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A IMPRENSA PORTUGUESA E A PROCLAMAÇÃO DE EMANCIPAÇÃO DE LINCOLN (1862-1863)

 

 

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Júlio Rodrigues da Silva​


 

Resumo

Proclamação Final de Emancipação, de 1 de janeiro de 1863, foi uma das imagens mais emblemáticas da Guerra Civil Americana (1861-1865) – um dos textos fundadores da modernidade americana e europeia. A conclusão definitiva só se verificou com a ratificação da Décima Terceira Emenda da Constituição de 1787, em 18 de dezembro de 1865. O presente artigo analisa as reações da imprensa portuguesa a este processo de emancipação.

Palavras-chaves: Abolicionismo; Escravatura; União; Proclamação; Emancipação.

 

Abstract

The Final Emancipation Proclamation of January 1, 1863, was one of the most iconic images of the American Civil War (1861-1865) – one of the founding texts of American and European modernity. The definitive conclusion was only verified with the ratification of the Thirteen Amendment to the Constitution of 1787, on December 18, 1865.This article analyzes the reactions of the Portuguese press to this process of emancipation.

 

Keywords: Abolitionism; Slavery; Union; Proclamation; Emancipation.

 

1. Paz ou liberdade

Os observadores políticos da época estranharam, desde o início, a impossibilidade de se chegar a um acordo entre o Norte e o Sul como acontecera no passado. O prolongamento indefinido do conflito era considerado uma luta absurda entre os cidadãos do mesmo país. Portugal não foi exceção e partilhou com os outros países da Europa a mesma perplexidade perante a evolução dos acontecimentos. A imprensa portuguesa revelou um progressivo desapontamento com a intransigência das duas partes, estranha do ponto de vista da experiência histórica europeia. Isto resultava da natureza, da guerra civil americana só ser compreensível tendo em vista o processo de emancipação dos escravos e o redesenhar das instituições políticas americanas.

Começando pela imprensa legitimista constatamos, nas páginas da Nação, a ausência de uma crítica direta à decisão do presidente Lincoln de libertar os escravos dos estados confederados. A Proclamação Preliminar de Emancipação de 22 de setembro de 1862 não é considerada o resultado de um processo gradual de emancipação, mas sim o das dificuldades reais, ou supostas, da causa do Norte. O desagrado perante esta medida aproxima os redatores deste jornal dos defensores de um projeto de paz que passaria pela independência do Sul, sob a mediação diplomática francesa. A atuação do imperador Napoleão III, nesta questão, é correta apesar de se tratar de um governante ilegítimo da França[1]. Os jornais católicos tomam também posições claras, como é o caso do Amigo da Religião, ao recusar a ideia de que o restabelecimento da União pode conduzir ao fim da Peculiar Institution pois, a forte resistência dos sulistas, deixa prever a sua sobrevivência nos Estados Unidos reunificados[2]. O Bem Público partilha esta visão da guerra civil americana, considerando que a Proclamação Preliminar vai permitir a sua existência em todos os estados que se submetessem até 1.º de janeiro de 1863[3]. Nesta ótica a emancipação dos escravos não teria qualquer impacto direto na guerra e no futuro político dos Estados Unidos.

