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O Teatro de Operações de Moçambique
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UMA PERSPETIVA PORTUGUESA SOBRE O “TEATRO DE OPERAÇÕES" DE MOÇAMBIQUE



Foto Maj N. Calhaço.jpg

Nuno Calhaço

 



Resumo

O conflito iniciado, a partir de 1961, nas várias parcelas dos territórios administradas por Portugal em África, consubstanciou-se como um conflito “único". O objetivo dos movimentos pró-independência desses territórios visava “expulsar" os “colonos" portugueses do mesmo, com o apoio da ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e da China, na sua “luta" contra o Ocidente, através de uma “Guerra Revolucionária". Esses territórios em África voltaram a ser cobiçados por várias potências mundiais, face à vaga independentista surgida em 1961, levando à necessidade de garantir o emprego do instrumento militar português em “operações de afirmação de soberania", para assegurar o Interesse Nacional.

No Teatro de Moçambique, a atividade subversiva só teve início a partir de 1964, estando as Forças Armadas Portuguesas detentoras de algum conhecimento e experiência operacional na tipologia de conflito subversivo, levando-as a “construir" uma “capacidade contrassubversiva" ao longo dos anos, decorrente da experiência retirada desse conflito “único". Os primeiros anos do conflito em Moçambique conduziram à necessidade de emprego de uma estratégia militar defensiva, orientada para os distritos de Cabo Delgado, do Niassa e de Tete, tendo como o resultado operacional o insucesso dos movimentos subversivos, a partir de 1968, face aos resultados operacionais das Forças Armadas Portuguesas.

Palavras-chave: Moçambique; Guerra Subversiva; Capacidade Contrassubversiva; Forças Armadas Portuguesas; Exército Português

 

Abstract

The conflict started in 1961 in territories administrated by Portugal, in Africa, became a “single" conflict. The main purpose of independence movements on those territories, was to “expel" Portuguese settlers from the same territories, with support of former Union of Soviet Socialist Republics and China, on their struggle against the West, through a Revolutionary War. Those territories in Africa were, once again, coveted by world main powers, motivated by independency ideals that emerged in 1961, leading Portugal to guarantee his sovereignty by using his military power in “sovereignty operations" to ensure Portuguese National Interest.

In Mozambique, subversive activities began in 1964, in a moment were Portuguese Armed Forces are having some knowledge an operational experience in a subversive conflict, which leading them to build a “countersubversive capability" over the years, arising from their own experience on that “single conflict". The first years of the conflict in Mozambique, led to their need to employ a defensive military strategy, towards Cabo Delgado, Niassa and Tete districts, which result of failure of subversive movements, since 1968, face Portuguese Armed Forces operational results.

Key words: Mozambique; Subversive War; Counter-Subversive Capability; Portuguese Armed Forces; Portuguese Army

 



Introdução

Os “perigos" aludidos por Andrade Corvo (2005) à soberania dos territórios administrados por Portugal em África tiveram, ao longo do século XX, um recrudescimento, face à “evolução" da ordem internacional. Com efeito, pese embora a sua relevância estratégica estar alinhada com os objetivos económicos, políticos e ideológicos de Portugal, onde o estatuto de potência europeia, com mais tempo de presença em África, legitimava a sua presença no continente africano, a cobiça por parte de outras potências europeias e mundiais, desde finais do século XIX, com o objetivo do controlo e da exploração dos recursos naturais aí existentes, bem como perante as vantagens da sua localização estratégica, foram ameaças “permanentes" à soberania portuguesa em África.

A necessidade imperiosa de Portugal poder garantir um espaço no continente africano, para atingir os seus objetivos estratégicos como potência europeia e mundial, com a construção do “novo Brasil em África", durante a segunda metade do século XIX, desde cedo colidiu, com os intentos britânicos para a mesma região, a partir de 1890, por intermédio do Ultimato Britânico a Portugal e com o fim do “Mapa Cor-de-rosa". Este acontecimento, para além de provocar um sentimento antibritânico em toda a sociedade portuguesa, conduziu a uma aproximação à França, perante as ameaças às possessões africanas portuguesas que se materializaram, no início do século XX, por Inglaterra e pela Alemanha, destacando a fragilidade de Portugal na competição no tabuleiro de grandes potências, onde o Interesse Nacional teria que, inevitavelmente, estar alinhado com o interesse de aliados europeus nesse mesmo espaço geográfico.

Já durante o início do século XX, foi visível a reduzida relevância político-diplomática portuguesa na salvaguarda do, então, Interesse Nacional, onde o interesse britânico, “recíproco" com o português, havia contribuído para a manutenção do “Império Ultramarino Português" no mundo, nomeadamente durante o período da Grande Guerra, levando Portugal a procurar participar na mesma, ao lado dos aliados, na frente europeia, através de uma oportunidade única para garantir a soberania dos territórios por si administrados em África. Estas ameaças levaram à necessidade em garantir a integridade territorial dos territórios de Angola e Moçambique, a partir de 1914, com a projeção de destacamentos militares mistos da Metrópole para esses territórios, para salvaguardar o Interesse Nacional (do “novo" regime republicano).

Após o fim da Grande Guerra, os “perigos" à afirmação da soberania nacional nestes territórios mantiveram-se. Nesse sentido, após 1919, a difusão pelo mundo de ideais de cariz pró-independentista, estruturados por ideais marxistas-leninistas e promovidos pela ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (ex-URSS), embora de forma muito incipiente, procuraram aliciar e influenciar as populações autóctones desses territórios para se revoltarem contra a presença portuguesa, neste continente. Essa influência foi mais “visível" depois do final da 2.ª Guerra Mundial, com o aparecimento dos primeiros movimentos independentistas Pan-Africanos, no período entre guerras[1] “patrocinado" por países emergentes na ordem internacional de então. Nesse particular, o apoio dado pelo bloco de Leste aos países “não-alinhados" ou “neutralistas[2]", no continente asiático, e, posteriormente, aos países africanos, bem como a influência que a Organização das Nações Unidades (ONU) imprimiu ao processo de contestação da presença portuguesa, face ao artigo 73.º da Carta, potenciou o aparecimento de movimentos independentistas nas possessões administradas por Portugal em África, tendo a Conferência de Bandung servido de “catalisador geral" para a crise que se abateu nos territórios portugueses.

