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MARIA QUITÉRIA: A SOLDADO MEDEIROS. PIONEIRISMO, PROTAGONISMO E PATRIOTISMO NAS LUTAS PELA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL



12.1 Foto Maristela Ferreira.jpg

MARISTELA DA SILVA FERREIRA

 



Resu​​​mo

Dentre os diferentes grupos que de norte a sul do território nacional uniram-se aos esforços de conquista da Independência do Brasil, alistou-se no Regimento de Artilharia, na vila de Cachoeira, reduto dos rebeldes baianos, Maria Quitéria de Jesus, a soldado Medeiros. Este estudo tem por objetivo narrar a trajetória dessa personagem histórica e igualmente militar, a partir de registros e pesquisas bibliográficas e documentais realizados por estudiosos de sua biografia, colocando em relevo o contexto de época, suas motivações e sua atuação nas Guerras da Independência, às quais integra-se e destaca-se por atos de bravura e coragem, responsáveis por inscrever seu nome no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria e no rol dos Patronos do Exército Brasileiro. Busca, ainda, ressaltar sua contribuição pioneira no que diz respeito não apenas à emancipação política do país, mas também à inserção ainda modesta, porém significativa, da participação feminina nas fileiras das Forças Armadas brasileiras.

Palavras-chave: Maria Quitéria; Guerras da Independência; Pioneirismo; Emancipação.​

Abs​tract

Among the many different groups coming from north and south of Brazil who joined the independence effort, one individual stood out by first enlisting in the Artillery Regiment of the Brazilian Army in the town of Cachoeira, an insurgent stronghold in the State of Bahia. Her name was Maria Quitéria de Jesus, also known as Soldier Medeiros, and this paper attempts to narrate the path trailed by this important historical and military character. The author used bibliographical and documentary records, as well as research works authored by her biographers, in an attempt to highlight the context of her times, her motivations and the role she played in the Wars of Independence. In these wars Maria Quitéria stood out with acts of bravery and courage, resulting in her name being inscribed in the Book of Homeland Heroes and the roster of Patrons of the Brazilian Army. The paper also highlights her pioneer contributions not only to the political liberation of Brazil but also to foster female participation in the ranks of the Brazilian armed forces.

Key words: Maria Quitéria; Wars of Independence; Pioneer Spirit; Liberation.

 


Introduç​​​ão

Os acontecimentos que levaram à emancipação política do Brasil em relação à metrópole, para além das proclamações e atos de ruptura em relação ao pacto colonial feitos pelo príncipe regente nos conhecidos “Dia do Fico", e  no “Grito do Ipiranga", têm sua gênese em ações decisivas e enérgicas, envolvendo muitas vezes lutas e combates travados em episódios anteriores, como a Inconfidência Mineira (1789), ou mesmo na Revolução Pernambucana, em 1817, e na guerra da independência da Bahia (1822 – 1823). Acontecimentos em que, nos termos de Braz do Amaral, houve lutas e mortes, e em que foi determinante a resolução e a resistência do povo, sua constância na luta e seu valor no sofrimento[1].

Na província da Bahia, desde a chegada do Brigadeiro Luís Inácio Madeira de Melo e sua frota, em 15 de fevereiro de 1822, para substituir, por imposição das Cortes Portuguesas, o Comandante das Armas da província, Manuel Pedro de Freitas Guimarães, brasileiro, querido do povo, a rivalidade e os antagonismos entre brasileiros e portugueses crescem dando lugar a dois grupos opostos: de um lado a tropa brasileira chefiada por Manuel Pedro de Freitas Guimarães e de outro a lusitana comandada por Madeira de Melo.

Definir o que era “ser brasileiro", nesse contexto de época, não é tarefa simples. Requer colocar em perspectiva alguns eixos que podem, como nos esclarece Ribeiro[2], estar vinculados a acontecimentos externos, ou relacionados às vontades dos personagens, ou, ainda, à brasilidade inata. Para o momento histórico que estamos enfocando, poderíamos propor a seguinte definição: de um lado e do outro havia portugueses e brasileiros; nesse momento prenhe de antagonismos e disputas, o que os definiria como portugueses era a adesão aos postulados e decisões das cortes “portuguesas", por um lado, e, por outro, como “brasileiros" o apoio crescente às ideias emancipacionistas por parte do príncipe regente.

