A GUERRA IRREGULAR NA GUERRA ANTIGA: O CASO DOS LUSITANOS - SÉCULO II A.C.[1]
Amir Malek Bergaoui
Resumo
Figura pouco conhecida mas emblemática da Antiguidade, Viriato foi um dos principais opositores ao domínio romano na Península Ibérica. Os seus sete anos de resistência vão permitir uma nova definição de guerra irregular como estratégia, e não apenas como táctica. Este artigo apresentará as questões em jogo, uma avaliação militar da República Romana, uma descrição do Viriato, e um estudo da antiga guerra irregular, através de análises do carácter do líder guerrilheiro e das batalhas lusitano-romanas. Este mergulho no coração da história irá assim lançar luz, em parte, sobre a perigosa ascensão de Roma ao cume imperial. Mas também, as especificidades da antiga guerrilha, separadas dos meios modernos que normalmente associamos a ela. Finalmente, a informação em primeira mão assim disponível sobre um conflito pouco conhecido, permite-nos compreender melhor a fascinante complexidade do mundo antigo.
Palavras-Chave: Guerra de guerrilha antiga; Viriato; Lusitânia; Roma; Exército Romano.
Abstract
Little known but emblematic figure of antiquity, Viriato was one of the main opponents to Roman rule in the Iberian Peninsula. His seven years of resistance will allow a new definition of irregular warfare as a strategy, not just a tactic. This paper will present the issues at stake, a military assessment of the Roman Republic, a description of Viriato, and a study of ancient irregular warfare, through analyses of the character of the guerrilla leader and of Lusitanian-Roman battles.This dive into the heart of history will thus shed light, in part, on Rome's perilous rise to the imperial summit. But also, the specifics of ancient guerrilla warfare, separate from the modern means we normally associate with it. Finally, the first-hand information thus available on a little-known conflict allows us to better understand the fascinating complexity of the ancient world.
Keywords: Ancient guerrilla warfare; Viriato; Lusitania; Rome; Roman Army
Lusitânia – A Província que disse não a Roma
Região menos conhecida da antiguidade, a Lusitânia foi um importante teatro de resistência ao expansionismo romano. O seu território corresponde aproximadamente à totalidade de Portugal actual, prolongando-se em direcção à meseta espanhola, na Península Ibérica. Dividida em duas zonas, uma montanhosa no centro e Norte, e outra de planícies adequadas para a agricultura, no Sul, era uma região onde a vida era geralmente difícil, motivando os lusitanos a pilhar os territórios vizinhos[2], tornando-se num povo endurecido e versado na arte da guerra. Um modo de vida que colidiu com os interesses de Roma na região, causando altercações entre estes dois actores territoriais.

Figura 1: Mapa da invasão romana da Hispânia de 206 AC a 133 AC (Invasionromanahispania, publicado por NACLE, 28/05/2017, CC BY-SA 4.0, Wikimedia Commons), https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Invasionromanahispania.svg
Em 219 a.C., iniciou-se a invasão da Península Ibérica, seguida das primeiras batalhas significativas, que começaram em 194 a.C. e se prolongaram até 181 a.C., quando os Lusitanos foram derrotados pelo pretor romano Tiberius Sempronius Gracchus[3]. Posteriormente, por volta de 155 a.C., enraizados na sua desconfiança em relação a Roma, os chefes lusitanos Púnico e Césaro retomaram as hostilidades, mas foram mortos no campo de batalha. Iniciava-se o processo de subjugação do seu povo pelos romanos, prefigurando o advento de revolta sob o comando de Viriato.
Foi este espírito feroz e indomável e a sua habilidade guerreira que levou os Lusitanos a desafiar Roma, uma luta implacácel contra um inimigo tido por imparável.
Balanço Militar da República Romana
O Império Romano era impulsionado por uma vontade hegemónica, apresentando uma capacidade militar equiparável às suas pretensões. Os seus objectivos no Mediterrâneo incutiram preocupação nas tribos ibéricas e demais potências regionais. O seu maior inimigo, e aquele que a forçaria a repensar parte da sua guerra, Cartago, era também uma cidade em expansão. Com as ambições territoriais romanas a estenderem-se também à Hispânia, o conflito entre as duas potências deflagrou[4]. A guerra, iniciada em várias frentes – contra os Cartagineses, Lusitanos e Gregos[5] – foi dificultda pela distância marítima. Assim, Roma foi forçada a mobilizar mais tropas do que anteriormente, com vocação de manutenção permanente[6]. Tratou-se de uma mudança considerável, que permitiu estabelecer Roma como potência marítima e superpotência mundial[7].
