DO EXÉRCITO DO REINO UNIDO DE PORTUGAL E BRASIL AO EXÉRCITO IMPERIAL DE D. PEDRO. BREVES NOTAS SOBRE APARÊNCIA E REALIDADE

Sérgio Veludo Coelho
Resumo
A chegada da Corte de Portugal ao Rio de Janeiro em 1808 abriu o caminho que legitimou o Brasil e as suas forças armadas, quando o território que era uma gigantesca colónia, até ao período em que se converteu na sede da Coroa portuguesa, um facto formalmente reconhecido no dia 16 de Dezembro de 1815, quando se tornou um reino paritário com Portugal. Ao contrário dos seus vizinhos, a independência do Brasil foi conseguida sem se sujeitar o país ao banho de sangue e à destruição de uma guerra civil, embora também não tivesse sido pacifica. Em 1822, o filho mais velho de D. João VI foi proclamado Imperador D. Pedro I do novo e independente Império do Brasil. A permanência da corte ao Rio de Janeiro havia tido um efeito imediato sobre a guarnição do Brasil, que foi reorganizada e aumentada durante os anos que se seguiram. Com a proclamação do império, em 1822, a era do Brasil colonial chegou formalmente ao fim. De certo modo, a independência do Brasil fora anunciada em 1808, com a chegada da corte ao Rio de Janeiro. Menos de 20 anos depois o Brasil tornou-se o mais poderoso dos países independentes da América do Sul e a sua única Monarquia. Existiu um Exército Português e um Exército Luso-Brasileiro sob a mesma Coroa? Como se influenciaram mutuamente?
Palavras-Chave: Exército; Luso-Brasileiro; Uniformes; Portugal; Brasil
Abstract
The arrival of the Portuguese Court in Rio de Janeiro in 1808 paved the way that legitimized Brazil and its armed forces, when the territory was a gigantic colony, until the period in which it became the seat of the Portuguese Crown, a fact formally recognized on December 16, 1815, when it became a parity kingdom with Portugal. Unlike its neighbors, Brazil's independence was achieved without subjecting the country to the bloodbath and destruction of a civil war, although it was not peaceful either. In 1822, the eldest son of D. João VI was proclaimed Emperor D. Pedro I of the new and independent Empire of Brazil. The court's stay in Rio de Janeiro had an immediate effect on the garrison in Brazil, which was reorganized and enlarged during the years that followed. With the proclamation of the empire in 1822, Brazil's colonial era formally came to an end. In a way, Brazil's independence was announced in 1808, with the arrival of the court in Rio de Janeiro. Less than 20 years later Brazil became the most powerful of South America's independent countries and its only Monarchy. Was there a Portuguese Army and a Luso-Brazilian Army under the same Crown? How did they influence each other?
Keywords: Army; Luso-Brazilian; Uniforms; Portugal; Brazil
Introdução
A chegada da corte ao Rio de Janeiro em 1808 abriu a época histórica que legitimou o Brasil e as suas forças armadas, de finais do século XVIII, quando o território era uma gigantesca colónia, até ao período em que o Brasil se converteu na sede da Coroa portuguesa, um facto formalmente reconhecido no dia 16 de Dezembro de 1815, quando se tornou um reino paritário com Portugal. Ao contrário dos seus vizinhos, a independência do Brasil foi conseguida sem se sujeitar o país ao banho de sangue e à destruição de uma infindável cadeia de guerras civis e golpes de Estado, embora também não tivesse sido pacifica. Em 1822, o filho mais velho de D. João VI foi proclamado Imperador D. Pedro I do novo e independente Império do Brasil. A permanência da Corte Portuguesa no Rio de Janeiro havia tido um efeito impactante sobre as guarnições autóctones do Brasil, que foram reorganizadas e aumentadas durante os anos que se seguiram, no que seria a génese do Exército Brasileiro da Independência.