O Exército Pacificador, mais tarde conhecido com o Exército Libertador, lutou contra as forças portuguesas organizadas por Madeira de Melo. No contexto dessa luta armada, as tropas lusitanas ocuparam, em Salvador, o Forte de São Pedro, invadiram lares, o Convento da Lapa, atacando a golpes de baioneta até a morte, a Soror Joana Angélica, o que resultou em um ambiente de guerra civil na cidade, fazendo com que as famílias abandonassem suas casas e se refugiassem no Recôncavo Baiano. As vilas sublevadas do Recôncavo se organizam em uma Junta Governativa na Vila de Cachoeira que passa a ser o polo de resistência à decisão das cortes, vinculando o movimento da Bahia ao governo do príncipe regente e à autonomia política do Brasil em relação a Portugal. Foi essa junta provisória que dirigiu o cerco à capital, bloqueando seu porto e ocupando as estradas por onde escoava o abastecimento. A esse grupo de rebelados do recôncavo se juntou Maria Quitéria, e lutou, sem tréguas, de setembro de 1822 a julho de 1823 na Companhia dos Voluntários do Príncipe, contra as determinações dos portugueses leais às Cortes Portuguesas, decididas a neutralizar o poder do Príncipe Regente e a implantar progressivamente uma política de recolonização do Brasil.

A mulher combatente, na grande maioria das vezes esquecida na memória das guerras fez-se, então, presente na história das lutas travadas em terras baianas, no contexto das guerras ocorridas no processo de nossa independência, na figura da brava sertaneja Maria Quitéria de Jesus, que desafiou as leis, as expectativas e papéis a ela destinados naquele contexto de época, dando visibilidade à presença feminina nos campos de batalha.

Não temos a pretensão de desenvolver uma nova interpretação dessa personagem de nossa história, mas, antes, torná-la ainda mais conhecida, colocando em destaque seu protagonismo, seu pioneirismo, seu nascente patriotismo, e buscando trazer a lume, nas escolhas que fez e nos caminhos que ousou trilhar para participar da linha de frente daquelas lutas, o simbolismo e a força de sua trajetória para a história das mulheres militares brasileiras desde então.

Este estudo se apoia, principalmente, nos registros documentais, e nos resultados da extensa pesquisa bibliográfica e de campo realizada por Reis Pereira Júnior, consolidados em sua obra Maria Quitéria (1953), bem como, na relevante contribuição documental dada pela obra de Braz H. do Amaral (1922), e, também, em menor monta, em algumas informações consagradas pela história oral. Tomamos, ainda, como pano de fundo mais amplo, considerado determinante para o desencadeamento do processo de emancipação política do Brasil, por um lado a crise do sistema colonial tradicional e a crise das formas absolutistas de governo, e, por outro, as lutas liberais e socialistas que se sucedem na Europa e na América desde os fins do século XVIII.

Prime​iros anos

Na pequena freguesia de São José das Itapororocas, pertencente à Vila de Cachoeira, no recôncavo baiano, nascia, no ano de 1792, Maria Quitéria de Jesus. A primogênita de Gonçalo Almeida e Quitéria Maria, viveu até os seus 10 anos de idade no sítio do Licorizeiro, propriedade de seu pai, que ali plantava algodão, criava gado e possuía cinco escravos dentre suas propriedades, o que confirmava sua condição de um pequeno e próspero agricultor.

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Figuras 1: Mapa da Vila de Cachoeira no Recõncavo Baiano. Fonte: Reis Pereira, 1953.


Maria Quitéria cresceu livre, correndo pelos campos, dominando o manejo das armas de fogo, praticante da caça (um de seus afazeres prediletos) e perfeitamente adaptada às atividades rurais e à paisagem rústica e bucólica de sua terra. Quitéria e seus dois irmãos, Josefa e Luís, ficaram órfãos de mãe no ano de 1802, e seu pai, com muitas dificuldades para criar os filhos e tomar conta da lavoura, casou-se novamente, com Eugênia Maria, no mesmo ano do falecimento de sua 1ª esposa, que no entanto, veio a falecer muito rapidamente.