Estas guerras foram motivadas por três grandes princípios: a política, a necessidade militar e o desejo, para alguns romanos, de provar a sua utilidade para o Estado (o seu virtus). Assim, a motivação económica não terá sido a única justificação para as guerras romanas[8]. Parece que as mesmas podem ser muito atribuíveis aos jogos de aliança de Roma, que fácilmente explicam as suas campanhas militares[9]. Esta justificação também se aplicava à sua posição como superpotência mediterrânica, que a obrigava a assegurar a sua paz romana[10], à custa de guerras travadas para preservar e impor a ordem no mundo conhecido. Finalmente, demonstrar o seu virtus à República Romana através de façanhas de armas foi um meio de ascensão política e de mantenção do estatuto do romanos no Senado. Era também uma alavanca para se impor como uma força com a qual o Senado seria forçado a negociar, da qual César foi um dos exemplos mais reveladores[11].

Figura 2: Diagrama da formação Triplex Acies (Autor Muzyk98 (18/08/2016), traduzida por Amir Malek Bergaoui, Wikimedia Commons: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Szyk_acies_triplex.jpg
Além disso, a organização militar romana possuía uma relação simbiótica com o espírito aristocrático da cidade. De facto, apenas aqueles cuja riqueza excedia um certo nível eram enviados para a guerra. Houve também uma selecção baseada na idade dos cidadãos, entre 17 e 60 anos podiam ser mobilizados e, dentro deste grupo etário, foi feita uma nova separação entre iuniores (17-45 anos) e seniores (45-60 anos), sendo cada um destes grupos dividido em centúrias[12].
Os cidadãos escolhidos eram mobilizáveis ao longo das suas vidas. Havia, evidentemente, um número máximo de campanhas para as quais a participação era obrigatória para os jovens, podendo ser mobilizados de acordo com as necessidades militares e políticas. É de notar que os mais ricos poderiam pagar um cavalo e depois, se seleccionados pelo senado (detentor do imperium[13]), assumir papéis de comando. Finalmente, os soldados foram constantemente treinados devido à gestão móvel das tropas e à complexidade das manobras da organização manipular (composta por duas centúrias). Os jovens eram, de facto, colocados na linha da frente, e era efectuada uma rotação com os outros dois corpos. Esta formação, chamada de Triplex Acies, efectuava-se entre os hastati, os mais novos e equipado apenas com uma protecção leve do tronco, um gládio e um escudo semi-cilíndrico, bem como um dardo (chamado pillum), e os principes, melhor armados, com uma cota de malha, um gládio curto e dois dardos. Contudo, por vezes a situação exigia a mobilização dos triarii (os homens mais velhos e veteranos), que usavam armaduras de metal pesado, carregavam grandes escudos e lanças e tinham uma vasta experiência de batalha.[14] No entanto, raramente intervieram, pois a sua mobilização quase sempre significava a iminência de uma derrota romana. Rotações ideais eram, portanto, o destino dos bons oficiais[15].
O modo de guerra preferido por Roma e pelas potências greco-latinas da época consistia num confronto ordenado e ritualizado, baseado numa formação de fileiras, representando a unidade da sociedade[16]. No entanto, Roma soube adaptar-se aos seus inimigos. Por exemplo, na guerra contra os “bárbaros"[17], não só adaptou as suas tácticas às dos seus inimigos, mas também as simplificou quando tal era possível e aconselhável. A sua flexibilidade militar não se baseava, portanto, apenas nos adversários que enfrentava, mas também na sua própria lógica de guerra, essencial para a sobrevivência e vitória dos seus exércitos. Esta capacidade de renovar constantemente os seus esquemas ofensivos foi, assim, devida não só à resistência “bárbara", mas também em face da evolução dos meios militares romanos, fora das Guerras Púnicas e graças a elas.
Embora a República Romana, em 150 a.C., ainda não tivesse conseguido subjugar totalmente o inimigo cartaginês, o seu poder permaneceu significativo no Mediterrâneo, particularmente para as potências mais pequenas da Península Ibérica. No entanto, um homem estava prestes a enfrentá-la.
