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O ORIENTE NA CRONÍSTICA PORTUGUESA DO SÉCULO XVI: DO ENCONTRO E DA CONQUISTA

 

 

 

Foto Ana Paula Avelar.jpg

ANA PAULA AVELAR

 

 

 

Resumo

A partir da análise da cronística portuguesa da Expansão, redigida na primeira metade do século XVI, analisa-se o modo como se descreveu o contacto com os espaços asiáticos. Assim a par da desocultação do conceito de Oriente reflecte-se sobre como se construiu uma presença portuguesa extra-europeia e como o domínio em mares e terras do Oriente se constituiu como o tópico narrativo de uma História que se escreve em Quinhentos. 

Interrogando os registos historiográficos sobre o império, a denominada cronística da expansão, expõe-se o «desenho» de uma permanência, a de um tempo longo, que se inaugura a partir do século XV, marcado pela conquista (domínio territorial) onde o encontro forja signos identitários, sendo força agregadora de uma influência formal, expressa pelo domínio da coroa portuguesa, ou informal, o denominado “império sombra". Assim, o objecto matricial deste ensaio é entender como se entrecruzam as modalidades de permanência/ influência portuguesa nos espaços asiáticos e como as mesmas foram sendo transmitidas nestes alvores da Modernidade. 

Palavras-Chave: Oriente; Cronística da Expansão; Império Português; Império Sombra.

Abstract

Based on an analysis of the Portuguese chronicles of the Expansion, written in the first half of the 16th century, we analyse the way in which contact with Asian spaces was described. As well as unveiling the concept of the Orient, we reflect on how a Portuguese presence outside Europe was constructed and how domination of the seas and lands of the Orient became the narrative topic of a history written in the 16th century.

Questioning the historiographical records of the empire, the so-called chronography of expansion, the "drawing" of a permanence is exposed, that of a long time, which begins in the 15th century, marked by conquest (territorial domination) where the encounter forges identity signs, being the aggregating force of a formal influence, expressed by the domination of the Portuguese crown, or informal, the so-called "shadow empire". Thus, the main object of this essay is to understand how the modalities of Portuguese permanence/influence in Asian spaces intersect and how they were transmitted at the dawn of Modernity.

Keywords: East; Expansion Chronicle; Portuguese Empire; Shadow Empire.

 


Nesta reflexão em torno de como o Oriente foi sendo descrito na cronística portuguesa do século XVI importa desde logo explicitar seja o solo discursivo do nosso objecto analítico, seja o conceito de Oriente. Este é intuído no Portugal do Renascimento numa tripla dimensão: a de orientação operatória, designativo do lugar onde o Sol parece levantar-se nos equinócios; a de um espaço de domínio territorial, confluindo e participando da denominação de Ásia; e a de marca/espaço de idealização compósita de que participam múltiplos signos identitários – como Índia, China ou Japão. Como Ramada Curto assinala, este Oriente não seria: “(…) nem um espaço vazio, onde se podia aspirar a projetar atitudes e valores europeus, nem um simples espelho utilizado para criar formas de identidades europeias."[1] Contudo, este signo, o de Oriente, é de imediatamente tomado na nossa escrita da expansão como orientação espacial operatória e domínio geográfico, muito em particular, quando se descrevem as acções de conquista, esboçando-se e consolidando-se a sua idealização compósita quando se narra o encontro e a permanência.[2]

É a presença e domínio em mares e terras do Oriente que de imediato são o tópico narrativo de uma História que se escreve em Quinhentos. Esta subscreve dois registos primordiais, o de uma Historiografia reinícola e a de uma sobre o Império. A primeira regista a história de um reinado, obedecendo a um programa de legitimação e de uma sucessão dinástica, a de Avis. A segunda visa a descrição de um império, o português, que se vai reconfigurando, plástica e organicamente, consoante as circunstâncias.[3] Como António Manuel Hespanha sintetizou, tomando a matriz conceptual de Luís Filipe Thomaz, o império português é como uma rede heterogénea político-administrativa, que apresenta contornos fluídos, naquela que é a gradação que se vai constituindo entre os espaços politica e formalmente submissos e as influências que se constroem noutras áreas.