O pai de Maria Quitéria decide-se por buscar um novo recomeço, longe daquele local de tristes lembranças, e adquire uma nova propriedade, uma pequena fazenda na região de Serra da Agulha, também no território da Vila de Cachoeira. Casa-se novamente com D. Maria Rosa e, ao final do ano de 1815, a família aumenta sua descendência: aos três primeiros filhos, somavam-se outros seis do terceiro casamento. Na fazenda da Serra da Agulha viveu a sertaneja Maria Quitéria anos de difícil convivência familiar (especialmente pelo isolamento afetivo imposto pela madrasta aos enteados), até juntar-se aos rebelados do Recôncavo, em setembro de 1822. É sobre esse ato individual, por si só emancipacionista, que discorreremos a seguir. ​

O Despertar para as armas: recrutamento e alist​amento

As guerras de independência da Bahia aconteceram entre fevereiro de 1822 e julho de 1823. Maria Quitéria lutou de setembro de 1822 e julho de 1823.  Para entender o ingresso de Maria Quitéria no Exército Pacificador, é preciso compreender especialmente como a “propaganda de guerra" a alcançou. Começamos, assim, pelo episódio do alvejamento, em junho de 1822, e do levante da Vila de Cachoeira, território que compreendia a sua moradia na Serra da Agulha. Cachoeira, a principal praça comercial da província, se encontra a 78 km de Salvador, essa proximidade e as trocas comerciais entre elas tornavam seu cotidiano muito semelhante, o que facilitava a circulação de informações, e fazia com que Cachoeira tivesse conhecimento diário de tudo que se passa na capital.

Um grande estopim para os primeiros e violentos enfrentamentos na região do recôncavo foi o fato de que a escuna canhoneira comandada pelo capitão Duplaquet, que se encontrava estacionada no Rio Paraguaçu, em frente a Cachoeira, e fora enviada para sufocar qualquer movimento de rebeldia por parte da resistência, disparou contra a vila em 25 de junho, enquanto seus moradores desfilavam pelas ruas e praças públicas após a missa em ação de graças à aclamação promovida pela Câmara Municipal (Termo de Vereação de 25 de junho de 1822), que reconhecera Dom Pedro como príncipe regente e defensor perpétuo do Brasil.

Nessa missa, o sermão[3] patriótico do vigário Francisco Gomes de Almeida comparara Dom Pedro ao apóstolo Pedro, citando a passagem bíblica “tu és Pedro e sobre esta Pedra edificarei minha Igreja", em alusão ao império brasileiro que Dom Pedro igualmente edificaria.

Cachoeira se antecipou ao grito do Ipiranga e aclamou Dom Pedro Regente e defensor perpétuo do reino do Brasil. Em consequência, torna-se palco do primeiro combate do nascente exército dos patriotas[4]. Em 28 de junho de 1822, os milicianos e o povo de Cachoeira, dirigidos pelo Coronel José Garcia Pacheco, tomaram a canhoneira portuguesa que, desde 25 de junho, disparava contra a vila incessantemente, saindo vitoriosos e dando início à guerra de independência, que se estenderia até o ano seguinte (julho de 1823).

Consideramos relevante nesse contexto da circulação das ideias e da “propaganda de guerra" ressaltar que além da incipiente campanha militar para estruturação de uma força que fizesse frente às tropas lusitanas, formava-se, também,nas principais províncias do reino, uma verdadeira guerra literária, por meio dos papelitos, panfletos impressos ou manuscritos, os papéis públicos e as canções patrióticas, depois cognominados “papelitos incendiários da independência", que circulavam livremente, eram distribuídos de mão em mão, estavam nas praças, nas boticas, nos postes, nas calçadas, nas casas; feitos para serem lidos em voz alta, alcançavam a todos, inclusive aos iletrados como Maria Quitéria.

Esses panfletos[5] transformaram-se em instrumentos eficazes de promoção do debate e, mais ainda, da ampliação de seu alcance, graças à leitura coletiva em voz alta. Surgia, a possibilidade da intervenção do indivíduo comum na condução dos destinos coletivos [6].

O movimento emancipacionista e a campanha militar se alastram pela província. Outras vilas se unem a Cachoeira e compõem uma junta governativa provisória. Como a Bahia não possuía um exército estruturado e treinado para enfrentar os portugueses, o conselho interino do governo da Bahia envia emissários por todo o território para recrutar voluntários. Os emissários abordavam os moradores dos arraiais e vilas.