O presente ensaio tem como Objetivo Geral (OG) avaliar o emprego do instrumento militar português, no início do conflito nos territórios administrados por Portugal em Moçambique, entre 1961 e 1965. Para o efeito, no sentido de poder atingir este OG, formulou-se como Questão Central (QC): Como pode ser avaliada a participação das Forças Armadas Portuguesas, durante o período de 1961 e 1965, em Moçambique? Decorrente do OG identificado, estruturou-se o presente ensaio em três Objetivos Específicos (OEsp), os quais enformam a estrutura do referido estudo, nomeadamente: OEsp1 - Descrever as causas e o início do conflito subversivo, em Moçambique; OEsp 2 – Analisar a Estratégia Militar empreendida por Portugal, no território de Moçambique; OEsp 3 – Avaliar o emprego do instrumento militar português no “Teatro" de Moçambique, entre 1961 e 1965. Como Questões Derivadas (QD), as quais estão alinhadas com os OEsp, formularam-se: a QD1 – Como podem ser identificadas as causas do início do conflito subversivo, em Moçambique? a QD2 – Como pode ser analisada, em termos estratégico-militares, a participação militar portuguesa no território de Moçambique? e a QD3 – Qual o impacto do emprego do instrumento militar português no “Teatro" de Moçambique, entre 1961 e 1965?

Para atingir os objetivos propostos, utilizou-se um raciocínio indutivo e uma estratégia de investigação qualitativa, assente num desenho de pesquisa de um estudo de caso. Paralelamente, face à abordagem temporal do conflito, procurou circunscrever-se, em termos de delimitação temporal, ao período de 1961 e 1970, ficando circunscrito, em termos espaciais ao território moçambicano. Em termos de delimitação conceptual, procurou dar-se ênfase aos conceitos de Guerra Subversiva e Guerra Revolucionária, constantes no “Exército na Guerra Subversiva[3]".

 

1. O início das atividades subversivas em Moçambique

Para melhor se entender o conflito em Moçambique, iniciado em setembro de 1964, importa recuar a 1961, ano em que se deu início ao conflito subversivo nas possessões administradas por Portugal, em África. Face aos acontecimentos ocorridos a partir de 4 fevereiro, em Luanda, e perante os massacres desencadeados, entre 15 de 17 de março, desse mesmo ano, na região norte do território de Angola, bem como perante a instabilidade verificada, a partir de 1963, na Guiné-Bissau, com ataques a aquartelamentos portugueses neste território (nomeadamente ao quartel de Tite), a insurreição armada de caráter subversivo motivada por ideais pró-independentistas, incorreu nos territórios administrados por Portugal, em África. Estes marcos temporais, que a História não deixará “apagar", conduziu ao início de uma nova fase da “Guerra Revolucionária"[4] que, durante a Guerra Fria, teve lugar nos vários territórios administrados por europeus em África e na Ásia.

Durante este mesmo período, os acontecimentos ocorridos no “Império Português do Oriente", perante os ataques convencionais perpetrados pela União Indiana às possessões portuguesas no Estado da Índia, aprofundaram as ameaças à soberania portuguesa na região, e os “perigos" à segurança e defesa nacional das várias parcelas pertencentes do, então, “Império Ultramarino Português", contribuindo para a escalada de um conflito “apoiado" pelo exterior. Perante este desencadear de ataques convencionais e de caráter subversivo às possessões administradas por Portugal, em várias parcelas do mundo, podemos inferir que a Guerra de África, entre 1961 e 1974, foi um conflito “único", “espalhado" nas várias parcelas do território ultramarino português, inserido no contexto do “Fim dos Impérios", durante a Guerra Fria.

Para Portugal, o seu “Império Ultramarino" representava um forte “motor" para a sua economia[5], para além de simbolizar, igualmente, um fator de prestígio internacional do país[6], no contexto externo, pelo que a sua perda ou abandono, em qualquer dos cenários, traria repercussões à continuidade do regime vigente, bem como agravaria os perigos à estabilidade do país, na nova ordem internacional da Guerra Fria. Para além destes argumentos, os receios que essa, eventual, “perda" pudesse trazer à segurança interna dos referidos territórios, bem como às suas populações (brancas ou negras), conduziu à opção estratégica nacional de resistência à vaga independentista que, a partir de 1961, assolou os territórios administrados por Portugal, em África, procurando evitar presenciar factos semelhantes aos ocorridos no ex-Congo Belga, em 1960, face à “(…) tremenda confusão política e social, com gravíssimas repercussões humanas (…)"[7], tornando-se um reforço da posição estratégica portuguesa, na defesa do Interesse Nacional, a partir de 1961.

O “alargamento" deste conflito ao território de Moçambique, pese embora a descontinuidade territorial com a Metrópole e com as restantes possessões africanas e asiáticas, estava inserido nessa mesma guerra “única", inserida na Guerra Fria, onde os principais objetivos estratégicos dos movimentos subversivos, presentes no território, visavam criar um sentimento de insegurança nas populações residentes, quer fossem originárias da Metrópole ou naturais do território moçambicano. Esses seus intentos, visavam explorar as fragilidades étnico-religiosas nas populações autóctones de Moçambique, na expectativa que a sua atividade clandestina e de guerrilha, conduzisse à fuga imediata do território das populações brancas e dos “colonos" que aí residiam e, dessa forma, à semelhança do que havia acontecido no ex-Congo Belga, garantir uma independência “forçada" e unilateral do território moçambicano.

Como “ignidor" dessa alteração da ordem e estabilidade no território moçambicano, foi aproveitada a fratura étnica e religiosa existente no interior da sua população, por intermédio de apoios externos provenientes dos territórios da Tanzânia (Tanganica) e do Malawi, especialmente orientados, geograficamente, para os distritos de Cabo Delgado, do Niassa e de Tete, os quais tinham ligações físicas terrestres, étnicas e religiosas privilegiadas. Nesse sentido, o centro de gravidade de todo o conflito residiu na população residente em Moçambique, quer fosse autóctone ou metropolitana, onde o seu controlo permitia legitimar a continuidade da presença portuguesa e das autoridades de facto instituídas no território, ou, no sentido inverso, legitimar o ideal e o esforço de independência total, protagonizado pelos movimentos independentistas neste território. A “fragilidade" com que as populações do território se encontravam face à difusão dos ideais independentistas neste território, serviria como elemento determinante para a continuidade das ações subversivas, na procura do auxílio destas às suas ações de guerrilha, num ambiente de total clandestinidade, bem como no que respeita ao “universo" de recrutamento para a sua causa, em especial em cidadãos “menos esclarecidos", reforçando, dessa forma, o esforço para atingir os seus objetivos estratégicos, com o abandono do território pelos “colonos" portugueses.