Esta fluidez resultava não apenas da porosidade e indistinção das fronteiras – uma situação que era geral nas entidades políticas pré-modernas – mas do facto de a rede imperial ter sido estabelecida sobre redes anteriores de outros tipos, nomeadamente redes comerciais, por vezes incompletamente integradas no «império» ou constituindo uma sua extensão ou complemento não político, que formava como que a sua sombra. Noutras ocasiões, a rede «imperial» era acompanhada por uma «colonização» espontânea – tomada a expressão no sentido original da palavra «colonização», como a fixação de súbditos do império, como particulares, para além das suas fronteiras, constituindo comunidades mais ou menos autónomas em novos territórios.[4]

Mas se este é o «desenho» de uma permanência, a de um tempo longo, que se inaugura a partir do século XV, marcada pela conquista (domínio territorial) onde o encontro forja um signo identitário, ou é a força agregadora de uma influência, é a descrição desta presença (conquista /encontro) que é o objecto da historiografia sobre o império, escrita no Portugal de Quinhentos. Logo na primeira metade do século XVI redigem-se as crónicas da Expansão, isto é, Histórias Gerais sobre domínio imperial, que logo a partir de 1551 são impressas. Fernão Lopes de Castanheda escreve a sua História do Descobrimentos e Conquista da Índia pelos Portugueses, da qual foram impressos 8 livros entre 1551 e 1561, João de Barros a Ásia … cujas três décadas saem entre 1552 e 1563 e Gaspar Correia as Lendas da Índia, que correm manuscritas e só serão impressas já no século XIX.

Refira-se que este último cronista redige igualmente toda uma série de crónicas régias sobre D. Pedro I, D. Fernando, D. João I, D. Duarte, D. Afonso V, D. João II,[5] D. Manuel e D. João III[6] que permaneceram igualmente manuscritas até ao século XX. Tal como nas suas Lendas da Índia tanto o relato sobre D. Manuel e D. João III até ao ano de 1533 é estruturado a partir da: “(…) sequência das armadas que anualmente partem de Lisboa para a Índia, com as habituais incursões pelos acontecimentos europeus e casos estranhos."[7] Nestas crónicas régias frequentemente o leitor é enviado para a leitura das Lendas da Índia.[8]

É certo, que como Luís Filipe Thomaz recorda as crónicas portuguesas da expansão não expõem claramente a sua complexidade, silenciando, por vezes, as várias disputas que ocorriam no seio da corte portuguesa, ou até os projectos fracassados.[9] Estes textos corporizam a necessidade de escrever:

“(…) um devir colectivo que marca o espaço extra-europeu, repercutindo-se intra-europa. A memória do presente, como afirmação de um lugar no concerto das nações europeias, intersecciona-se com a matriz do passado (…).O discurso histórico associar-se-á a um registo épico (…)".[10]Importa não esquecer que logo em 1516, quando Garcia de Resende dá à estampa o seu Cancioneiro Geral defende a necessidade de serem descritos e poetizados: “ Tantos rreynos, & ſenhorios, cydades, vilas castelos, per mar, & per terra, tãtas mil légoas, per foça darmas tomados, ſendo tãta a multidão de gente dos contrayros, & tam pouca a dos noſſos(…)".[11]

Todas estas Histórias gerais sobre o império serviram-se de digressões autorais, como a Suma Oriental de Tomé Pires, os livros de Duarte Barbosa ou de Ludovico Varthema, ou da epistolografia que cruzava os oceanos. O modelo discursivo desta cronística da expansão tem como ponto de partida fulcral a viagem de Vasco da Gama para a Índia, prolongando-se até ao presente, ao momento em que o autor a escreve. Assim, Fernão Lopes de Castanheda redigiria a sua História… até ao governo de D. João de Castro, matéria do seu décimo livro, ainda que não se conheça a versão impressa dos seus nono e décimo livros, Gaspar Correia descreve nas suas Lendas da Índia os diferentes governos e vice-reinados até D. Jorge Cabral, e João de Barros narraria a presença portuguesa na Ásia … até 1539. Nestes textos segue-se uma matriz clássica onde se evoca um renascer dos valores antigos – clássicos, gregos e romanos – a par da novidade do que agora se conhece, isto é, o encontro com outros espaços, outras culturas, sem nunca deixar de ser prevalecente a afirmação de um domínio.