Correspondência de Portugal é um dos jornais mais importantes da imprensa regeneradora e, para os seus redatores, o essencial é a possibilidade do Sul, ser independente, desde que se ponha de lado a preservação da escravatura. Esta é o elemento antipático da causa dos confederados que impede que a causa dos separatistas se torne aceitável aos olhos da opinião liberal da Europa. Neste sentido, alude ao espanto, nos Estados Unidos, pelo inicial anúncio da pretensão de Lincoln de emancipar os escravos pedindo para esse efeito dinheiro ao Congresso. Na opinião dos redatores da Correspondência de Portugal tratava-se de utilizar a libertação dos escravos como arma de guerra contra o Sul, devido aos insucessos militares da União. As observações que são feitas pressupõem ainda a ideia de que a doação de dinheiro para libertar os escravos conduziria ao fim da guerra, pois os estados confederados estariam interessados em ceder a esta proposta. Contudo, o conteúdo da mensagem de Lincoln ao Congresso transcrita e traduzida para português exprime uma ideia exatamente oposta. O objetivo é tirar toda a esperança aos sulistas de poderem contar, no futuro, com a eventual adesão à Confederação dos borders states e colocar a questão da escravatura no centro das razões de ser da guerra[4]. O noticiar num tom neutro das decisões tomadas sobre esta questão, subalternizando-a face à independência do Sul e à paz. Não deixa de ser sintomático o facto de a Proclamação Preliminar da Emancipação não ter visibilidade e ser referida no contexto do impasse militar entre os dois lados. A posição do jornal clarifica-se ao noticiar a rutura entre democratas e republicanos em torno do comando do exército do Potomac e a candidatura presidencial do general MacClellan. A discórdia entre os dois partidos estende-se à escravatura sendo apresentados os democratas como opositores à proclamação de Lincoln. A eventual vitória eleitoral dos democratas colocaria o poder nas mãos dos mais desafeiçoados à escravatura aumentando as possibilidades de paz[5]. Os redatores da Correspondência de Portugal desejam a mediação francesa porque ao acabar com o conflito militar resolve os problemas económicos da Europa. A questão coloca-se de novo ao constatar o seu insucesso e o desejo do Norte de continuar a guerra, armando os negros e aplicando a lei da confiscação, ou seja, radicalizando-a[6]. A mensagem, em dezembro de 1862, do presidente Lincoln ao Congresso é resumida nos aspetos principais: recorda a sua Proclamação Preliminar de Emancipação, refere a impossibilidade de separação do Sul, propõe duas emendas à constituição. Com efeito, sugere-se que o essencial está na transação oferecida aos estados rebeldes sobre a escravatura. Compreende-se a irritação do jornal perante a declaração do Congresso, recusando toda e qualquer mediação estrangeira. A deceção está espelhada na observação feita a propósito desta mensagem: “A declaração é um dos documentos notáveis da orgulhosa arrogância e da ostentosa presunção daquela raça anglo-americana."[7]. Assim sendo, a Proclamação Final de Emancipação de Lincoln não tem grande impacto nem goza de grande simpatia junto dos redatores da Correspondência de Portugal.

Os jornalistas da Revolução de Setembro aludem à guerra civil, no início de 1862, como um confronto entre “os amigos do Norte", “os abolicionistas" e os “amantes da paz", em oposição aos “partidários do Sul, os “desprezadores do bloqueio" e os “homens do algodão". Apesar do tom irónico da descrição é sugerida a superioridade moral e a justeza da causa dos primeiros[8]. O mais importante não é, porém, a abolição da escravatura, mas a forma de acabar com o conflito e alcançar a paz entre o Norte e o Sul. A vitória da União, a ocupação militar do Sul e a sua eventual divisão em territórios sob autoridade federal colocaria múltiplos problemas. O seu regresso ao estatuto de estados poderia implicar neles a efetiva abolição da escravatura produzindo uma mudança radical, mas podia também dar-se o caso de se fazerem cedências neste ponto ficando tudo como antes. As duas hipóteses testemunhavam a futilidade do prolongamento da contenda e punham em causa o destino dos E.U.A., a resistência do Sul e a justiça da luta do Norte. A proposta de Lincoln de emancipar os escravos dos estados limítrofes da União é vista como uma medida para evitar a adesão a uma confederação independente do Sul. Os jornalistas da Revolução de Setembro pensam tratar-se de um primeiro passo no sentido da aceitação da independência do Sul.

A possibilidade de a escravatura ser abolida volta a ser equacionada como parte de uma estratégia militar destinada a aumentar os esforços da União, na sequência da derrota sofrida na batalha de Second Manassas (28-30/08/1862). Contudo, permite observar a aproximação do governo e do presidente dos abolicionistas e o abandono das posições mais moderadas dos unionistas, ou seja, dos opositores aos esclavagistas. A Proclamação Preliminar de Emancipação é vista de forma positiva, existindo o cuidado de apresentar as posições de Lincoln, nesta matéria, como conciliadoras e centradas, na abolição gradual da escravatura. É dada grande relevância à sua mensagem ao Congresso, de 1 de dezembro de 1862, na qual entre outros temas refere de modo explícito este problema. O presidente é admirado pela sua firmeza na adoção das medidas contra os esclavagistas apesar da oposição, no Congresso, dos conservadores e pela sua moderação na eventual aplicação da Proclamação Final de Emancipação a partir de 1 de Janeiro de 1863[9]. O jornal mostra-se incapaz de compreender a impossibilidade dos sulistas, trocarem a independência pela abolição da escravatura. A tese sulista de que a continuação da guerra civil era o resultado do Norte o fazer apenas por orgulho e pelos seus interesses mercantis foi aceite sem hesitação[10]. As pressões externas adversas à emancipação dos escravos, presentes nos jornais ingleses, ou franceses, não param o processo e a recusa de qualquer mediação estrangeira torna inevitável a radicalização da contenda. A admiração por Lincoln não esconde a desilusão por estes factos e pela impossibilidade de conciliação das duas partes, através de mútuas concessões[11].