Um desses emissários visitou a fazenda da Serra da Agulha e relatou, com muito entusiasmo cívico, os episódios de cachoeira, a necessidade de arregimentar fundos e doações, e de receber voluntários para a compor os batalhões patrióticos. O pai de Maria Quitéria não demonstrou interesse, informou ao emissário que estava velho e que não tinha filhos que pudessem lutar em seu lugar e que, quanto a dar escravos para as tropas, argumentava que não haveria, por parte do escravo, interesse algum pela independência do Brasil ... Finalizava sua exposição asseverando sua neutralidade, com as seguintes ao dizer que esperaria com paciência o resultado da guerra e seria um “pacífico súdito do vencedor"[7].

Quitéria lembrou ao pai, no entanto, que as mulheres baianas também manejavam armas de fogo, como os homens, e que “quem sabe caçar pode pegar em armas para defender sua terra", e, assim, pedia ao pai permissão para aderir a luta. O pai a repreendeu, afirmando que as mulheres bordam, tecem, fazem os trabalhos de casa e não vão a guerra. Quitéria, calou-se para não contrariar o pai, porém estava decidida e naquela mesma noite, com a ajuda da irmã Teresa e do cunhado Medeiros, de quem pega emprestado o nome, cortou os cabelos, vestiu-se como um homem e, como nos relata Taunay: “[…] dirigiu-se à vila de Cachoeira, onde se alistou sob o nome de Medeiros, no Regimento de Artilharia. A Guerra em questão pouco lhe amedrontava, sua preocupação real era que seu pai a descobrisse e fosse lhe buscar. Dias depois tal fato ocorreu, no entanto, o juramento já havia sido feito, o que impossibilitava sua partida. Gonçalo deserdou e amaldiçoou a filha neste dia"[8].

Segundo Silva[9], o disfarce da soldado Medeiros não teria durado muito tempo. Seus colegas de pelotão já a haviam descoberto, antes da visita de seu pai.  Maria Quitéria, contudo, continuou a exercer sua função no exército patriota, pois sua habilidade equiparava-se a dos demais soldados, e seus próprios companheiros e chefes reconheciam seu valor. Em curto período de tempo após seu alistamento, que se dera em setembro de 1822, foi designada ao Batalhão de Caçadores denominado Voluntários do Príncipe Dom Pedro, depois carinhosamente chamado de Batalhão dos Periquitos, em razão das cores dos punhos e golas dos uniformes.

Os combates de que participou

Segundo Braz do Amaral, Em A Ação da Bahia na Obra da Independência Nacional, o exército pacificador nome que havia tomado o dos revoltosos baianos “[...] tinha a força de 10.148 homens, com os quais fez o assédio da cidade, (o qual durou nove meses), fora a guarnição nos pontos estratégicos de Itaparica, que ocupavam 3.257 praças, ao passo que a esquadrilha dos barcos baianos que impedia a chegada de suprimentos ao exército português era tripulada por 710 marinheiros"[10].

É importante destacar a composição maciça de voluntários nessa formação. Esse número elevado, considerando-se que a população da província da Bahia estava em torno de 350 mil à época, e que um terço desse número era de escravos e muitos outros não podiam servir, por razão de idade ou sexo, leva-nos a concordar com Castro no entendimento de que “entre os homens adultos livres, aproximadamente um em cada quatro moradores da Bahia, ou 25% de todos os que tinham condições de servir, estavam combatendo no exército pacificador"[11]. Houve, assim, uma grande e espontânea mobilização popular em toda a província, ao ponto de despertar o desejo em nossa heroína de romper com os laços familiares, e em demonstração de audácia, coragem e genuíno sentimento patriota, disfarçar-se, para arriscar a própria vida unindo-se aos independentistas.

Após guarnecer por algumas semanas a Vila de Cachoeira, a participação de Maria Quitéria começa mais efetivamente a partir de 29 de outubro, quando segue com o Batalhão dos Voluntários do Príncipe para participar da defesa da ilha de Maré e, logo depois, para Conceição, Pituba e Itapuã, integrando a Primeira Divisão de Direita.

Seu batismo de fogo ocorreu um dia após a Batalha de Pirajá (a principal batalha da guerra, ocorrida em 08 de novembro de 1822), quando os portugueses tentaram surpreender a esquerda brasileira pela estrada da Pituba e foram rechaçados pelo Batalhão dos Periquitos onde combatia Maria Quitéria.