A Década é a unidade temporal que organiza a narrativa, pois são dez os livros escritos por Fernão Lopes de Castanheda, as quatro Lendas de Gaspar Correia obedecem a uma estruturação, ainda que algo irregular de dez anos, e a Ásia de João de Barros expõe claramente essa medida de tempo. Tal é feito a par de se interseccionar o Global e o local, afirmando o cronista que, para além desta sua Ásia, projectava escrever um volume sobre a Europa, um outro sobre a África, e por último um sobre a América.[12] Esta cronística da expansão expõe o domínio de Portugal no espaço extra-europeu, e muito em particular por mares do Oriente, sendo que os textos prologais que abrem cada livro evidenciam esta marca, configurando seja o lugar de Portugal e do seu império no concerto das nações europeias, seja aquele que é o tipo de registo histórico que cada autor subscreve. 

É a conquista que domina este discurso, sendo minuciosamente descritas as diferentes contentas e a acção dos diferentes participantes nas mesmas. A organização discursiva desta cronística sobre a expansão articula à simultaneidade dada pelo espaço, onde Ásia/Oriente é o primeiro conceito organizacional, o tempo, cujos “momentos" correspondem aos governos dos vários vice-reis, justapostos ao fluir das armadas. 


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Fig.1 - Lisboa em Georg Braun e Frans Hogenberg, Civitates Orbis Terrarum, 1572 (ed.1593)[13]

 

Recorde-se que o quotidiano desta Lisboa de Quinhentos, é dominado pelo movimento portuário, em que o Tejo, como escreve Damião de Góis na sua Urbis Olisiponis Descriptio (1554): 

"dá leis e normas através de todas as costas do Oceano, na África e na Ásia. A essas leis se submetem, livremente ou à força, reis príncipes dessas províncias, os quais prestam vassalagem aos Portugueses e muitos deles, em número sempre crescente, vivem na obediência à fé de Cristo. O que sucede com o maior acatamento, não só nos domínios das Índia, mas também nos territórios dos Chineses, e nos confins dos Japoneses, povo até há pouco desconhecido na Europa".[14]

A capital do império é marcado pelo ritmo cíclico das constantes partidas e chegadas e na cronística da expansão é a primeira viagem de Vasco da Gama a que simboliza a partida de Lisboa em “todas" as posteriores viagens. Esta é a viagem “iniciática" para os portugueses. Assim Gaspar Correia revela: “(...) o seu dar à vela, e sair do rio, indo el-rei no seu batel os acompanhando, e falando a todos com benções e boas horas se despediu deles, ficando sobre o remo até desaparecerem (...)".[15] Por seu turno, Castanheda descreve a gente de Lisboa, “(...) a mais dela chorava de piedade dos que se iam embarcar crendo que haviam todos de morrer (...)".[16] Por fim, João de Barros evoca a sua “(...) praia das lágrimas para os que vão, e terra de prazer aos que vem (...)".[17] Serão exactamente estes dois últimos cronistas citados, a par do relato da primeira viagem de Vasco da Gama, que servirão de fonte a Luís de Camões. Em Os Lusíadas ecoam os testemunhos na palavra poética que descreve a saída da barra:

Já a vista, pouco e pouco, se desterra

Daqueles pátrios montes, que ficavam;

Ficava o caro Tejo e a fresca serra

De Sintra, e nela os olhos se alongavam.

Ficava-nos também na amada terra

O coração, que as mágoas lá deixavam.

E já despois que toda se escondeu,

Não vimos mais, enfim, que mar e céu.[18]


A presença portuguesa no Índico estabelece-se através da fixação nas linhas de costa, em lugares estratégicos que procuravam dominar os eixos comerciais, intervindo a coroa portuguesa nos circuitos económicos locais, como sucede com a nossa participação na rota da pimenta do Malabar, através da apreensão dos equilíbrios das forças locais em presença. Como Russell-Wood claramente sistematizou a primeira viagem de Vasco da Gama (1497-1499) abriu um novo momento no estabelecimento da presença portuguesa nos espaços extra-europeus, nomeadamente no Índico.