O Jornal do Comércio tem uma posição clara sobre a natureza da guerra civil e a abolição da escravatura. A ideia dominante consiste em afirmar a solidez da sociedade do Sul, a unidade entre homens livres e ou escravos frente aos nortistas. A consequência a retirar consiste em ser necessário conceder a independência aos confederados e acabar com a guerra. A política levada a cabo pelos estados do Norte não consegue quebrar a resistência da população do Sul apesar dos horrores praticados. As explicações dadas pelos defensores europeus da causa da União eram falsas, pois reduziam-se à ideia de a causa de Lincoln ser sobretudo abolicionista, apenas travada de momento pelas circunstâncias especiais da guerra. Ao contrário do que defendem os apoiantes de Washington, os unionistas não são os “inimigos jurados da opressão" e, por este facto, os redatores do jornal defendem o direito do “parlamento" de Richmond a proclamar a sua independência[12].

O periódico que abordamos de seguida é a Gazeta de Portugal conservador e pouco favorável ao Norte. Não será, pois, estranho o facto da primeira informação sobre a Proclamação Final de Emancipação aparecer associada à ideia de a libertação dos escravos resultar na desordem pública. Esta opinião pode ser explicada em parte pela importância dada às questões económicas sobretudo ao King Cotton. Em consequência, não espanta a ausência de qualquer emoção na transmissão das informações sobre a emancipação dos escravos. O aparente desinteresse não permite ignorar uma óbvia tomada de posição pretensamente “pacifista", mas na realidade, só favorável aos confederados e à independência do Sul. E o mesmo se diga quanto ao seu reconhecimento internacional e à mediação estrangeira. É sobretudo a raiva contra os unionistas que está bem presente no ataque à “vaidade da gente do Norte" e à comparação entre a revolta do Sul e a atitude semelhante dos americanos contra os ingleses na Guerra da Independência[13]. Percebe-se, assim, a indiferença pela sorte dos afro-americanos referidos por acaso quando se trata da formação dos regimentos de negros.

No campo progressista o Comércio do Porto encara de forma muito negativa a hesitação de Lincoln na questão da abolição da escravatura, pouco antes da Proclamação Preliminar de Emancipação. O redator começa por criticar o extremismo do racismo americano também presente mesmo no Norte e faz uma profissão de fé no seu futuro. A Proclamação Preliminar de Emancipação, depois da vitória unionista de Antietam (17/09/1862), é considerada de duvidosa eficácia por não ter sido proclamada “perto de Richmond". Na verdade, deseja a independência do Sul e a abolição da escravatura, sob condições razoáveis, sem deixar de valorizar os aspetos relacionados com a cultura do algodão, embora os considere politicamente secundários para a Europa[14]. Percebe-se a colagem aos democratas americanos na questão da escravatura, mas também a extrema prudência no referente a aceitar a ideia, veiculada pelos jornais franceses e recusada pelos ingleses, de que os democratas não querem continuar a guerra até à recuperação da União. Transmite com satisfação as notícias do sucesso dos democratas nas eleições legislativas e a possibilidade imediata de MacClellan ser presidente. Considera de forma muito negativa a Mensagem de Lincoln ao Congresso, mantendo a sua decisão de libertar os escravos e conduzir a guerra até ao fim, ou seja, até à capitulação dos sulistas. Demonstra alguma preocupação num tom pacifista com o escândalo da continuação do conflito militar transformado num inútil “açougue de carne humana". As consequências trágicas para a economia europeia são salientadas nas observações do impacto negativo na indústria algodoeira da Grã-Bretanha, França, Espanha, Bélgica, Prússia e Portugal. O desespero presente nestas análises económicas explica a importância dada às notícias dos E.U.A. que narram os meetings de Nova York, considerando inconstitucional a Proclamação Final de Emancipação de Lincoln. O mesmo acontece com a expectativa de ser convocada uma convenção para elaborar uma nova Constituição capaz de reunificar o país sob o statu quo anterior. Daí também a profunda desilusão com as consequências práticas da recusa da mediação francesa pelo governo de Lincoln e a inevitável prossecução da guerra com efeitos desastrosos na Europa.