Viriato, o homem providencial
Autores romanos como Diodorus Siculus (Diodoro da Sicília), Apiano de Alexandria e Lucius Claudius Cassius Dio (Dião Cássio)[18], legaram uma descrição de Viriato que quase se pode considerar mítica. Segundo eles, Viriato era um homem de origens humildes que se tornou líder incontestado de um povo e um dos mais respeitados senhores da guerra, um lusitano que encarnara a alma do seu povo, um homem da montanha forjado pela dureza da vida, com uma condição física formidável e de energía inesgotável, ao ponto de ser visto quase como sobre-humano. Era um homem de justiça, igualdade e liberdade, e também de grande inteligência, o que foi particularmente útil na rápida tomada de decisões complexas.


Figuras 3 e 4: Estátuas de Viriato na Plaza de Viriato, em Zamora-Espanha, e na Avenida da Bélgica, em Viseu - Portugal.
As suas capacidades e conhecimentos na arte da guerra fizeram dele o líder ideal para congregar tão grande confederação de tribos[19]. Comportou-se como diplomata quando possível, e como líder autoritário quando necessário, ao ponto de durante o seu comando e até ser assassinado não se ter registado qualquer rebelião, traição ou deserção. Mas acima de tudo, era um homem do povo, próximo da sua gente, que soube inspirar tanto respeito como esperança. Finalmente, o seu temperamento pragmático e a sua grande competência como comandante, sempre de acordo com a opinião dos autores referidos, fizeram dele um dos maiores adversários de Roma. Este espírito Ulisseu é considerado, como aponta Luis M. Silva, historiador especializado nos Lusitanos, como pioneiro de uma certa conceptualização da guerra de guerrilha[20].
Viriato votava ódio a Roma desde que estes haviam traído a trégua com o seu povo. Esta trégua seguira-se a um ataque vitorioso das forças romanas na Lusitânia, e foi orquestrada pelo pretor Servius Sulpicius Galba. Num primeiro momento, Galba convenceu os lusitanos da sua boa fé e compreensão 1face às suas especificidades e individuaidade. Depois, em 150 a.C., após lhes prometer terras aráveis como solução mutuamente benéfica e os ter convencido a deporem as armas, massacrou 9.000 lusitanos e fez mais de 20.000 prisioneiros. Viriato foi um dos poucos sobreviventes deste acontecimiento, que o norteou na busca de vingança e sobrevivência para o seu povo e, sobretudo, convenceu-o da impossibilidade de confiar nos romanos[21].
A resistência de Viriato foi assim uma luta altamente simbólica, uma luta pela liberdade, pela soberania, pela vingança e, de uma forma mais geral, pela esperança para o seu povo[22].
Batalhas lusitano-romanas: a guerra de guerrilha como estratégia de sucesso?
A estratégia de Viriato na guerra contra Roma foi, portanto, baseada na utilização de tácticas de guerrilha. Numa guerra entre dois inimigos com graus de poder assimétricos, o elemento mais fraco deve ser capaz de redobrar o seu engenho, a sua capacidade estratégica e táctica, de modo a obter uma hipótese razoável de resistir ou mesmo de vencer.
Na primeira grande batalha entre lusitanos e romanos, travada em 146 a.C., que opôs cerca de 10.000 homens de cada lado[23], a táctica de guerra clássica aconselharia o envio dos homens para uma confrontação frontal. Mas Viriato sabia que era melhor desafiar o inimigo numa configuração que lhe fosse favorável, sabendo que era mais inteligente, e menos arriscado, obrigá-los a combater nos seus termos.
Após recordar ao seu povo a perfídia do povo da Urbs[24] e de se ter feito eleger comandante das forças, decidiu posicionar os seus homens na clássica formação de batalha, ou seja, numa linha ofensiva. Depois, ao seu sinal, ordenou às suas forças que se dividissem em pequenos batalhões, que atravessassem as linhas inimigas em todas as direcções a caminho da cidade de Tríbola, e que aí se reunissem. Entretanto, ele e 1.000 dos seus melhores homens dariam combate às forças romanas do pretor da Hispânia Ulterior, Caius Vetelius.