No sudeste africano, os Portugueses construíram feitorias fortificadas (Sofala, 1505) e fortes, estabeleceram pequenas comunidades em Pemba e Pate, e fundaram um colonato estrategicamente importante em Moçambique. Possuíam colonatos em Ormuz e Mascate, no Golfo Pérsico. No século XVI, em rápida sucessão foram estabelecidos colonatos no Guzarate (Diu, Damão), na costa ocidental da Índia (Bombaim, Goa, Cananor, Calecu, Cranganor e Cochim, No Sri Lanka (Colombo e Jafna), na costa do Coromandel e no Norte da baía de Bengala (Ugolim), e na actual Indonésia, de Malaca (1511), Timor, Tidore e Amboíno. Macau foi fundada cerca de 1557, e em 1570 os Portugueses instalaram-se na pequena vila de piscatória de Nagasáqui. Além destes colonatos, havia bolsas de Portugueses espalhadas por toda a Ásia, do Levante à China.[19]

A construção desta presença vai sendo esboçada na cronística da expansão à medida que a mesma acontece, pois importa salientar que desde a primeira viagem de Vasco da Gama até 1505, são as sucessivas armadas portuguesas que garantem o trato. A partir da sua segunda viagem, em 1502, é que permanece nas costas do Malabar, uma armada que policia as costas, procurando assegurar o domínio do espaço. Os capitães do mar serviam-se dos portos de Cananor e, fundamentalmente, de Cochim, como base de apoio. 

Por vezes, os cronistas da expansão não se limitam a descrever através da palavra os espaços narrados, usando o desenho como forma de precisar o seu discurso. Gaspar Correia fá-lo nas suas Lendas da Índia, acentuando o facto de lhe ter sido entregue por D. João de Castro a missão de zelar pela fidelidade que deveria estar presente nas pinturas que retratavam os vários governadores e vice-reis portugueses, as quais comporiam uma galeria que faria perdurar a memória de um passado. A presença de Gaspar Correia no espaço asiático durante várias décadas,[20] acompanhando os governos de Afonso de Albuquerque, Lopo Soares de Albergaria, Diogo Lopes Sequeira, D. Duarte de Meneses, D. Vasco da Gama, D. Henrique de Meneses, Lopo Vaz de Sampaio, Nuno da Cunha, D. Garcia de Noronha, D. Estevão da Gama, e o próprio antecessor de D. João de Castro, D. Martim Afonso de Sousa qualificava-o para a tarefa.

Atente-se igualmente no facto de nas suas Lendas … possuirmos os retratos destes governadores, para além do de Jorge Cabral, que Gaspar Correia também conheceria. A par destes retratos possuímos ainda os desenhos do rio de Malaca, Calecut, Adem, Coulão, Ormuz, Judá, Ceilão, Chalé, Diu e Baçaim. 


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Figura 2 - Representação de Cananor in Gaspar Correia, 
Lendas da Índia[21]

 

Veja-se, só título de exemplo, como Gaspar Correia descreve a construção de uma nova fortaleza em Cananor, por Lopo Vaz de Sampaio em 1526, apresentando um desenho da mesma.[22] Já anteriormente este cronista descrevera a construção da fortaleza no tempo de D. Francisco de Almeida (1505), expondo a intervenção do feitor Gonçalo Gil Barbosa e do capitão Lourenço de Brito e o modo como esta tinha sido construída, a sua planta, os aposentos para os homens, a protecção que oferecia contra possíveis ataques.[23] Todavia, o desenho da mesma só surgiria a quando da sua edificação em 1526, num tempo em Gaspar Correia estaria já em terras asiáticas. Nesta sua narrativa é maior o detalhe e após referir que a velha fortaleza de Cananor, erigida pelo vice-rei da Índia, era pequena e estava em mau estado, Gaspar Correia assinala que a mesma teria sido destruída para que a nova fosse edificada.

A palavra explicita o desenho, percorrendo o edifício, o modo de construção, a sua envolvência, não deixando de ser sinalizada a função dos vários espaços. Detalham-se os espaços, sinalizando-se que se fez:

"n'ella huma só torre de menagem, muy forte, de tres sobrados, com varandas por fóra, e aposentos por dentro pera o capitão e seus homens; e fez uma cerqua de forte muro, com muy larga e funda caua que cortaua a ponta de mar a mar, em que dentro ficaua grande lugar grande pouoação. E foy a caua assy grande porque d'ella se cortaua a pedra que se punha no muro, que era de quinze pés de largo; e no meo d'este muro huma forte torre com artilharia que tudo guardaua, e no cabo d'este muro, sobre a baya, fez hum cubello redondo muy forte, com muita artelharia (…); e per debaixo delle se fez a porta pera o raualde e pouoação dos mouros, com huma ponte de madeira sobre a caua levadiça (…) da banda de fóra pola borda da caua se fez grande pouoação de casas de madeira, de portugueses e homens christãos da terra, com ortas; e se fez grande cordoaria, em que se faziam muytas amarras, que estauão feitas pera as naos do Reyno quando chegauão; que aquy em Cananor tomauão o gengiure e se partião para Portugal".[24]

Já Fernão Lopes de Castanheda pormenoriza a construção da primeira fortaleza de Cananor no tempo de D. Francisco de Almeida, precisando como Gil Gonçalo Barbosa: “tinha ja feytos alicerces pera a fortaleza que parecião ſobela terra, o qual lugar era muyto forte por ſer hu͂a pontinha muyto delgada cercada de penedia & de mar: & da bãda do ſertão tinha entrada dobra de vinte braças, & outras tantas eſtaua fora dela hu͂ poço dagoa, de que forçadamente os da fortaleza auião de beber (…)".[25] Castanheda explicita a acção de Lourenço de Brito e como o próprio rei de Cananor contribuiria com materiais e mão de obra para a sua edificação, conseguindo-se que: “(…) em cinco dias foy posto o muro da fortaleza todo â roda em altura que ſe podia aſſentar artelharia."[26]

Por seu turno, João de Barros aponta como o feitor Gil Barbosa tinha preparado a protecção dos portugueses, e regista a determinação de D. Francisco de Almeida em erigir uma fortaleza no local onde os portugueses se tinham fixado, provendo o vice-rei, como capitão Lourenço de Brito, dando as ordens necessárias para que a construção fosse efectuada.[27] O primeiro momento em que é referido o modo como esta fortificação foi implantada no terreno surge quando, em 1507, a mesma sofre um cerco pelo então Kōlattiri, raja de Cananor (Abraham, 2020:132). Barros salienta o reforço da fortaleza: “Lourenço de Brito mandou fazer hu͂a tranqueira muy forte com hu͂a cáua a maneira de barbacãa alem do muro da fortaleza: nam tanto por ſegurança della quanto por razam de hum póço de que bebiam, que eſtáua dahy  hum tiro de pédra, de fronte do qual elrey de Cananor tinha mandado fazer hu͂a cáua que cortáua de már a már(…)"[28] A par desta informação referenciam-se os estratagemas usados pelos sitiados e sitiantes para atingir os seus fins.

A construção de feitorias-fortalezas em várias praças, onde se iam fixando comunidades portuguesas e a consequente formulação de uma estrutura político-administrativa da coroa portuguesa no espaço asiático consolida uma presença, um poder. Para tal foi decisiva a permanência, a partir de 1505, de um governador ou vice-rei e de um oficialato português. No momento em que o segundo governador da Índia, Afonso de Albuquerque (1509-1515) morre o “Estado Português da Índia" possui, grosso modo, uma configuração estratégica que se manterá até 1620. É certo, que após o governo albuquerquiano a presença portuguesa continuará a fortalecer-se, celebrando-se acordos com os diferentes potentados, aproveitando-se disputas, construindo-se um empório comercial através de estrategicamente se irem cartografando pontos de apoio nas costas. 

Vai-se firmando uma permanência, através de avanços e retrocessos, monopolizando a coroa os vários tratos, ou dando maior ou menor liberdade aos particulares portugueses, asiatizados, ou asiáticos que negoceiam nas várias praças sob o seu domínio. É exactamente a partir do governo de Lopo Soares que se intensifica a influência informal noutros espaços orientais. Dá-se então início a uma: “(…) diáspora de aventureiros, mercenários, mercadores privados, corsários e piratas pelas zonas onde a presença oficial da Coroa era fraca ou inexistente, como as costas do golfo de Bengala, as ilhas da Insulíndia, a Península Indochinesa e, finalmente, o Extremo Oriente."[29]

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Figura 3 - Mapa do comércio das especiarias e drogas do Oriente no séc. XVI
[30]

 