Jornal do Porto começa por noticiar a proposta de emancipação voluntária, pelos estados, dos escravos e a subsequente surpresa em todos os quadrantes políticos[15]. A posição de Lincoln exprime a consciência de ser necessário dar sucessivos passos que traduzam a verdadeira causa unionista, ou seja, a progressiva libertação dos escravos, começando pelos borders states. Os redatores valorizam o aspeto humanitário da decisão política e o desejo de o realizar em conformidade com a Constituição. A questão central continua a ser, na sua opinião, a escravatura, mas a importância do King Cotton move as potências europeias no sentido de obterem um armistício por seis meses. Os problemas com a emancipação dos escravos continuam dando agora origem a divisões no Norte com os democratas de Nova York a oporem-se à libertação dos escravos. É alimentada a esperança de Lincoln ser forçado a seguir a tendência conservadora, em ascensão e representada pelos democratas moderando o processo de emancipação. Constata-se a existência de uma maioria no governo e no Congresso favoráveis a uma aplicação imediata da Proclamação Final de Emancipação. As divisões internas no Norte não impedem a sua realização, caindo assim as últimas ilusões dos redatores sobre a sua inevitabilidade.

Os redatores do Jornal do Porto dão uma importância especial à mensagem de Lincoln ao Congresso de 1 de dezembro de 1862. A defesa firme do pacto federal, na política interna e externa dos E.U.A., é um dos temas mais importante. Consideram a abolição da escravatura a questão central da missiva do presidente e valorizam o seu impacto na estratégia militar. As informações são contraditórias e mostram o presidente hesitante na aplicação da Proclamação Final de Emancipação nos border states. As perspetivas positivas da libertação dos escravos chocam com o desejo de uma paz imediata sob a égide da Europa, ou melhor dizendo, da Inglaterra e da França. As expectativas de uma paz de compromisso entre o Norte e o Sul, na base de uma convenção reunindo todos os estados para uma nova constituição, é uma perspetiva agradável[16]. Compreende-se o pouco entusiasmo com que se noticia a aplicação da Proclamação Final de Emancipação no 1.º de janeiro de 1863, libertando de direito, não de facto, os escravos nos estados do Sul. Aliás esta última questão aumenta o ceticismo sobre a eficácia real da medida, assim como as represálias do Sul contra as unidades de negros do exército americano. Porém, o problema não deixa de ser visto sob um outro ângulo, existindo a noção de se estar perante um no return point que decidirá em definitivo o desfecho do conflito. No entanto, persiste a ideia de que a guerra só acabará com o reconhecimento da independência do Sul e logo com a vitória da Confederação. As notícias referindo a eventual desintegração da União e o fim da guerra, são bem recebidos pelos redatores deste jornal. Valorizam-se as propostas francesas de mediação e o descontentamento nos estados do Norte, contra Lincoln. É enorme a desilusão perante a recusa pelo Senado norte-americano da mediação francesa.

Opinião, considera inicialmente de forma positiva, os motivos da adesão dos principais governadores dos estados do Norte a Proclamação Preliminar de Emancipação. O seu aspeto negativo resulta da subsequente radicalização do conflito, bem patente nas represálias do Congresso do Sul. Os jornalistas alimentam depois uma certa ambiguidade, oscilando entre a condenação das represálias do Sul e a aceitação das propostas de paz dos confederados. A orientação dominante dos redatores tende a ser cada vez mais desfavorável à libertação dos escravos, pelo que consideram a mensagem, de 1.º de Dezembro de 1862, um verdadeiro suplemento, ou apêndice à Constituição americana de 1787, e, portanto, uma transformação radical da sua natureza[17]. As observações presentes sobre a escravidão não encobrem as preocupações com a paz que é considerada prioritária. Considera-se uma absurda guerra de extermínio, pois o Sul nunca cederá nem voltará a fazer parte da União. Os jornais operários não se debruçam sobre estas questões, senão para apelarem para o fim do conflito por prejudicar as indústrias têxteis e ameaçar a sobrevivência dos trabalhadores.