Figura 5: Mapa do Mediterrâneo em 218 AC (Mediterranean at 218 BC-pt, publicado por Goran tek-en, em 15/12/2014, modificado por Renato de Carvalho Ferreira em 10/08/2016, CC BY-SA 4.0, Wikimedia Commons) https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Mediterranean_at_218_BC-pt.svg
O plano foi bem sucedido e Viriato e os seus homens recuaram a cada assalto romano durante dois días, até também eles desaparecerem[25]. Naturalmente, Viriato tinha poucas outras opções. O seu génio estratégico residia principalmente na forma como realizou as suas operações de guerrilha contra o exército romano. Assim, este evento teria, de facto, repercussões muito positivas para ele. Após a sua chegada a Tríbola, foi triunfantemente recebido como comandante capaz de assegurar a vitória das suas tropas numa situação tão desvantajosa. Este feito de armas ressoava por toda a Península Ibérica, e em breve um grande número de guerreiros bárbaros se juntaria a ele. Viriato, surgia como lendário senhor da guerra.
Onde Roma era estratégica e tacticamente muito superior à maioria dos seus adversários, particularmente nos clássicos esquemas ofensivos (guerra em campo aberto, cerco ofensivo, cerco defensivo...) [26], o uso do engodo e do subterfúgio como tácticas alternativas para inimigos incapazes de travar uma guerra com Roma, de acordo com as suas regras, provou ser adequado para lhe fazer frente. Roma estava familiarizada com o uso de tácticas de guerrilha, que ela própria aplicou contra o inimigo cartaginês[27]. Contudo, os lusitanos, sob o comando e a estratégica de Viriato, eram mais experientes nesta matéria devido ao seu modelo operacional (as suas capacidades, mão-de-obra militar e vantagem do terreno), o que os levou, uma vez que não podiam fazer o contrário, a praticar melhor a estratégia e táctica de guerrilha do que os romanos. Este domínio da estratégia do fraco contra o forte foi particularmente ilustrado durante duas batalhas que os opuseram aos romanos.

Figura 6: Mapa das batalhas e conquistas romanas na Hispânia, século II aC (Iberia 196aC - Carpetania 193-179 aC, publicado por Paulusburg em 02/03/2014, CC BY-SA 3.0, Wikimedia Commons), https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Iberia_196aC_-_Carpetania_193-179_aC.svg
Viriato e os seus homens avançaram metodicamente pelo território ibérico, tendo a Carpetânia[28] como primeiro destino, onde fizeram de Mons Veneris[29] a sua sede. Chegados a Segóbriga, no final de 146 a.C., Viriato enviou homens para libertar os rebanhos, atraindo as forças inimigas que se encontravam dentro da fortaleza da cidade para uma emboscada onde foram massacrados[30].
Em 141 a.C., o novo cônsul de Roma, Quintus Fabius Maximus Servilianus, sucedendo ao seu irmão Maximus Aemilianus, tentou empurrar Viriato para uma batalha nas planícies, mas falhou. Decidiu, então, cercar a cidade de Erisane, que era então aliada de Viriato. Este e os seus homens conseguiram infiltrar-se nas muralhas da cidade no escuro da noite e, ao amanhecer, mataram os soldados romanos nas trincheiras circundantes. Seguiu-se uma batalha directa entre as forças lusitanas e romanas, que resultou numa vitória lusitana, forçando as forças de Servilianus a recuar em desordem e confusão. Os homens do Viriato, excelentes cavaleiros, aproveitaram então a oportunidade para os empurrar de volta para uma área sem saída no topo de uma grande colina estreita, forçando-os a renderem-se[31]. Apesar desta vitória, e por razões que só podemos supor[32], Viriato foi levado em 140 a.C. a pedir um tratado de paz com os romanos, que estes últimos aceitaram, pelo menos à primeira vista[33].
Como acabámos de ver, Viriato utilizava o terreno e os seus homens com mestria e proveito, ignorando as convenções de guerra praticadas. Desta forma, as tácticas de assédio, emboscada ou ataque surpresa durante a noite tornaram-se um modus militar eficaz. No entanto, embora de natureza não convencional e, portanto, imprevisíveis, as tácticas irregulares de Viriato também estabeleceram, paradoxalmente, a sua própria ortodoxia. De facto, a sua forma de atacar sistemáticamente o seu inimigo com métodos irregulares deu à guerrilha de Viriato um carácter tacticamente regular. Viriato usou assédio não só no campo de batalha, a nível táctico, mas também a nível estratégico de condução da guerra. Nem sempre saiu vitorioso, ocorrendo tréguas em diversas ocasiões, acentuando o carácter temporal desta guerra de guerrilha[34].