A partir da primeira viagem de Vasco da Gama, os portugueses constataram de que nem todas as especiarias se davam no Malabar. Neste espaço cresciam a pimenta e o gengibre, mas a canela vinha de Ceilão e o cravo, a noz, a maça e outras drogas e ervas aromáticas chegavam de um distante arquipélago que se situava mais para Leste. Rapidamente se compreendeu a importância de Malaca como placa giratória dos circuitos comerciais e centro redistribuidor das especiarias da Insulíndia Oriental. Afonso de Albuquerque conquista esta praça, um ano depois da tomada de Goa, que se viria a tornar o centro de decisão do nosso domínio no Oriente, aí permanecendo o vice-rei ou governador. Continuando a procura dos centros produtores de especiarias, lançar-nos-íamos no conhecimento das ilhas de Sunda e das Molucas.

Em 1513, Jorge Álvares alcançaria o solo chinês, ainda que a coroa portuguesa não tenha fortemente manifestado uma vontade explicita de dominar as águas do mar da China. Todavia, os portugueses, por iniciativa individual, e tendo como plataforma de expansão Malaca continuariam a aportar as costas do Celeste Império, estabelecendo-se em 1540 em Liampó e em 1557 na ilha, que tomaria o nome de Macau. Em 1543 aportariam às costas do Japão, isto é, chegariam à ilha de Tanegashima, no sul de Kyushu. 

Recorde-se que Adem pagaria tributo à coroa portuguesa e que após a tentativa de tomar Ormuz em 1507, só em 1515 tal se conseguiria, erigindo-se três anos depois uma fortaleza em Columbo, no Ceilão. O delta do Ganges seria igualmente explorado por esta altura, estabelecendo-se relações comerciais com o reino de Pegu e estendendo-se a nossa presença na costa do Coromandel. As porcelanas e sedas da China, o cravo e noz de moscada das Molucas, a pimenta de Samatra e da costa do Malabar, a canela de Ceilão, os tapetes da Pérsia, nas palavras de Damião de Góis, todo um empóriocopiosíssimo de riquezas era carregado nas armadas que anualmente cruzavam os oceanos e afluíam a uma das rainhas do Oceano[31] Lisboa, a capital do reino de Portugal.

A apreensão de uma geografia do Índico vai neste século XVI sendo paulatinamente traduzida no modo como os portugueses representam o mundo, introduzindo-se o experienciado, na transmissão da novidade, na descrição dos espaços. Tal surge nomeadamente na forma como se regista o real, pois impõe-se a necessidade de rigorosamente se anotar as rotas oceânicas. Mesmo na descrição narrativa do espaço impõe-se uma representação do real, como instrumento de orientação. Atente-se como na cronística se procede, como que a uma notação topográfica do lugar. Goa na História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses é uma cidade cuja costa dista 50 léguas de Dabul e que, navegando para Sul, está 16 graus da banda do Norte, expandindo-se por 7 ou 8 léguas de rota.[32] João de Barros, na sua Ásia… refere, por exemplo, que Goa se encontra implantada na ilha de Tisuadi, que quer dizer “ trinta aldeias", derivando a sua designação de ilha do facto de ser torneada por dois estreitos de água salgada:

“(…)per duas entrádas que o mar fáz na te̦rra; hu͂a da párte do nórte onde eſtá  ſituada a cidáde, & outra e da banda do ſul onde ella antigame͂te foy fundáda(…) E lá dentro eſt es dous eſteiros ſe comunicam  ambos(…) O cõprimẽto desta jlha Tiçuarij, começãdo do oriente no pásso chamádo de Benestarij onde ella passa á térra firme té o már entre as duas barras que stam contra o ponente & erã tres légoas & de largura hũa."[33]

Também Gaspar Correia sinaliza os espaços, ainda que tenha advertido o seu leitor de que nas suas Lendas … não escreveria: “ (…) nada das terras, gente e trato porque houve huns que n'isso se ocuparão, de que vi alguns volumes e mormente um livro que d'isso fez Duarte Barboza escrivão da feitoria de Cananor (…)."[34] Mas apesar deste esclarecimento não deixa de informar que os pilotos portugueses tomavam notas, cumprindo o regimento que levavam para que as mesmas fossem transmitidas aos que, no futuro, fizessem tais viagens.[35] Aqui e ali Correia situa espacialmente a sua narrativa, dando, por exemplo, informação relativamente às léguas necessárias se chegar a este ou aquele destino. 