Podemos assim dizer que a abolição da escravatura está na mente dos jornalistas portugueses ligada ao fim da guerra entre o Norte e o Sul. Como esta é a preocupação central pelo impacto na economia nacional e europeia as Proclamações de Emancipação de Lincoln aparecem como um entrave, pois radicalizam e prolongam a guerra e impedem a independência do Sul, condição essencial para se alcançar a paz. O facto da Confederação, não aceitar a abolição da escravatura não deixa de espantar os jornais portugueses, influenciados pelas perspetivas da imprensa francesa, favorável a uma mediação franco-britânica, pelo que Lincoln não é uma personagem simpática, pois a sua intransigência provoca o prolongamento indefinido do conflito.

 

2. A Guerra Servil

Os jornalistas portugueses condenam de forma unânime a escravatura, enquanto instituição social dominante, no Sul dos Estados Unidos. A Correspondência de Portugal e o Jornal do Comércio são exceções ao transmitirem uma imagem harmoniosa e idealizada da relação dos senhores e escravos na Confederação. A expectativa da extinção da escravatura, a curto prazo, coloca o problema da manutenção da ordem pública e o destino futuro dos afro-americanos na sociedade americana. Os jornais nacionais são extremamente recetivos aos receios de uma guerra social que seria uma espécie de repetição sangrenta da revolta do Haiti dos finais do século XVIII e princípios do seguinte. Assim sendo, denunciam todas as revoltas reais, ou fictícias, de escravos independentemente da sua dimensão, ou importância real e acabam por dar argumentos aos opositores à libertação plena e imediata dos escravos. O principal problema é a concessão dos direitos civis aos afro-americanos, em pé de igualdade com os americanos de origem europeia. A relevância dada ao racismo nortista e às resistências à integração social dos antigos escravos tem por objetivo negar a possibilidade da sua emancipação total.

A dissonância entre o antiabolicionismo americano e a visão do antiescravismo nacional é evidente nas observações da imprensa portuguesa sobre a Proclamação Final de Emancipação. O receio das consequências económicas nefastas, do prolongamento da Guerra Civil americana (1861-1865) explicam, em parte, as posições moderadas da opinião pública lusa sobre o assunto. O lento processo de libertação dos escravos, ao longo do século XIX, é um sintoma evidente da dificuldade em substituir a escravatura pela colonização nos territórios ultramarinos portugueses. Tratava-se de transformar o antigo trabalho escravo num trabalho “obrigatório" ou forçado dos libertos. Esta mão-de-obra era essencial para a rentabilização das atividades económicas das colónias e um primeiro passo para uma ocupação efetiva dos territórios sob administração portuguesa em África. A abolição da escravatura nos E.U.A. punha em causa os argumentos dos defensores de um adiamento da libertação dos escravos, invocando os prejuízos económicos das colónias. A verdadeira natureza da extinção da escravatura nos territórios ultramarinos era revelada pelo vanguardismo e radicalidade do processo norte-americano. Os abolicionistas, liderados pelo marquês de Sá da Bandeira, foram obrigados a aceitar em troca da extinção da escravatura em 1869, a emergência de um sistema colonial assente em novas formas de trabalho forçado. A opinião pública portuguesa condenava a escravatura, mas era pouco sensível à emancipação total e imediata dos escravos. Assim sendo, compreende-se a dificuldade em percecionar uma realidade social diferente, partindo de uma visão alternativa do mundo e a reação negativa face às “estranhas" opções de Lincoln.

 

BIBLIOGRAFIA:

GOODWIN, Doris Kearns – Team of Rivals. New York: Simon & Shuster Paperbacks, 2005.

GUEZO, Allen, C. – Lincoln's Emancipation Proclamation. The End of Slavery in America. New York/London /Toronto /Sydney: Simon & Schuster Paperbacks, 2004.

