 2, Comissão Cultural da Marinha, Lisboa, 1989.

[20] Setenta e cinco anos no mar (1910-1985), Vol. 9, Comissão Cultural da Marinha, Lisboa, 1997.

[21] TELO, ibidem, pp. 420-421.

[22] Setenta e cinco anos no mar (1910-1985), Vol. 13, Comissão Cultural da Marinha, Lisboa, 2003.

[23] https://barcoavista.blogspot.com/2010/11/navio-de-apoio-sam-bras.html

[24] GUERREIRO, ibidem.

[25] https://www.dnoticias.pt/2019/3/14/194869-historica-viagem-1200-sera-evocada-sabado-no-funchal/

[26] SILVA, António de Andrade e – Eu estive em Macau durante a guerra. Instituto Cultural Macau/ Museu e Centro de Estudos Marítimos de Macau, 1991,

[27] TELO, ibidem, pp. 435-438.

[28] FONSECA, Henrique Alexandre da – “A Viagem do Aviso «Gonçalves Zarco» ao Oriente em 1941-1943", Anais do Clube Militar Naval, Vol. CX, Jan-Mar 1980, pp. 53-66 e Abr-Jun 1980, pp. 377-390.

[29] GUERREIRO, ibidem.

[30] TELO, ibidem, pp. 435-438.

[31] Embora o documento em referência mencione cinco navios em Moçambique, apenas indica o nome de quatro.

[32] AHMNE, S3-E55.P5

[33] ALLOIN, René – “Les forces de blocus Allemands. Année 1939", Navires & Histoire, nº 137, 2023, 26-53. 34.

[34] Idem, p. 47.

[35] Idem, p. 34.

[36] Idem, p. 46.

[37] Idem, p. 39.

[38] Comunicação pessoal de Carlos Guerreiro. Abril 2023.

[39] RODRIGUES, José Augusto – A batalha de Aljezur, 4ª ed., Aljezur, Junta de Freguesia de Aljezur, 2018.

[40] D'OLIVEIRA, Emmanuel e SALGADO, Augusto - “Submarinos à vista em Cabo Verde (1941)", Revista de Marinha, nº 1014, mar/Abr 2020, pp. 78-81.

[41] SALGADO, Augusto e RUSSO, Jorge – “O achamento do U-581. Os Açores na Batalha do Atlântico", Revista de Marinha, nº 996, Mar/Abr 2017, pp. 64-65.

[42] CORSÉPIUS, Yolanda – A Guerra não era ali, [s.l.], edição de autor, 2010, p. 25.

[43] RODRIGUES, José Augusto – A batalha de Aljezur, 4ª ed., Aljezur, Junta de Freguesia de Aljezur, 2018.

[44] GALOPE, Francisco – “O caso do telegrafista do 'Gil Eanes?", Visão História, nº29, Jun2015, pp. 95-97.

[45] RAMOS, Fábio Pestana – A Guerra no Atlântico Sul. A 2ª Guerra mundial em águas brasileiras, Santo André, FPR/PEAH, 2013.

[46] SILVA, Ricardo – “O herói português da Marinha holandesa", Visão História, nº 29, Jun2015, pp. 48-49.

[47] LUTZ, Stephen D. – “The Black and White Ship", WWII Quarterly, Winter 2016, pp.38-45.​


Augusto Salgado

Capitão-de-Mar-e-Guerra da Marinha Portuguesa. Investigador do Centro de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (CH-UL) e do Centro de Investigação Naval da Escola Naval (CINAV-EN).​​​


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Como citar este texto:

SALGADO, Augusto – A Marinha Portuguesa e a 2.ª Guerra Mundial​. Revista Portuguesa de História Militar - Dossier: Portugal no Contexto da Segunda Guerra Mundial, 1939-1945. [Em linha] Ano III, nº 4 (2023).
 [Consultado em ...], 
https://doi.or​g/10.56092/ARTT2046​

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