Esta ferocidade em batalha dos lusitanos testemunha a vontade que os animou na luta contra os romanos. Alimentado pela traição destes últimos, o desejo de vingança e protecção da sua soberania territorial foi um combustível adequado e óptimo para a execução de uma guerra de guerrilha eficaz e duradoura. A complexidade logística de estabelecer tropas permanentes longe do território romano (especialmente por mar) e de as comandar poderia ter permitido aos lusitanos operações de guerrilha para os desgastar e forçar os romanos a retirarem-se da Hispânia, pelo menos temporariamente, a fim de limitar as suas perdas[35].
No entanto, embora a sua resistência fosse feroz e admirável, os parênteses lusitanos acabaram por se fechar para nos dar a história que hoje conhecemos[36]. Viriato foi assassinado durante o sono, em 139 a.C., por três dos seus homens que ele considerava leais. Tinha-os enviado para Roma para negociar a paz, onde sucumbiram às manipulações do cônsul Quintus Servilius Caepio, pensando que poderiam obter garantias para si próprios e os seus se executassem Viriato[37]. Talvez o que faltava a Viriato para preservar a sua vida e a sua guerrilha fosse a capacidade para inspirar tanto medo, como respeito.

Figura 7: Quadro alusivo ao assassínio de Viriato, de José de Madrazo y Aguda. Museu do Prado, Madrid. Publicado por Stefan Bellini em 27/01/2013, Wikimedia Commons.
No entanto, consideramos importante salientar as qualidades de Viriato e da sua guerrilha. Proveniente de um povo endurecido pelas montanhas, e cujo modo de vida foi adaptado em conformidade (banditismo), Viriato desfrutou naturalmente das forças que seriam essenciais na condução da sua guerra. Capacidade de recurso, adaptabilidade constante, um espírito de corpo muito forte, formação empírica de guerreiros. As tribos da Lusitânia eram já uma força segura. Esta robustez, combinada com a inteligência estratégica e táctica de Viriato, fez com que os lusitanos não fossem subestimados. A força da guerrilha de Viriato deveu-se, portanto, tanto à sua pessoa como à terra onde ele e o seu povo cresceram e foram forjados. Esta análise levanta justificadas questões sobre se a guerrilha será um reflexo do territorio!
No entanto, embora a guerrilha possa ser uma boa forma de ganhar batalhas contra um inimigo duro, ela não assegura necessariamente que a guerra seja ganha. A duração do combate, a sua organização, os seus meios e os seus objectivos são parâmetros a ter em conta para vencer. Neste contexto, e através desta análise do antigo contexto lusitano-romano, algumas falhas surgem neste uso da guerrilha nesta fase embrionária, falhas que são no entanto muito instrutivas para pensar a irregularidade não apenas como uma forma de guerra, mas também para pensar a guerra mais globalmente, e compreender as necessidades essenciais da sua prática.
Fontes Bibliográficas
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NOTAS
[1] Adaptado do artigo original em francês, publicado na La Revue d'Histoire Militaire (Redactor-chefe Cyril BLANCHARD), «La guerre irrégulière dans l'Antiquité: le cas des Lusitaniens (IIe siècle av. J.-C.)», [em linha] https://larevuedhistoiremilitaire.fr/2022/07/12/la-guerre-irreguliere-dans-lantiquite-le-cas-des-lusitaniens-iie-siecle-av-j-c/.
[2] SILVA Luis M., The Lusitanian War: Roman Conquest of Lusitania 155 BCE - 139 BCE, pp. 105-106 e 293-300.
[3] Ibid., op. cit., p. 293 e pp. 308-309.Magistrado de Roma, de patente senatorial, encarregado de administrar justiça na cidade, ou de governar uma província sob o domínio da República.
[4] Ibid., pp. 301-307 e pp. 309-312. As guerras entre os Romanos e os Cartagineses dividem-se em três períodos, resultando na vitória definitiva de Roma. A conhecida figura de Aníbal Barca destacou-se na Segunda Guerra Púnica, como comandante das forças cartaginesas, causando sérias dificuldades aos romanos.