Em fevereiro de 1823, participou com bravura do combate de Itapuã, quando atacou uma trincheira inimiga, fez prisioneiros portugueses (dois, segundo alguns autores), escoltando-os, sozinha, ao acampamento. Por essa atuação, o general Pedro Labut, comandante das forças brasileiras à época, lhe confere as honras de cadete, determina que lhe fossem entregues, em 31 de março de 1823, uma espada[12] e seus acessórios.

O terceiro de que participou e do qual há também registro, consta de passagem do Diário do Governo do Ceará, de 24 de julho de 1823, que reporta a recomendação do comandante em chefe do exército pacificador na Bahia, general José Joaquim de Lima e Silva, que Maria Quitéria integrasse a nau Leal Portuguesa, que seguiria para a corte em visita ao imperador, a fim de que alguns combatentes recebessem de S. A. R. as honras e condecorações pelo desempenho nas lutas de independência da Bahia.

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Figura 2: Extrato do Diário do Governo do Ceará. Fonte: Reis Pereira, 1953. Foi preservada a grafia da época na transcrição.​

Dona Maria Quitéria de Jesus, natural da Freguesia e S. José das Itapororocas, desta Província, ao grito de Pátria em perigo, desamparou seus paes, assentou praça de Soldado, e pegou em armas para sua defesa. Esta mulher tem se distinguido em toda a campanha com indizível valor, e intrepidez. Três vezes que entrou em combate apresentou feitos de grande heroísmo, avançando de uma, por dentro de um rio, com agoa até os peitos, sobre uma barca, que batia renhidamente nossa Tropa. O General Labatut conferio-lhe as honras de 1º Cadete, e como tal tem sido considerada no Batalhão nº 3 do Exército Pacificador. Como porém me patenteasse ardentes dezejos de beijar a Imperial Mão de S. M. facultei-lhe licença,  e parte nessa ocasião para sua Corte. Se a exposição que acabo de fazer acerca desta heroína merecer alguma consideração digne- se V. Ex. leva-la ao conhecimento do mesmo Augusto Senhor. Deos guarde a V. Ex. Quartel General da Bahia, 21 de julho de 1823, 2.º da Independencia, e do Imperio.

Ilmo. e Exmo. João Vieira de Carvalho. – José Joaquim de Lima e Silva, Comandante em Chefe do Exército Pacificador.

 

O Fim da gu​erra na Bahia

Na cidade de Salvador o brigadeiro Madeira de Melo teve suas tropas sitiadas por terra e mar. Esse cerco foi intensificado especialmente depois dos reforços enviados por Dom Pedro após a contratação do almirante inglês Thomas Cochrane, que seguiu por mar até a costa da Bahia, com seis navios tripulados por brasileiros e portugueses e alguns oficiais estrangeiros mercenários sob seu comando. Os conflitos duraram até 2 de julho[13], quando os últimos portugueses que ainda resistiam decidiram abdicar do combate.

No dia 2 de julho de 1823, com a derrota das tropas portuguesas, o Exército Pacificador entrou na cidade de Salvador. De acordo com Reis Pereira, assim se constituía, ao final do conflito, esse exército que triunfante e orgulhosamente toma as ruas de Salvador: À frente da Divisão está o comandante em chefe do Exército Nacional Imperial e Pacificador, José Joaquim de Lima e Silva, que se faz acompanhar de seu estado maior; a seguir o Batalhão do Imperador, disciplinado e magnífico, dirigido pelo major Manuel Fonseca de Lima, de que faz parte Maria Quitéria. Precedendo-o o Batalhão Henrique Dias sob o comando do tenente coronel Manuel Gonçalves; logo após os bravos pernambucanos chefiados pelo major Tomás Pereira da Silva; depois os denodados expedicionários da Paraíba dirigidos pelo cap. Teodoro de Macedo Sodré; e por fim um aglomerado de heróis descalços, quase desnudos, deixando transparecer através dos seus rostos, marcados pelo sofrimento a luz que irradia da suprema ventura da liberdade[14].