Motivados por ideais revolucionários, propagandeados pelos ideais marxistas-leninistas e maoistas, inseridos na denominada “Guerra Revolucionária", o apoio externo da ex-URSS e da China, bem como de outros países alinhados com o Comunismo, em muito contribuiu para o início das ações subversivas em Moçambique. Nesse sentido, foram exploradas as referidas diferenças étnicas e religiosas existentes entre as várias regiões e populações no território, favorecidas por ligações étnicas com os habitantes de países vizinhos, nomeadamente a Tanzânia e o Malawi, para além da “excentricidade" que a localização geográfica e a distância das províncias sublevadas tinham face à Capital, Lourenço Marques[8], a qual representava uma limitação para o controlo total do território, com a presença limitada de forças militares ou de controlo policial nas regiões.

Perante o primeiro OEsp proposto, nomeadamente o de “Descrever as causas e o início do conflito subversivo, em Moçambique", poderá afirmar-se que o mesmo se constitui como um conflito inserido num “conflito único" em todo o “Ultramar Português", inserido na fase final do “Fim dos Impérios" em África e na Ásia. Portugal, face às suas debilidades estruturais internas, procurou salvaguardar esses mesmos territórios, não tão só por questões económico-financeiras, mas, também, por razões de prestígio internacional e na vontade em garantir o bem-estar e a proteção de todos os cidadãos desse território, face aos resultados já visíveis na “onda independentista" que havia assolado outras parcelas de territórios africanos, tornados independentes. Essa mesma instabilidade, acicatada pela profusão de ideais marxistas-leninistas em todo o continente africano, estava inserida no contexto global da Guerra Fria, com particular enfâse por parte da ex-URSS, tendo, para tal, sido exploradas as fraturas étnico-religiosas entre as várias etnias que integravam o território moçambicano, com especial destaque para as regiões periféricas, devido ao seu afastamento face ao centro político-administrativo do território. De igual modo, a distância deste centro aos distritos mais afastados, onde a presença militar e de segurança era mais reduzida, potenciou a difusão, no seio das suas populações, das referidas ideologias pró-independência, mais concretamente nos distritos de Cabo Delgado, do Niassa e de Tete. A ligação étnico-religiosa com as comunidades dos países vizinhos, tais como a Tanzânia, o Malawi, com os referidos distritos, garantiu um apoio importante às ações subversivas em território moçambicano, através do apoio logístico aos movimentos subversivos que operavam no território, bem como no apoio à preparação de ações armadas, com o estabelecimento de “santuários" fora do território moçambicano.

 

2. A Estratégia Militar empreendida por Portugal

No plano estratégico-militar, face ao enquadramento internacional de Portugal, a partir de 1961, e, mais detalhadamente, no que se refere ao início do conflito em Moçambique, a partir de 1964, foi possível preparar, a partir do início da insurreição armada em Angola, discretamente, algumas “capacidades militares" destinadas a contrariar as ações subversivas características de um conflito subversivo[9], as quais foram evoluindo ao longo dos anos, face à experiência operacional acumulada nos vários Teatros.

Com o início das ações militares em Moçambique, paralelamente aos restantes Teatros, o Exército Português foi o Ramo das Forças Armadas Portuguesas (FFAA) onde “assentou" o esforço principal de guerra para fazer face aos efeitos decorrentes das ações subversivas, tendo, para tal, aprofundado e contribuído a implementação de uma “capacidade contrassubversiva", que lhe permitiu adaptar-se e fazer face ao modus operandi dos movimentos subversivos em Moçambique[10]. O conhecimento das formas de atuação subversivas contra as forças militares portuguesas, bem como contra as próprias populações, e o conhecimento da sua manobra logística e de apoio de retaguarda (especialmente no que concerne ao seu recrutamento e obtenção de novos aderentes à sua causa), foram fatores que contribuíram, neste e nos Teatros de Angola e da Guiné, para um esforço coletivo e “único" num conflito, também ele, "único" nos territórios portugueses administrados por Portugal em África[11].

Perante esse conhecimento e adaptação contínua ao ambiente subversivo, podemos referir que esta já não era “nova", depois de alguns anos em conflito nos Teatros de Angola e da Guiné, pelo que o início do conflito em Moçambique permitiu constatar um bom nível de proficiência das forças militares portuguesas, face à experiência operacional e tática “acumulada" noutros Teatros, na materialização do controlo territorial, na proteção de populações e na neutralização e destruição das forças subversivas e de todas as suas bases de apoio, quando identificadas. Dessa forma, essa adaptação doutrinária e de emprego operacional e tático, levou à necessidade de adaptação à nova tipologia de atuação das “guerrilhas", já seguida em Angola e na Guiné, mas contribuindo para uma “adaptação" da mesma ao “novo" modo de emprego operacional por parte das forças terrestres portuguesas, então adaptado ao Teatro de Moçambique, não estando dissociada do conhecimento operacional “retirado" dos territórios de Angola e da Guiné. Nesse sentido, a experiência obtida e em adaptação contínua ao modus operandi dos movimentos subversivos veio, em Moçambique[12], de forma preventiva, garantir uma preparação prévia das FFAA para o que ser viria a acontecer neste território, pelo que a preparação das forças terrestres ao conflito em Moçambique não foi surpresa[13].

Contudo, perante a necessidade de garantir o esforço principal do conflito “único" iniciado em 1961, em Angola, e alargado à Guiné-Bissau, a partir de 1963, o efetivo existente em Moçambique era considerado insuficiente, pelo que existiu a necessidade de balanceamento de forças militares, especialmente forças terrestres, para integrarem o esforço de guerra em Moçambique, a partir de 1964 e nos anos seguintes (CECA, 1989, p. 66), conforme a Figura 1.

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Figura 1 – Perspetiva de evolução do dispositivo militar terrestre em Moçambique, antes do início do conflito (Fevereiro de 1963 a Maio de 1964). Fonte: CECA (1989)

 

Na preparação doutrinária e na formação técnico-tática para as primeiras abordagens à guerra subversiva, o Exército Português, para além de garantir um ajustamento do seu dispositivo territorial, com a reorganização territorial na Metrópole e dos territórios administrados por Portugal, em África, no início de 1960, constituiu algumas unidades militares com preparação e treino para um confronto subversivo. Nesse sentido, logo em 1960, depois da sua formação e treino no Centro de Instrução de Operações Especiais, em Lamego, foram projetadas para o norte de Moçambique duas Companhias de Caçadores Especiais (CCEsp), com formação e treino operacional adequado para o que se esperaria encontrar, no âmbito da luta anti-guerrilha[14]. As principais atribuições destas unidades foram destinadas, sobretudo, a criar um sentimento de maior segurança e confiança nas populações residentes nas áreas e regiões passíveis de sofrerem uma maior influência por parte dos movimentos independentistas, reforçando, quando possível, a estrutura militar já existente no território. As suas áreas de atuação integravam áreas de responsabilidade “alargadas" a todo o norte do território, nomeadamente aos distritos de Cabo Delgado e do Niassa, com menor preocupação o distrito de Tete, tornando-se, essas unidades, forças com reduzida dimensão para a área territorial passível de subversão, a qual se tornou muito extensa para as forças existentes.