Nesta conquista de um espaço, e ainda que Gaspar Correia enfatize o facto de não efectuar uma descrição das terras, gente e trato, a História de um espaço não deixa de ser referida. Veja-se como ele contextualiza a entrada de Afonso de Albuquerque no rio de Goa, a Velha, no momento em que este toma a cidade. Fá-lo: “(…) pera boa enformação do que he este Reyno e senhorio de Goa."[36]

Estas crónicas da expansão são produzidas num contexto social específico e plasmam códigos, expectativas e ideologias também elas específicas.[37] Participam da representação do “mundo do Outro", elaborada a partir do ponto de vista do autor. Este intui, compreende e explica a realidade, modelando-a. Ele exibe a alteridade, expondo/ descrevendo os lugares onde se chega, descrevendo o espaço físico e humano, não deixando de apresentar os diferentes costumes. Tal processo é declaradamente assumido por Fernão Lopes de Castanheda e João de Barros, os quais apesar de se servirem de outros textos, nomeadamente dos escritos por Duarte Barbosa, não deixam de detalhar o seu próprio olhar. No caso de Fernão Lopes de Castanheda[38], a sua permanência de cerca de 10 anos no espaço oriental, validam a sua escrita, no caso de João de Barros tal corroboração decorre do recurso a outros testemunhos presenciais.[39]

Nesta descrição do Outro prefigura-se um exotismo, entendido, como a assumpção de uma posição relativista que se opõe a uma postura universalista, e que se manifesta uma relação de si com o outro, em que este último é essencialmente o diferente do Eu. Esta prefiguração indicia já a observação empírica sobre um conjunto/espaço, entendido nas suas múltiplas vertentes, uma cultura definida exclusivamente pela relação que o observador mantém com esse conjunto, valorizando-se o que é estranho ou desconhecido.[40] Neste “nosso mundo" de Quinhentos prevalece o particular na descrição da novidade, ainda que se procure apresentar o conjunto na descrição dos lugares, através da representação na “palavra". Nesta exposição de um contacto com o Outro prevalece o defrontar do diferente, colocando-se paralelamente, duas realidades, a conhecida – europeia/portuguesa, e a novidade asiática na sua pluralidade. Dá-se a conhecer sensorialmente o diferente. 

Tome-se um exemplo, a descrição dos naires. Apesar da advertência Gaspar Correia detalha exatamente esta casta, salientando como são ensinados na arte da guerra, a sua origem social, a sua excelente forma física, boa disposição e cortesia, a forma como usam os seus cumpridos cabelos presos:

"Seus panos brancos lauados com agoa de cosedura do arroz, com que fica m muyto tesos, encanhados, que vestem muy apertados do embigo até meas coxas, assi homens como os panos assi postos trazem outros deitados derredor, ao modo de touca com tres voltas por cima das cadeiras(…) Ás vezes por galantaria atão nas cabeças paninhos assi encanhados de cores: isto usão em dias de festa, que então vestem panos de seda e de pinturas d'agoa e os corpos muy sandolados com sandolo moído com cheiros, e se arrayão com joyas de ouro, maninhas, orelheiras nas orelhas, e assi manilhas das pernas. Não usão de casamento, nem certa amiga, porque dizem que o homem que tem obrigação com molher nom pode seruir seu senhor".[41]

A observação detalhada do outro impera nos cronistas da Expansão que permaneceram algum tempo por terras asiáticas. Como Gaspar Correia também Fernão Lopes de Castanheda sinaliza a linhagem dos naires, a forma de vestir:

"não tem outro officio ſe não pelejar quando he neceſſario, & ſam gentios: traze continuamente as armas com q͂ pelejão (…) andão coelas muyto hõrrados & galãtes: porem andão nus ſómente com hu͂s panos dalgodão pintados q͂ os cobrem da cinta ate ho giolho: & deſcalços com toucas nas cabeças. (…) Nem os reys pode fazer Naires ſe não fore de linhagẽ de Naires (…). Eſtes per ley do reyno não podẽ caſar (…)"​.[42]