[5] Quando Viriato se tornou comandante, a Segunda Guerra Púnica tinha terminado 55 anos antes da primeira grande batalha de Viriato em 146 a.C. A Terceira Guerra Púnica terminou no mesmo ano desta primeira batalha, pelo que esta vantagem só durou cerca de um ano. Os lusitanos e Viriato eram então susceptíveis de sofrer a força de um exército romano menos dividido e enfraquecido, o que acentuaria a grandeza militar de Viriato e do seu povo.
«La deuxième guerre punique», dans Roma-Latina, Paris, Prima Nocte SAS, [em linha] http://roma-latina.com/pages/republique4.html (acedido em 02/07/2022).
[6] COSME, Pierre. Chapitre 3. L'armée en campagne (IIIe-IIe siècles av. J.-C.).
[7] LE BOHEC Yann, Histoire des guerres romaines, pp. 108-109, pp. 125-126 e p. 149.
[8] Ibid., pp. 46-47.
[9] Ibid.
[10] Pax Romana, conceito utilizado para referir o período de paz durante o Império Romano do século I ao II d.C., que reconhece a superpotência do Império Romano como o único poder legítimo capaz de governar as suas regiões conquistadas.
[11]Ibid., pp. 43-49.
[12] Unidade administrativa e táctica composta por sessenta a oitenta soldados sob o comando de um “centurião" (oficial).
[13] Significa “Comando". Este é o poder supremo concedido aos magistrados romanos (prefeitos ou cônsules), incluindo o poder militar fora de Roma e o poder civil na cidade. YOUNI Maria, « Violence et pouvoir sous la Rome républicaine : imperium, tribunicia potestas, patria potestas », in Dialogues d'histoire ancienne, vol. 45, n°1, Besançon, Presses Universitaires de Franche-Comté, 2019, 316 p.,pp. 37-64, p. 3; pp. 8-14, [em linha] https://www.cairn.info/revue-dialogues-d-histoire-ancienne-2019-1-page-37.htm (acedido em 29/06/2022).
[14] BOSSIO Evan, CHASE Robert, DYER Justin, HUANG Stephanie, PATEL Marmik et SIEGEL Nathan, HISTORICAL EVOLUTION OF ROMAN INFANTRY ARMS AND ARMOR.
[15] COSME, Pierre. Chapitre 2. Le soldat citoyen (Ve-IIIe siècles av. J.C.); LE BOHEC, Yann, op.cit.
[16] HOLEINDRE, Jean-Vincent, 3 - L'hoplite et le stratège.
[17] Significando “estrangeiro", assume um significado particular nas concepções romanas de “civilização" (povo e cultura desenvolvida) e na sua retórica, onde é pejorativa, como expressando “fora de Roma" e, portanto, da sua natureza civilizadora. As aspas empregues indicam que estamos a usar o termo de uma perspectiva romana. NDIAYE, Emilia, L'étranger “barbare" à Rome : essai d'analyse sémique.
[18] SILVA Luis M., op. cit., pp. 261-281, p. 323.
[19] Um grupo de tribos lusitanas, reunidas numa unidade popular e territorial, em torno da governação do Viriato. Também inclui tribos nativas temporariamente aliadas, tais como os Celtiberos, Arvaques, Belli, Titii e Lusones (estas tribos podem ser consideradas como pertencentes aos Celtiberos). Esta aliança foi criada em 143 a.C. pelo líder religioso anti-Romano celtiberiano Olyndicus, «Olyndicus [líder dos celtiberos], acenando uma lança de prata que afirmava ter sido enviado do céu, tinha, pela sua aparência de profeta, conquistado as mentes de todos», CROMBET, Pierre. Florus, Tableau de l'Histoire romaine de Romulus à Auguste – e Viriato, deu origem ao que chamamos a Guerra Numantina.
[20] SILVA Luis M. op. cit., pp. 270-281 et pp. 289-291.
[21] Ibid., pp. 316-320.
[22] Diz-se que a sua influência e poder de persuasão foram tais que terá sido a causa da Guerra Numantina entre Celtiberos e os Romanos – BOUTET, Michel-Gérald, Québec; GROUT, James, The Celtiberian War and Numantia.
[23] SILVA Luis M. op. cit., p. 323.
[24] Significa "cidade" em latim. Com maiúscula, refere-se à cidade de Roma, "a cidade de todas as cidades".