Paralelamente ao emprego de CCEsp, antes do início do conflito eclodir em Moçambique, operaram junto à fronteira com a Tanzânia, junto ao Rio Rovuma, unidades ou equipas de “pseudo-caçadores", atuando como forças civis, contando com apoio de forças militares portuguesas estacionadas na região, com a finalidade de controlo do fluxo de apoios da Tanzânia (Tanganica) para os distritos de Cabo Delgado e do Niassa[15].

No Teatro de Moçambique, o conflito iniciou-se em 25 de setembro de 1964, tendo ficado circunscrito à região norte do território, ao distrito de Cabo Delgado, com o ataque ao posto administrativo de Chai, e ao distrito do Niassa, com o assalto ao Posto Administrativo de Cobué, alastrando, a partir de novembro do mesmo ano, à região oeste do território, no distrito de Tete, com um conjunto de ataques a militares ao Posto Administrativo de Charre, perpetrados pela Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Face à dispersão territorial das suas zonas de ação e dos seus “santuários" de apoio aos movimentos subversivos, localizados na Tanzânia e no Malawi, as atividades subversivas centraram-se, principalmente, nos anos seguintes às regiões norte do território (Cabo Delgado e Niassa), apoiadas pelas etnias Maconde (Cabo Delgado), Nianja e Ajauas (Niassa), deixando espaço para, no ano de 1965, o Comité Revolucionário de Moçambique (COREMO)[16] iniciar as suas ações subversivas contra as autoridades portuguesas, pelos Maraves, no distrito de Tete[17].

A contenção das atividades subversivas da FRELIMO, ao norte do território, teve para além da reação das forças militares portuguesas, a “limitação" do seu alargamento para sul, face à concentração de cidadãos de etnia macua e de outras etnias defensores da presença portuguesa, o que retirava capacidade de alastramento dos ideais subversivos para sul do Planalto dos Macondes. Contudo, essa profusão dos ideais pró-independentistas teve impacto na região norte do distrito de Tete, onde a etnia marave tinha maior incidência[18].

Com efeito, o início do conflito em Moçambique esteve ligado às atividades subversivas da FRELIMO, a partir de 1964[19], na frente norte (Cabo Delgado e Niassa), contando com os apoios obtidos provenientes da fronteira com a Tanzânia e do Malawi, tendo reiniciado as suas ações operacionais na frente de Tete, após a redução da atividade operacional da COREMO, neste distrito, e devido ao seu insucesso em toda a frente norte. Pelo lado da COREMO, a sua atividade no distrito de Tete teve o seu ponto mais forte a partir de início de 1965, com a realização de ações subversivas pontuais, especialmente direcionadas para alguns centros urbanos, como Vila Coutinho, tendo reduzido a sua atividade operacional a partir de início de 1968 neste distrito e em todo o território moçambicano[20].

A atividade subversiva destes movimentos, em Moçambique, consistia na realização de ataques, flagelações e outras ações diretas a aquartelamentos e a colunas de viaturas militares portuguesas, na colocação de engenhos explosivos improvisados e minas nos itinerários, e na realização de emboscadas, flagelações e ataques a aldeias, povoações e elementos das populações (branca e negra), com a finalidade de poder “expulsar" os “colonos" portugueses do território moçambicano. Dessa forma, a instabilidade constante das suas ações na região, conduziu, inevitavelmente, ao reforço e ao aumento da presença militar no território, após 1964.

De um modo geral, a manobra subversiva em Moçambique[21] compreendia um conjunto de ações militares de nível tático, com o objetivo de “entravar certas atividades e serviços essenciais" e “atuar contra as forças de manutenção da ordem", através de golpes de mão, emboscadas, ações de flagelação e de obstrução de itinerários[22], apoiados por alguns setores da população que atuavam, clandestinamente, na região norte e oeste do território. Alguns países vizinhos garantiam, também, a continuidade das ações subversivas em Moçambique, com apoio logístico e de informações, recorrendo, para tal, ao apoio de “santuários" no exterior do território. Tendo o fator iniciativa do seu lado, os movimentos subversivos moçambicanos, para além de atuarem na clandestinidade, tinham uma dimensão local, sendo detentores do conhecimento do terreno e os seus militantes disporem de uma elevada rusticidade e adaptação ao meio envolvente, o que lhes permitia atuar, no mesmo, com elevada facilidade e fluidez de movimentos, levando-os a atuar em reduzidos escalões táticos (grupos, pelotões e pequenas unidades constituídas)[23].

No contexto da estratégia militar adotada pelas forças portuguesas, a inexistência de recursos humanos e forças militares nas zonas onde a atividade subversiva mais se fez sentir[24], em Moçambique, levou a que as forças do Exército concretizassem, a partir de 1964 e nos primeiros anos do conflito, uma estratégia militar defensiva nas regiões de Cabo Delgado, do Niassa e de Tete[25], centrada no controlo territorial por intermédio da atribuição de áreas de responsabilidade de quadrícula, quer para o controlo das populações, concentradas em aldeamentos, quer para a proteção das forças militares, no apoio à população, através de ações de apoio no âmbito da ação psicossocial, na construção de aldeamentos, para melhoria da qualidade de vida dos cidadãos e para a sua proteção, e controlo dos movimentos, entre outras medidas, conforme a Figura 2 e a Figura 3.

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Figura 2 – Perspetiva do dispositivo militar terrestre em Moçambique, no início do conflito, balanceado para norte e oeste do território (Outubro de 1964). Fonte: CECA (1989)

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Figura 3 – Perspetiva da evolução do dispositivo militar terrestre, no norte de Moçambique (entre maio e outubro de 1965). Fonte: CECA (1989)

 

Somente, após 1970, o Exército intensificou a sua ação militar, através de uma estratégia ofensiva, com a realização de operações militares ofensivas e de grande envergadura, como a Operação “Nó Górdio" para a destruição e deslocalização das bases dos movimentos, integrada com o reforço da melhoria das condições de vida das populações locais das províncias afetadas, por intermédio da “Operação Fronteira"[26].