HOWARD, Michael – War and liberal Conscience. London: Hurst &Company, 2008.

MACPHERSON, James M. – Battle Cry of Freedom. The American Civil War. London/New York: Penguin Books/Oxford University Press, 1990.

PERKINS, Bradford – The Cambridge History of American Foreign Relations. Volume I, The Creation of a Republican Empire, 1776-1865. Cambridge University Press, 1995.

 


NOTAS

[1] Lacerda, A. M. C., Revista Estrangeira, A Nação, Lisboa, N.º 4491, (26/11/1862), p.2.

[2] Anónimo, Política Externa, O Amigo da Religião, Lisboa, N.º 52, (22/11/1862), p.2.

[3] Monteiro, J. M. de Sousa, Notícias e Factos Diversos, Bem Público, Lisboa, N.º 23, (06/12/1862), p.188.

[4] Carvalho, Filipe Augusto de Sousa Carvalho, Notícias Políticas Estrangeiras – Estados Unidos, A Correspondência de Portugal, Lisboa, N.º 6, (13/04/1862), p.2.

[5] Carvalho, Filipe Augusto de Sousa, Notícias Políticas Estrangeiras – Estados Unidos, A Correspondência de Portugal, Lisboa, N.º 21, (28/11/1862), p.1-2.

[6] Carvalho, Filipe Augusto de Sousa, Notícias Políticas Estrangeiras – Estados Unidos, A Correspondência de Portugal, Lisboa, N.º 22, (13/12/1862), p.2.

[7] Carvalho, Filipe Augusto de Sousa Carvalho, Notícias Políticas Estrangeiras – Estados Unidos, A Correspondência de Portugal, Lisboa, N.º 31, (28/04/1863), p.1-2.

[8] Castro, J. F. S., Política Estrangeira, Paris, 14/02/1862, A Revolução de Setembro, Lisboa, N.º 5931, (26/02/1862), p.1.

[9] Castro, J. F. S., Correio Estrangeiro, A Revolução de Setembro, Lisboa, N.º 6203, (16/01/1863), p.1.

[10] Castro, J. F. S., Correio Estrangeiro, A Revolução de Setembro, Lisboa, N.º 6196, (08/01/1863), p.1.

[11] Castro, J. F. S., Correio Estrangeiro, A Revolução de Setembro, Lisboa, N.º 6222, (10/02/1863), p.1.

[12] Anónimo, Lincoln e a escravatura, Jornal do Comércio, Lisboa, N.º 2687, (20/09/1862), p.1.

[13] Vasconcelos, A. A. Teixeira de, Política Estrangeira, Gazeta de Portugal, Lisboa, N.º 105, (19/03/1863), p.2.

[14] Vasconcelos, A. A. Teixeira de, Revista política estrangeira - Lisboa 14 de novembro de 1862", Comércio do Porto, Porto, N.º 267, (17/11/1862), p.1.

[15] Leão José Barbosa e Coutinho, A. R. da Cruz, Revista Estrangeira, Jornal do Porto, Porto, N.º 70, (27/03/1862), p.1-2.

[16] Leão, José Barbosa e Coutinho, A. R. da Cruz, Revista Estrangeira, Jornal do Porto, Porto, N.º 14, (19/01/1863), p.1.

[17] Borges. P. A., Boletim Estrangeiro, A Opinião, Lisboa, N.º 1782, (25/12/1862), p.1.


Júlio Rodrigues da Silva

Doutorado em História e Teoria das Ideias (1999) pela FCSH da UNL. Investigador Integrado do CHAM, FCSH, Universidade NOVA de Lisboa, Universidade dos Açores e Professor Associado do Departamento de Filosofia, FCSH, Universidade Nova de Lisboa e Investigador Colaborador do CEIS20, Universidade de Coimbra.


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Como citar este texto:

SILVA, Júlio Rodrigues da – A Imprensa Portuguesa e a Proclamação de Emancipação de Lincoln (1862-1863). Revista Portuguesa de História Militar - Dossier: Génes do Império Português do Oriente. [Em linha] Ano III, nº 5 (2023); https://doi.org/10.56092/GGEA9508 [Consultado em ...].


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