Maria Quitéria marchava dentre eles, sendo saudada e homenageada pela população. Foi, como veremos abaixo, distinguida pelo general José Joaquim de Lima e Silva, com uma coroa de flores tecida em vigília, durante os meses de lutas, pelas freiras do Convento da Soledade: “De fronte do Convento da Soledade, que tem as portas e janelas ornamentadas, as freiras erguem um arco de flores para a passagem dos bravos. O capelão interino do Convento, padre Antônio José Gonçalves de Fugueiredo, saúda as forças da Liberdade em nome das freiras, dirigidas pela Superiora Madre Maria José do Coração de Jesus Bulcão, e faz entregar ao general Lima e Silva de algumas coroas de louros, por elas tecidas em longa vigília, para a fronte dos heróis. Maria Quitéria, que, na tropa tem posição perto do general comandante, é por ele distinguida Nessa homenagem gloriosa"[15].​

Visita à Corte no Rio de Janeiro: condecoração, ascensão e homenagens

Maria Quitéria em sua visita à Corte, foi convidada a um encontro com Lady Graham[16] em sua casa, o que ocorreu em 29 de agosto de 1823. Quitéria, nessa oportunidade, narra à jovem inglesa alguns episódios de sua vida, especialmente, sobre sua decisão de disfarçar-se e se alistar junto ao exército pacificador, discorrendo também, sobre seu uniforme e outras curiosidades que hoje nos permitem ter uma visão mais completa da soldado Medeiros e de sua trajetória.

Chamou nossa atenção, dentre tantos outros elementos de Diário de Graham, a descrição feita de Maria Quitéria, por ocasião da visita de alguns combatentes do vitorioso exército pacificador da Bahia à corte. No que diz respeito a seus hábitos e comportamento e quanto à questão de sua feminilidade a cronista informa-nos:

Maria de Jesus é iletrada, mas esperta. Seu entendimento é rápido e sua percepção aguda. Penso que, com educação, ela se tornaria uma pessoa notável. Ela não é particularmente masculina em sua aparência, e seus modos são gentis e agradáveis. Ela não se tornou rude ou vulgar por sua vivência em campo, e acredito não há qualquer coisa que comprometa sua modéstia. Não há nada de muito peculiar em seus modos à mesa, exceto por comer ovos no desjejum e peixe no jantar acompanhados de farinha, em lugar de pão, fumando um cigarro após cada refeição; mas ela é muito comedida.

Acerca do saiote que usava sobre a fardeta de polícia e que chamava a atenção de todos, há o registro em portaria de março de 1823, registrando que o Major do Governo Provisório da Vila de Cachoeira solicitou do Inspetor dos Fardamentos, Montarias e Misteres do Exército que enviasse “dois saiotes, de camelão ou outro pano qualquer, e uma fardeta de polícia" ao cadete Maria Quitéria, para que a soldado Medeiros fosse devidamente fardada como mulher. Isso ocorreu após os primeiros combates de que participara Quitéria e nos quais se destacara.

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Figuras 3 e 4: Maria Quitéria de Jesus, desenhada à época da sua estada na corte do Rio de Janeiro pelo amigo de Lady Graham, Augustus Earle, em 1823. Desenho de Augustus Earle; Gravura de Edward Finden (1824). Retrato de Maria Quitéria, pintura a óleo, por Domenico Failutti, (1920) da coleção do Museu Paulista (Museu do Ipiranga).


Com a criatividade e a inspiração tirada de uma gravura de guerreiros escoceses, conforme relatou Maria Graham, Quitéria, de posse da fardeta de polícia e dos saiotes, compôs seu fardamento, que, em sua inocência, interpretara como uma forma de torná-lo mais feminino, aos moldes do uniforme dos escoceses[17]. Além do mais importante depoimento acerca de nossa personagem, a visita de Maria Quitéria à corte e, especialmente, seu encontro com Maria Graham, nos legou também, suas primeiras e únicas imagens: um desenho do inglês Augustus Earle, (posteriormente transformado em gravura por Edward Finden) e uma pintura a óleo também de Earle, feitos logo após a independência, a pedido de Maria Graham. Todos os demais retratos, bustos e imagens foram feitos a partir desse primeiro desenho do artista inglês Augustus Earle, presente na corte do Rio de Janeiro nesse mesmo período.