Face ao OEsp 2, onde se pretende “Analisar a Estratégia Militar empreendida por Portugal, no território de Moçambique, entre 1964 e 1965", pode-se inferir que após os primeiros ataques protagonizados pelos movimentos subversivos em Moçambique, os quais se localizaram na região norte do território, as forças portuguesas já eram detentoras de um elevado conhecimento doutrinário e operacional, no que diz respeito ao conflito subversivo, fruto de três anos de experiência operacional em Angola e um ano na Guiné-Bissau. Nesse sentido, apesar de se “adivinhar" o início desses ataques em Moçambique, o dispositivo militar terrestre tornou-se insuficiente, perante as necessidades existentes em Angola e na Guiné, apesar do reforço contínuo com alguns contingentes militares, ainda antes de 1964, o qual conduziu a uma prévia adaptação ao espaço físico do Teatro moçambicano, por parte das forças terrestres portuguesas. Só com o início do conflito, em 1964, alinhado com uma maior presença militar junto das populações, foi possível garantir “controlo possível" da situação militar geral neste território, tornando-se o reforço de vários contingentes existente, mas insuficiente. Desse modo, a instabilidade ficou circunscrita às regiões norte e oeste do território, nos distritos de Cabo Delgado e do Niassa, bem como ao distrito de Tete, onde a excentricidade e distanciamento desses mesmos distritos face ao centro político do território, potenciou o alastramento da insurreição e da adesão aos movimentos subversivos, onde existia uma ténue presença militar, a par da existência de habitantes etnicamente favoráveis à revolta, como os macondes, os ajauas, os nianjas e os maraves, apoiados a partir do exterior, nomeadamente da Tanzânia e do Malawi.

 

3. As Forças Armadas Portuguesas face ao “novo" modus operandi subversivo em Moçambique

Como anteriormente aludido, o início do conflito em Moçambique havia contado com alguma preparação por parte das FFAA, face à tipologia de conflito anteriormente iniciado em Angola[27] e na Guiné, com uma adaptação rápida ao modus operandi dos movimentos subversivos neste território. Nesse sentido, o início do conflito subversivo entre forças portuguesas e os movimentos subversivos, em Moçambique, inserido numa estratégia militar defensiva, entre 1964 e 1965, revelou, igualmente, para as forças militares portuguesas, uma adaptação doutrinária em termos militares no Teatro, face aos movimentos subversivos existentes no território, para além de uma adaptação às populações residentes neste. Essa adaptação esteve, principalmente, centrada na ação que o Exército Português, com a missão de garantir o controlo territorial, apesar do seu insuficiente dispositivo existente, integrada na execução de “operações de afirmação da soberania"[28], exercendo, dessa forma, o esforço principal em todo o conflito, ficando a Marinha Portuguesa e a Força Aérea Portuguesa, com missões complementares ao esforço principal, numa atuação conjunta e/ou complementar.

Por essas razões, foi possível às forças subversivas da FRELIMO e da COREMO obter a iniciativa, entre 1964 e 1965, numa fase inicial do conflito, perante a insuficiente presença de forças terrestres no território moçambicano, possibilitando a obtenção de alguma vantagem estratégico-militar “no terreno"

Dessa forma, as FFAA procuraram garantir o controlo efetivo do território moçambicano, entre 1966 e 1967, em particular das regiões onde as ações subversivas tiveram mais incidência (Cabo Delgado, Niassa e Tete), através do reforço da sua presença militar, com vista a garantir um ambiente de maior segurança às populações (brancas e negras), por intermédio do controlo de áreas de quadrícula, onde os batalhões do Exército, destacados ou constituídos nos territórios, tinham por missão assegurar a “ocupação" territorial e a “proteção" das populações[2​9], numa lógica de reforço das “ações de afirmação da soberania". Essas forças de escalão batalhão, tinham atribuídas zonas de ação de “quadrícula" sob sua responsabilidade, podendo as mesmas serem redistribuídas em áreas de responsabilidade às suas companhias, para, dessa forma, ser materializada a referida ocupação territorial, numa vertente mais descentralizada. Por seu turno, esses batalhões estavam integrados numa estrutura superior, os Comandos de Setor, nas regiões onde a atividade subversiva mais se fazia sentir (nos distritos de Cabo Delgado, do Niassa e de Tete) e/ou em regimentos, os quais tinham áreas de responsabilidade atribuídas, onde a atividade subversiva era nula ou quase nula sob responsabilidade Região Militar (respeitante aos restantes distritos). Os vários Comandos de Setor integravam as Zonas de Intervenção ou Zonas Operacionais, algumas das quais com comando militar conjunto, ficando estas sob o Comando-Chefe de um Oficial General das FFAA, para atividades de caráter operacional, podendo, por outro lado, ficar integradas na Região Militar de Moçambique[30]. A principal atribuição do Comandante-chefe consistia em “coordenar" as ações militares de caráter conjunto das FFAA, ao passo que, para o Comando da Região Militar, estava adstrita a responsabilidade da “(…) conduta das operações terrestres", sobretudo em matérias relacionadas com informações e a condução das operações militares, para as forças da guarnição normal e para as forças de reforço[31].

Para a Região Militar de Moçambique existiam responsabilidades operacionais para o respetivo Comandante, estando organizadas em locais onde a ameaça era diminuta ou inexistente (restantes distritos, excetuando os de Cabo Delgado, do Niassa e de Tete), o que permitia uma maior economia de forças, com o consequente balanceamento das mesmas para os distritos onde se materializava o esforço de guerra.

As forças do Exército exerceram, no âmbito da “manobra militar interna" no território moçambicano, ações e missões características do controlo de “quadrícula", através da sua presença e ocupação territorial na proteção das populações, mas também destinadas ao isolamento, flagelação e redução (aniquilamento e conquista)"[32] das atividades dos movimentos subversivos[33]. Para além das forças de “quadrícula", existiam unidades de elevada prontidão operacional e de rápido emprego tático, para atuação em qualquer local ou região, as quais estavam sob o comando do Comandante-Chefe de Moçambique, nomeadamente as forças de intervenção[34] e as forças de apoio de fogos[35]. Estas, para além de garantirem o apoio às unidades de quadrícula ou de intervenção, na realização das suas ações diárias, procuravam servir, como “forças de reação imediata" para a realização de operações específicas no território moçambicano[36].