[25] Ibid., pp. 322-325; MORRIS, James. The battle of Tribola, 147 BCE.
[26] LE BOHEC Yann, op. cit., pp. 50-55
[27] As tácticas de “terra deserta" devem ser distinguidas das tácticas de “terra queimada". No primeiro caso, o objectivo é colocar bens e soldados fora do alcance do inimigo, no segundo, impedir que o inimigo aceda aos recursos do país, destruindo-os tanto quanto possível pelo fogo. Quintus Fabius Maximus Verrucosus, o notório utilizador histórico do primeiro, tinha sido nomeado ditador (detentor do imperium) para combater Aníbal e as suas forças na Segunda Guerra Púnica em 217 a.C., onde fez uso desta prática retardadora. Isto não foi, contudo, do agrado do Senado, mas contribuiu para a subsequente derrota das forças cartaginesas. ERDKAMP, Paul. Polybius, Livy and the «Fabian trategy».
[28] Localizava-se na zona central da Península Ibérica, no território que compreende parte das actuais províncias espanholas de Guadalajara, Toledo, Madrid e Ciudad Real. RODRÍGUEZ, García Gonzalo. Viriato y Numancia III: Un Guerrero y un Druida.
[29] Significa a «colina de Vénus», cordilheira cuja localização exacta ainda é debatida por especialistas, alguns colocam-na na Serra de San Vicente em Toledo, outros na Serra de San Pedro, Cáceres, e alguns na Serra de la Serenita em Gredos.
[30] SILVA Luis M., op. cit., pp. 332-336.
[31] Ibid., pp. 349-352.
[32] Ibid., pp. 353-358.
[33] Ibid., pp. 359-360 e pp. 367-369.
[34] Ibid., p. 341, p. 344, p. 347 et p. 348
[35] COSME, Pierre. Chapitre 3. L'armée en campagne (IIIe-IIe siècles av. J.-C.) e CÉBEILLAC-GERVASONI, Mireille. Chapitre 13. Rome et l'Italie. État des lieux.
[36] Um ano antes do seu assassinato, Viriato, numa posição de fraqueza, acordou com os romanos “um tratado de paz", em 140 a.C. Uma das razões teorizadas para o desejo de Viriato de concluir este acordo foi o aumento das tensões entre as várias tribos, que poderia ser explicado pelo esgotamento das forças tanto em termos de números, como de moral, após uma guerra tão longa (seis anos, na altura da assinatura, sob o comando de Viriato, e muito mais tempo antes do seu comando). Algumas tribos tinham caído sob controlo romano. A ambição “nacionalista" de Viriato de criar um território lusitano unido teria, portanto, sido comprometida por este estado de coisas (para além do poder romano, que muito provavelmente o teria impedido de alcançar os seus objectivos). Entre as sugestões do livro de Silva, encontramos também a ideia de que esta unidade das diferentes tribos só foi mantida pela pessoa de Viriato. Podemos, portanto, assumir que ele também estava ciente da situação, e que tal motivou a assinatura do tratado de paz. Podemos assumir que ele já não tinha a vontade de simplesmente resistir a Roma (guerra de guerrilha como estratégia, auto-justificada), mas de construir um estado reconhecido que garantisse a unidade das tribos fora do domínio romano. Isto já não podia realizar, com a ascendência política e militar que uma vitória contra os romanos lhe teria dado e, portanto, um armistício a seu favor. Ele teria assim sido obrigado a confiar no sentido de honra romano para alcançar os seus fins e assim assinar o tratado de paz, como uma tragédia grega. SILVA Luis M., op. cit., pp. 351-352.
[37] Ibid., pp. 368-372; de acordo com a lenda, estes mesmos homens foram posteriormente executados pelos romanos, ou porque Roma não tolerou que um general fosse morto pelos seus soldados, ou simplesmente porque não pagou aos traidores.
AMIR MALEK BERGAOUI
Francês, é licenciado em Ciência Política Internacional pela Escola Internacional de Estudos Políticos (Université Paris-Est Créteil). Mestrando em Estudos Europeus e Internacionais, opção Europa e Espaço Atlântico na Universidade Cergy Paris. Interessado no estudo dos conflitos e particularmente das guerras irregulares, é colaborador da Revue d'Histoire Militaire.
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