Por seu turno, João de Barros compensa o facto de não ter estado no Oriente com uma ampla cultura livresca que usa para apurar os quadros informativos que transmite sobre os costumes. Ele utiliza o signo do conhecido, aplicando-o às novas realidades do encontro. O naire é “armado cavaleiro" à semelhança do que ocorre na Europa de Quinhentos: “Eſte nóme Naire ajnda que ſeja do ſangue delles, nam o póde algu͂ ter ſenam depois que é armádo caualeiro(…) E acertãdo o ſeu rey ou ſenhor que ſeruem de morrer na batálha, & elle ſe nam achou naq͂lle lugar pera morrer com elle: ajnda que ſeja em reyno eſtranho, la vam demandar ſua mórte".[43] Assim, para João de Barros expor a novidade passa pelo precisar minucioso das novas práticas que agora seriam reveladas em Portugal, como, por exemplo, as várias artes de adivinhação usadas por terras asiáticas, explicitando-as. 

Enfim, se de imediato foi imperioso para Portugal narrar o seu domínio pelos mares e costas asiáticas, a cronística da expansão não se limitou a descrever os diferentes momentos de uma conquista, a par desse desígnio expôs a novidade de outros espaços, traduziu o diferente, deu a conhecer aquele que era um tempo novo. 


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TODOROV, Tzetan – Nous et les autres. La réflexion française sur la diversité humaine. Paris: Le Seuil, 2001.

 


NOTAS

[1] Curto, 2019, p. 85.

[2] Avelar, 2022, p. 45.

[3] Howe, 2002, p. 30.

[4] Hespanha, 2019, p. 21.

[5] Correia, 1996.

[6] Correia, 1992.

[7] Costa, 1992, p. XLIX.

[8] Avelar, 2022, p. 31

[9] Thomaz, 2021, pp. 11-12.

[10] Avelar, 2003, pp. 14-15.

[11] Resende, 1973, p. 1.

[12] Avelar, 2022, p. 55.

[13]  Disponível em Braun Lisboa HAAB - Georg Braun - Wikipedia [consultado em 05/01/2024].

[14] Góis, 1988, p. 62.

[15] Correia, 1975, p. I-15.

[16] Castanheda, 1979, p. I-11.

[17] Barros, 1988ª, p. 125.

[18] Camões, 1972, p. 160.

[19] Russell-Wood, 2007, pp. 188-189.

[20] Avelar, 2016b, p. 308.

[21] Disponível em Cannanore_Lendas_da_Índia.png (1424×936) (wikimedia.org) [consultado a 05/01/2024].

[22] Correia, 1975, p. III-16.

[23] Correia,1975, p. I- 728.

[24] Correia, 1975, p. III-16.

[25] Castanheda, 1979, p. I-253.

[26] Ibidem.

[27] Barros, 1988a, p. 392.

[28] Barros, 1988b, p. 30.

[29] Thomaz, 2021, p. 120.

[30] Mapa desenhado por Humberto Avelar.

[31] Góis, 1988, p. 29.

[32] Castanheda, 1979, p. I-512.

[33] Barros, 1988b, p. 187.

[34] Correia,1975, p. I- 2.

[35] Ibidem, p. 162.

[36] Correia, 1975, p. II-55.

[37] Allen, 2000, p. 212.

[38] Avelar, 2016 a, p. 261.

[39] Loureiro, 2016, p. 162.

[40] Todorov, 2001, p. 356.

[41] Correia, 1975, p. II-357.

[42] Castanheda, 1979, p. I-95.

[43] Barros, 1988a, p. 355.



Ana Paula Avelar

Professora Associada com Agregação na Universidade Aberta, investigadora integrada no CHAM-Centro de Humanidades (Universidade Nova de Lisboa-Universidade dos Açores), investigadora associada no Centro de História e no Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Coordenou e participou em projectos nacionais e internacionais. É autora de ensaios, capítulos e livros nas áreas dos Estudos Históricos, Asiáticos e Cultura Portuguesa. É membro de várias academias nacionais e internacionais, pertencendo neste momento à direcção da Academia de Marinha.​


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Como citar este texto:

AVELAR, Ana Paula, – O Oriente na Cronística Portuguesa do Século XVI: do Encontro e da Conquista? Revista Portuguesa de História Militar - Dossier: Génese do Império Português do Oriente. [Em linha] Ano III, nº 5 (2023); https://doi.org/10.56092/OTCE9361 [Consultado em ...].

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