As missões atribuídas ao Exército, visavam garantir a “ocupação militar" de áreas, a “neutralização" das ações de “flagelação", realizadas pelos movimentos subversivos sobre as forças portuguesas, a “interdição das comunicações", a “destruição de recursos, de bases e de refúgios", a “destruição de elementos combatentes" e, em casos muito excecionais (caso se verificassem) a “recuperação de áreas territoriais"[37]. As mesmas missões procuravam, ainda, garantir ações de segurança e de defesa de pontos militares portugueses considerados sensíveis, tais como acantonamentos, quartéis e outros “pontos essenciais", bem como a segurança de colunas militares em deslocamento, quer fossem motorizadas ou apeadas, através da proteção de itinerários, podendo ser apoiados por meios aéreos de vigilância e de combate ar-terra. Estes meios aéreos garantiam, também, um alerta oportuno às forças no terreno, bem como um determinante poder de fogo sobre possíveis ações subvesivas realizadas contra as forças portuguesas, garantindo a sua proteção e a preservação do potencial de combate.

A finalidade das suas tarefas visava impedir a liberdade de ação dos movimentos subversivos, através da realização de um conjunto de operações táticas, tais como as operações de cerco, o deslocamento para a linha de cerco, com a destruição de forças cercadas, o ataque a acantonamentos e bases subversivas, em povoações ou nas matas, com a perseguição e limpeza de militantes dos movimentos, por patrulhamentos motorizados ou apeados na selva, com a finalidade de neutralizar as ações subversivas e controlar as parcelas do território, por operações especiais, através da realização de emboscadas, golpes de mão, operações de cerco e limpeza de povoações, e de batidas, com a finalidade de capturar material e armamento dos movimentos e desarticular as suas ações e o apoio conferido pelas suas bases[38]. Complementarmente, as forças do Exército garantiram uma ação concertada em vários domínios, em especial ao nível da Ação Psicológica, junto das populações, com o objetivo de alterar perceções e influenciar comportamentos e atitudes, dos possíveis aderentes aos movimentos, bem como das populações residentes, integrado num esforço “global" de nível psicossocial, onde a presença das forças terrestres era essencial. Esse esforço, concertado com o de outros setores, contribuiu para o esfoço global de “controlo" das populações, com a finalidade de reforçar a legitimidade da presença portuguesa em Moçambique.

Para além das operações de quadrícula, as FFAA não realizaram, neste período inicial, entre 1964 e 1970, operações militares conjuntas de grande envergadura, em virtude da sua necessidade de adaptação ao ambiente subversivo, caractarístico do território, bem como à limitação do número de forças militares. Somente mais tarde, a partir de 1970, foi possível desencadear operações militares próximas às operações convencionais de grande envergadura, destinadas a neutralizar e a destruir quartéis, identificados, “positivamente", nas matas moçambicanas, bem como em ações diretas contra forças subverivas constituidas e em movimento, caracterizando a fase ofensiva deste conflito.

Por seu turno, contribuindo para o controlo efetivo de todo o território moçambicano, a Força Aérea Portuguesa, face à sua flexibilidade de atuação e de emprego tático, foi essencial no apoio dado às forças terrestres no controlo territorial, quer seja durante a execução de ações de patrulhamento aéreo, em ligação com as forças no solo, quer seja no ataque a forças pertencentes aos movimentos subversivos, neutralizando e destruindo, com oportunidade, material e pessoal aderente aos movimentos, para além de ser um importante vetor de monitorização da atividade operacional subversiva no terreno. Paralelamente, o emprego de meios aéreos em prol do reabastecimento logístico de forças terrestres, aquarteladas a centenas de quilómetros das suas bases de apoio logístico principais, bem como no apoio à evacuação médica de baixas portuguesas, em tempo oportuno, foi um fator importante para a consolidação e o robustecimento das ações militares terrestres no terreno, de forma articulada e conjunta.

No espaço marítimo, as forças navais da Marinha Portuguesa procuravam contribuir para o esforço global do conflito, apoiando o reabastecimento de forças nas regiões ribeirinhas, no controlo dos principais cursos de água (Zambeze e, dentro do possível, do Rovuma) e onde se localizavam os principais portos marítimos, em especial no distrito de Cabo Delgado, bem como no Lago Niassa, procurando “cortar" as comunicações dos elementos subversivos aos seus “santuários" por via marítima, localizados no Malawi e na Tanzânia. Paralelamente, procuravam apoiar as ações das forças terrestres portuguesas, isolando e vigiando as ligações marítimas entre a Tanzânia e as costas marítimas de Cabo Delgado, nas quais era proveniente grande parte dos apoios aos movimentos que operavam neste distrito.

Neste ponto, procurando responder ao OEsp 3, o de “Avaliar o emprego do instrumento militar português no “Teatro" de Moçambique, entre 1964 e 1965", pode-se afirmar que as FFAA procuraram, desde o início das hostilidades em 1961, destacar para o Teatro de Moçambique, forças militares necessárias e capazes de garantir o controlo efetivo do território, inserido em “operações de afirmação da soberania", ficando, embora de forma insuficiente, o esforço desse emprego operacional nas unidades do Exército. Os meios da Marinha Portuguesa e da Força Aérea Portuguesa procuraram, tendo por base os seus recursos, reforçar e complementar o dispositivo e as missões do Exército, nos distritos de Cabo Delgado, Niassa e Tete, através de uma organização territorial base de “quadrícula", integrada em setores operacionais, em zonas de intervenção e sob responsabilidade operacional do Comandante-Chefe do Teatro de Moçambique. Essas zonas de ação atribuídas a unidades de escalão batalhão, com a responsabilidade de “quadrícula", eram repartidas por áreas de responsabilidade às suas companhias, para uma ocupação territorial descentralizada. Sob as ordens do Comando-Chefe de Moçambique, podiam ser empregues forças de intervenção e forças de apoio de fogos, podendo servir como “forças de reação imediata", integrando ações inseridas na Ação Psicológica sobre as populações e no apoio Psicossocial, em paralelo com ações militares da Região Militar.

Inserido num “conflito único", em todo o “Ultramar Português", o emprego do instrumento militar português em Moçambique, entre 1964 e 1965, pode ser caracterizado por conter algumas adaptações das FFAA à tipologia de conflito subversivo, através de uma preparação operacional nas suas forças terrestres, obtidas pela experiência operacional e de conhecimento, desde 1961, em Angola, e desde 1963, na Guiné-Bissau, tornando-se numa vantagem estratégica para Portugal, mas contando, numa fase inicial, com um dispositivo militar terrestre insuficiente. Integrado nesta estratégia, o “alargamento" do conflito a ações de âmbito psicossocial sobre as populações, com a consequente construção de aldeamentos, bem como outras medidas de cariz social, pôde garantir um esforço global para a resolução da instabilidade no território, mantendo, dessa forma, a legitimidade no território e, consequentemente, o controlo efetivo do mesmo por Portugal.