Em 20 de agosto de 1823, vestindo seu curioso uniforme militar, calça, saiote de lã, fardeta, quepe e espada, e o distintivo dos Voluntários e atraindo a atenção de todos por onde passava, Maria Quitéria é recebida pelo imperador, no Palácio de São Cristóvão. Nessa solenidade Dom Pedro condecora nossa guerreira Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro do Sul. Nesse dia, depois de efusivamente saudada pelos presentes, o imperador se aproximou de Maria Quitéria e colocou em sua farda azul de golas e punhos verdes, à altura do coração a insígnia de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro do Sul, proferindo as seguintes palavras: [...] queremos conceder a dona Maria Quitéria de Jesus um distintivo que assinale os serviços militares que, com denodo, raro entre os mais do seu sexo, prestara à causa da Independência deste Império, na porfiosa restauração da capital da Bahia. Hei por bem permitir-lhe o uso da insígnia de Cavalheiro da Ordem Imperial do Cruzeiro[18].

Quitéria agradece ao imperador e, humildemente, solicita a S.A. R. uma carta endereçada a seu pai, Gonçalo Almeida, pedindo que ela fosse perdoada pela desobediência, que atende ao seu pedido. Dom Pedro determina, ainda, a ascensão de Maria Quitéria ao posto de Alferes, e que lhe sejam concedidos dois soldos em adiantamento pelos inestimáveis serviços prestados nas lutas pela independência. ​

Consi​derações Finais

Com o fim da guerra, Quitéria viveu alguns anos ainda sendo celebrada pelos habitantes locais de sua região. Atendendo a pedidos de visitas, na condição de alferes, e autorizada pelo governo da província, se dirigia às vilas e outros povoados da região, para narrar sua trajetória na campanha da Bahia, verdadeiras peregrinações que fazia portando sua espada, e envergando a original farda azul imperial com saiote que ela própria havia modelado, além de vistoso capacete com penacho verde.

Contudo, não levou muito tempo até que chegasse um período de esquecimento.  Terminou seus dias quase cega, com complicações no fígado e em doloroso anonimato, no dia 21 de agosto de 1853. Apenas por ocasião do centenário de sua morte, ocorreram vários movimentos para retirá-la desse apagamento histórico e fazer justiça a sua história, dentre eles, destacam-se: inauguração em todos os quartéis do retrato de nossa “mulher-soldado" (Aviso Ministerial nº 408, de 11 de maio de 1953); entronização como patrono do quadro complementar de oficiais do exército brasileiro (Decreto do presidente da república, Fernando Henrique Cardoso, de 28 de junho de 1996); inscrição de seu nome no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília.

Em um primeiro momento da nossa história em que o país buscava sua identidade e sua consolidação como nação, grandes líderes e personagens militares e civis deixaram sua marca. Ao participar das lutas que contribuíram para o rompimento do pacto colonial e para a instauração de uma nova ordem, os atos de coragem e bravura de Maria Quitéria deram a essas lutas um rosto de mulher, cujos reflexos​ se fizeram presentes em diversos momentos de inflexão de nossa história emancipacionista.

O papel das ações individuais no curso da história sempre nos surpreende, especialmente porque o grau de liberdade e de possibilidades de um indivíduo comum, do povo, é quase sempre muito limitado pela lógica das ações do Estado, especialmente de um Estado Absolutista (ainda que em seus momentos estertores), cujos preceitos e privilégios são de origem divina e, portanto, imutáveis, inquestionáveis.

Foi nesse contexto de uma sociedade patriarcal, ainda sob a aura do regime absolutista, que Maria Quitéria, em genuíno ímpeto revolucionário iluminista, ao fugir de casa, disfarçar-se e colocar-se nas trincheiras pela emancipação política do Brasil em relação à metrópole, consegue dar um novo sentido à história, não apenas à sua, mas a de todas nós, mulheres militares brasileiras, que hoje ocupamos um lugar nas fileiras do Exército, e vestimos nossa farda, sem disfarces ou constrangimentos, ao contrário, com orgulho e altivez, sob as bençãos da brava e audaz sertaneja Maria Quitéria.

 

Bibliografia

AMARAL, Braz do – A Ação da Bahia na Obra da Independência Nacional. Salvador: EDUFBA, 2005 [1922].

CARVALHO, José Murilo de; BASTOS, Lúcia e BASILE, Marcelo (Org.) – Às Armas, Cidadãos! Panfletos Manuscritos da Independência do Brasil (1820 – 1823). São Paulo: Cia das Letras; Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2012.

CASTRO, Adler Homero Fonseca de – O 2 de Julho, um feriado nacional? Da Cultura. Rio de Janeiro: Ano XXI nº 38, p. 44 – 57, Número Especial, 2022.

GRAHAM, Maria – Diário de uma viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1990 [1824].