 

Conclusões

Procurando sintetizar e responder à QC, podemos referir que o conflito subversivo em Moçambique, esteve inserido num conflito “único" e mais lato, nas possessões administradas por Portugal em África, num período de “Fim dos Impérios" europeus em África e na Ásia, durante a Guerra Fria. A necessidade de Portugal justificar a defesa do seu Interesse Nacional, em África, prendeu-se por questões económicas, de prestígio internacional e na vontade de proteção das suas populações, face aos efeitos nefastos que o processo independentista havia revelado nesse continente, sobretudo no ex-Congo Belga, onde a própria credibilidade do Estado Português e a continuidade do Governo/Regime vigente estava em risco.

A partir do exterior, no contexto de Guerra Fria, foram exploradas as fraturas étnicas e religiosas existentes nas várias comunidades moçambicanas, para que se degenerasse o conflito subversivo, em Moçambique, à semelhança do verificado em Angola e na Guiné. Complementarmente, a reduzida presença das autoridades locais nos distritos mais afastados e distantes do centro político-administrativo do território, Lourenço Marques, contribuiu para essa profusão e aliciamento dos ideais defendidos pelos movimentos subversivos, pelo que, desse modo, é compreensível o início das atividades subversivas nos distritos de Cabo Delgado, do Niassa e de Tete, perante a forte presença de etnias maconde, nianja, ajaua e marave. Dessa forma, a subversão tinha maior facilidade de profusão dos seus ideias independentistas, sob as suas populações mais afastadas e sobre forte influência externa, podendo angariar aderentes para a luta armada contra as autoridades de facto instituídas, utilizando os “santuários" fora do território (Tanzânia e Malawi) para a sua preparação e atuação em território moçambicano.

Contudo, a preparação prévia das FFAA em Angola e na Guiné, potenciou o desenvolvimento de uma “capacidade contrassubversiva" nas FFAA, em especial no Exército, pelo que aquando dos primeiros atos subversivos em território moçambicano, em 1964, existia alguma preparação militar e doutrinária nas FFAA para enfrentar o conflito, resultado da experiência operacional obtida em Angola e na Guiné-Bissau, embora com um insuficiente dispositivo territorial. Com um dispositivo territorial já implementado, na 4.ª Região Militar, mas limitado, o início do conflito no norte e oeste de Moçambique, tornou-se de maior dificuldade de controlo por parte das FFAA, com enfâse para a ação do Exército, passando o foco a incidir no controlo das populações, através da sua concentração e proteção em aldeamentos, o que esteve alinhado com uma maior presença militar junto das mesmas.

Pelo lado dos movimentos subversivos, a sua atividade operacional caracterizava-se pela atuação na clandestinidade, realizando ataques e flagelações a aquartelamentos e a colunas motorizadas, na colocação de engenhos explosivos e minas nos itinerários, e na realização de emboscadas, flagelações e ataques a aldeias, povoações e elementos das populações (branca e negra), com o objetivo de limitar a circulação de forças militares em apoio à estabilização no território e criar o medo e a insegurança nas populações, suprimindo e neutralizando a atuação das FFAA. Os apoios conferidos pelos seus “santuários", em termos logísticos e de informações, associado ao conhecimento do terreno e à sua adaptabilidade e rusticidade ao meio ambiente envolvente, garantiram, em certa medida, uma elevada flexibilidade de atuação, utilizando pequenos escalões táticos, com o objetivo último de “expulsar" os “colonos". Contudo, a “política de aldeamentos" limitou a sua ação de recrutamento e de apoio à sua causa, noa anos seguintes, passando a partir de 1967, a existirem limitações nesses mesmo apoios, alinhado com uma maior presença das forças terrestres do Exército Português nas áreas críticas.

A nível nacional, a estratégia militar adotada, nos primeiros anos do conflito, a partir de 1964, circunscreveu-se a ações defensivas e de controlo territorial, nos distritos de Cabo Delgado, do Niassa e de Tete, procurando garantir o controlo permanente do território com a compartimentação do mesmo em áreas de responsabilidade de “quadrícula", atribuídas a batalhões do Exército, em número insuficiente, as quais estavam integradas em Setores e em Zonas de Intervenção ou Operacionais, sob o Comando-Chefe de um Oficial General das FFAA, para além das responsabilidades da própria Região Militar. Associada a esta estratégia militar, ao longo dos anos do conflito, a adoção de medidas de apoio às populações, tais como o reforço na construção de aldeamentos e do apoio psicossocial, onde o Exército teve um papel de destaque na Ação Psicológica, fortaleceu o esforço conjugado para a estabilidade nas regiões mais afetadas, garantindo um aumento da legitimidade portuguesa no território, junto das populações, com o aumento da ineficiência da FRELIMO e da COREMO, a partir de 1967. Ademais, para a sua manobra tática e operacional, as forças terrestres tinham forças de intervenção, para serem empregues como “forças de reação imediata", em qualquer ponto do território, com elevada flexibilidade e de descentralização nas suas ações táticas, o que reforçou, em muito, a estratégia defensiva empreendida. A utilização de outras ações de caráter de apoio social, como a construção e concentração em aldeamentos das populações, bem como no caráter de apoio Psicossocial, permitiu balancear o esforço militar, insuficiente, a partir de 1964, com outra tipologia de ações, com o objetivo de controlo das populações.

Dessa forma, a atuação do instrumento militar português no Teatro de Moçambique pode concluir-se como eficaz, apesar dos vários momentos de “iniciativa" por parte dos movimentos subversivos, os quais ficaram circunscritos ao norte e a oeste do território, com o controlo da presença subversiva da FRELIMO, nos distritos de Cabo Delgado e do Niassa, e da COREMO, no distrito de Tete. A concretização de “operações de afirmação da soberania", largamente estruturadas pelas unidades do Exército, puderam garantir, na sua plenitude, embora com limitações, durante os primeiros anos do conflito, um contrapoder às ações dos movimentos subversivos, tendo como resultados operacionais a incapacidade das ações dos movimentos aturarem na frente norte, a partir de 1968, apesar de várias tentativas no sentido contrário, bem como na frente oeste, depois de 1968, embora de forma mais limitada. Esta ação das forças terrestres foi robustecida por intermédio dos meios navais e aéreos da Marinha Portuguesa e da Força Aérea Portuguesa, que contribuíam, também, para esse resultado militar, reforçando a presença e a atividade operacional no interior do território, em apoio às forças do Exército, complementando as suas missões de patrulhamento e controlo territorial.

O emprego do instrumento militar português, a partir de 1964, em Moçambique, provou essa capacidade de adaptação das FFAA ao “ambiente subversivo", com a edificação de uma “capacidade anti-subversiva", relegando os movimentos subversivos moçambicanos para a sua frente de Tete, onde ainda tinham alguma capacidade para realizarem ações militares, até 1974.

 

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Notas

[1] CECA, 1988, pp. 40-41.

[2] Moreira, 1959.

[3] Exército, 1966ª.

[4] Oliveira, 1960.

[5] Couto, 2020.

[6] Paralelemente, o “Portugal uno e indivisível, do Minho a Timor" constava na base doutrinária da sociedade portuguesa da época, o que legitimava a vontade da defesa do Território Nacional, à época (CECA, 1990, p. 34).

[7] CECA, 1990, p. 24.

[8] Esta excentricidade está relacionada com o distanciamento da capital às províncias “mais afastadas", onde a fragilidade dos apoios da administração ultramarina a essas parcelas do território moçambicano era mais vincada (derivado a esse distanciamento), tornando-se, integrado com divisões étnico e religiosas, um dos motivos para a sublevação das populações de etnia maconde, ajaua e maraves (CECA, 1989, p. 51), localizados, maioritariamente nos distritos de Cabo Delgado, Niassa e Tete, respetivamente.

[9] Designado, inicialmente, por “guerra de guerrilhas", em 1961.

[10] Esta “Capacidade Contrassubversiva" foi, também, desenvolvida, em simultâneo e de forma concorrente e complementar, nos restantes territórios de Angola e da Guiné, embora com especificações próprias de cada território, ao longo de todo o conflito.

[11] Ainda antes dos incidentes ocorridos em Angola (15 de março), existiu uma vontade dos responsáveis políticos portugueses em poderem projetar, antecipadamente, cerca de 10.000 homens em Angola e Moçambique, com a finalidade de garantir a afirmação territorial nacional das forças portuguesas no Ultramar: Leandro, 2020.

[12] A 4ª Região Militar, em Moçambique, era constituída, de acordo com a reorganização do Exército de 1959, em três comandos territoriais, norte, centro e sul (onde se localizava a capital). Esta organização militar foi-se adaptando ao longo dos anos do conflito, com o estabelecimento de Zonas de Intervenção e Setores, nos quais estava integrado o dispositivo territorial de quadrícula.

[13]  Teixeira, 2017, p. 557.

[14] As mesmas unidades do Exército estavam preparadas para um conflito de caráter convencional com a ex-URSS e/ou os países de Leste, com limitações em termos de treino e preparação para a “guerra de guerrilhas".

[15] CECA, 1989, p. 65.

[16] Considera-se como um movimento dissidente da FRELIMO: Teixeira, 2017, p. 557.

[17] CECA, 1988, pp. 113-115.

[18] CECA, 1989, p. 51.

[19] Face a dissidências internas na FRELIMO a partir de 1967, com a “decapitação" da sua liderança.

[20] CECA, 1988, p. 113.

[21] Doutrinariamente, o modus operandi dos movimentos subversivos, compreendia uma fase pré-insurrecional, onde constava a “Preparação da subversão", como fase preparatória (Primeira fase), e a “Criação do ambiente subversivo", como fase de agitação (Segunda Fase), e uma fase insurrecional, compreendendo a “Consolidação da organização subversiva", como fase do terrorismo e da guerrilha (Terceira Fase), a “criação de bases e de forças pseudo-regulares", como fase do “Estado Subversivo" (Quarta Fase), e a “Insurreição geral", como “fase final" (Quinta Fase): Exército, 1966a, p. I-11.

[22] Exército, 1966a, pp. I-19.

[23] Idem, pp. I-2 - I-3.

[24] Devido ao esforço inicial de guerra ter sido balanceado para Angola e para a Guiné-Bissau.

[25] O dispositivo territorial existente foi-se adaptando, com a formação de zonas de intervenção em Tete (norte do Rio Zambeze): CECA, 1988, p. 159.

[26] Teixeira, 2017, p. 559.

[27] Embora o conflito “único" no Ultramar Português tenha sido iniciado em Angola, em março de 1961, a experiência retirada da Guerra da Independência da Argélia e de outros países, tais como a França, a Bélgica e a própria Inglaterra e os EUA, puderam contribuir para uma adaptação provisória à tipologia de conflito que se veio a verificar em Angola, não estando, dessa forma, as forças militares portuguesas “totalmente" desamparadas da evolução e adaptação ao conflito subversivo, na década de 60, do século XX.

[28] Garcia, 2021.

[29] CECA, 1990, p. 109.

[30] CECA, 1990, p. 118.

[31] CECA, 1988, p. 204.

[32] Através de “forças de intervenção".

[33] CECA, 1990, p. 109.

[34] Estas forças eram constituídas por unidades do Exército, em escalões reduzidos (batalhão e/ou companhia/esquadrão), e por forças especiais (Comandos, Unidades de Milícias e Grupos Especiais). De acordo com o Teatro e o grau de comando e controlo, poderiam estar sob a dependência direta do Comando-Chefe, dos Comandantes de Zona de Intervenção/Operacional e dos Comandos de Setor: CECA, 1988, p. 160.

[35] As unidades de apoio de fogos incluíam unidades de Artilharia (Campanha e Antiaérea) e de morteiros e canhões sem recúo, podendo atuar de forma integrada nas áreas dos batalhões ou companhias, em pequenos escalões táticos, ou integradas nos Comandos de Setor, podendo integrar as forças de intervenção, sob o Comando-Chefe: CECA, 1988, p. 160.

[36] Idem, 1988, p. 160.

[37] CECA, 1990, p. 107.

[38] Exército, 1961; Exército, 1966b.


 

NUNO ROSA CALHAÇO

Major do Exército a prestar serviço no Instituto Universitário Militar/Gabinete de História Militar, da Área de Estudo e Ensino das Crises e dos Conflitos Armados. Entre outros, possui o curso de Artilharia da Academia Militar e de Estado-Maior do Instituto de Estudos



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​Como citar este texto:

CALHAÇO, Nuno Rosa –​​Uma Perspetiva Portguesa Sobre o “Teatro de Operações” de Moçambique. Revista Portuguesa de História Militar - Dossier: Início da Guerra de África 1961-1965. [Em linha]. Ano I, nº 1 (2021). [Consultado em ...], https://doi.org/10.56092/IEDE5004​

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