REIS JÚNIOR, Pereira – Maria Quitéria. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1953.

RIBEIRO, Gladys Sabina – A liberdade em construção. Identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado. Rio de Janeiro: Relume Dumará. FAPERJ, 2002. (Cap 1 “Ser Português ou ser Brasileiro?") p. 27 – 143.

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TAUNAY, Affonso D'e – Grandes vultos da Independencia Brasileira: Publicação comemorativa do primeiro centenário da independência nacional. São Paulo: Editora Proprietária Companhia melhoramentos de S. Paulo 1922. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/bitstream/bbm/6960/1/45000009128_Output.o.pdf​. Acesso em 25 de março de 2022.




​NOTAS​

[1] BRAZ DO AMARAL, 2005 [1922], p. 17.

[2] RIBEIRO, 2002, p. 27-143.

[3] Conferir leitura completa do sermão em CARVALHO, BASTOS, BASILE, 2012, p. 84.

[4] As Forças reunidas na Bahia para o enfrentamento das tropas de Madeira de Melo foram denominadas ora Exército Pacificador, ora Exército Libertador, e, ainda Exército Patriota.

[5] Importante salientar, seguindo CARVALHO, BASTOS e BASILE, 2012, p. 31, que “se os panfletos impressos da mesma época revelam intenso debate político entre letrados em torno dos grandes problemas daquele momento, os manuscritos sobressaem pela revelação da participação das ruas na “guerra literária" da constitucionalização e da independência". Indicando, os primeiros, a complexidade dos debates, e os segundos, seu alcance.

[6] CARVALHO, BASTOS e BASILE, 2012, p. 9.

[7] GRAHAM, 2021 [1822].

[8] TAUNAY, 2002.

[9] SILVA, 2004.

[10] BRAZ DO AMARAL, 2005 [1922], P. 15.

[11] CASTRO, 2022, P. 48.

[12] Livro de registro de Portarias do Governo Provisório da Villa de Cachoeira da Bahia, expedidas a várias autoridades, desde 1º de janeiro de 1823 até 21 de junho do mesmo ano; p. p. 171 e 180 Bibl. Nac. Divisão de Obras Raras, Sec. De Manuscritos. Cf. Reis Pereira, 1953, p. 47.

[13] Acredita-se que em 2 de julho o exército brasileiro possuía no entorno de 10.139 homens contra 4.520 portugueses. Contabilizam-se, ainda que sem exatidão, 750 mortos e 280 feridos do lado dos patriotas contra o expressivo número de 2.500 feridos, 700 mortos e 300 capturados do lado português, isso em todo o conflito, números estes que podem ser maiores.

[14] REIS PEREIRA, 1953, p. 53.

[15] IDEM, p. 54.

[16] Nesses anos conturbados da história brasileira, curiosamente, uma viajante inglesa, Maria Graham, chegara ao Brasil, quando o navio-escola da marinha de guerra britânica em que viajava e em que tinha a função de professora e instrutora dos jovens guarda-marinha, futuros oficiais, comandado por seu marido Capitão Thomas Graham, aportou na cidade do Recife, mais precisamente no dia 21 de setembro de 1821. Talentosa cronista, redige e publica em 1824 o seu Diário de uma viagem ao Brasil (2021 [1824]), e nessa obra registra a sua estada em nosso país nos anos de 1821, 1822 e 1823.

[17] GRAHAM, 1824, p. 335.

[18] REIS PEREIRA, 1953.

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MARISTELA DA SILVA FERREIRA

Tenente Coronel R/1do Quadro Complementar de Oficiais do Exército Brasileiro. Possui os cursos de Aperfeiçoamento Militar pela Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais do Exército, Graduação em Letras/Inglês, Mestrado em Letras/Linguística e Doutorada em Estudos da Linguagem. Especialização em História Militar Brasileira e integrante do Centro de Estudos e Pesquisas de História Militar do Exército, e do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil.​

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Como citar este texto:

FERREIRA, Maristela da Silva – Maria Quitéria: a Soldado Medeiros. Pioneirismo, Protagonismo e Patriotismo nas Lutas Pela Independência do Brasil​. Revista Portuguesa de História Militar - Dossier: O Brasil na História Militar de Portugal, 1500-1822. [Em linha]. Ano II, nº 3 (2022).[Consultado em ...], https://doi.org/1​0.56092/SKUO5960​


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