Em 1816, com a chegada de reforços adicionais oriundos de Portugal, incluindo os Voluntários Reais Real do Príncipe, destinados a reforçar a fronteira sul, o Exército Brasileiro havia-se emancipado de uma força colonial, mas não nativa, para uma estrutura autónoma embora ainda à imagem portuguesa, como parte do Reino Unido de Portugal e do Brasil. Com a proclamação do império, em 1822, a era do Brasil colonial chegara formalmente ao fim. De forma indireta, e a historiografia tende a apontar como previsível, a independência do Brasil fora despoletada em 1808, com a chegada da corte ao Rio de Janeiro, e 14 anos depois o Brasil tornou-se o mais poderoso dos novos países independentes da América do Sul.
1. O Exército Luso-Brasileiro
Com a denominada Primeira Invasão Francesa, Junot ocupou Portugal, chegando a Lisboa em 17 de Novembro de 1807, para neutralizar o país, capturando a Casa de Bragança e a frota de alto bordo da Marinha de Guerra Portuguesa. Nem um objetivo nem outro foram alcançados. Dada a lentidão da reorganização do Exército Português, iniciada em 1802/1806, foi considerado que a resistência armada seria inútil. No entanto, numa ação inédita, mas não necessariamente improvisada, o príncipe regente, D. João VI, decidiu transferir a Corte para o Brasil em vez de se submeter a Napoleão. Assim, Portugal, embora ocupado, combatia a França a partir do Brasil, sem nunca ter existido uma rendição formal. Alguns meses depois, Espanha e Portugal incendiaram-se numa revolta que levou as tropas britânicas à Península Ibérica, com o desembarque de Cradock e Dalrymple na Figueira da Foz e posteriores Batalhas da Roliça e do Vimeiro entre 17 e 21 de Agosto de 1808. O desfecho desta campanha levou ao escândalo da Convenção de Sintra em que os franceses saíram de Portugal de regresso a França, com armas e bagagens, incluindo o volumoso saque de bens preciosos portugueses e com a cortesia da Royal Navy inglesa. Portugal ficou devastado militarmente, mas livre como campo de operações estratégico para uma ofensiva inglesa na Península Ibérica. Com o Exército Português desarticulado por Junot, mas com a Regência no Rio de Janeiro e em Lisboa, esta deu carta branca a Londres para uma futura reorganização do Exército Português. Foi decisiva tanto a nomeação de Sir Arthur Wellesley e de William Carr Beresford, juntamente com a ação do Ministro da Guerra D. Miguel Pereira para a reconstrução de um novo Exército nacional. Tal foi feito com o indispensável apoio britânico e tornou-se, na opinião de muitos, incluindo os próprios franceses, numa força de combate de qualidade idêntica às tropas britânicas. Tal se veria no Buçaco, Linhas de Torres, Albuera, Salamanca, no Norte de Espanha e até França, em 1814. Parte deste novo Exército Português, eficiente, bem treinado e bem armado seria a base para a formação, com pedido régio ainda desse ano, para a formação de um corpo militar para ser enviado para o Brasil, face às inquietações no Sul, Banda Oriental e com as emergentes incursões dos Generais uruguaios Artigas e Frutuoso. Esse Corpo tomaria o nome de Divisão dos Voluntários Reais do Príncipe (DVRP), depois de D'El Rei. Na verdade, estava estruturada como uma legião inspirada nas anteriores Legiões de Tropas Ligeiras de 1798/1806 e na Leal Legião Lusitana, de 1808/1811, esta última que teve a colaboração Carlos Frederico Lecor, que viria a tomar o comando da DVRP. No comando desta Divisão, de cerca de 5000 homens, partiria para o Brasil em 1815 e só regressaria em 1823, desfalcada não por baixas em combate, mas porque parte ficou e tomou o partido da Independência do Brasil, incluindo o próprio Lecor, contrariamente a outro comandante, Avillez, que se manteve fiel a Portugal.
2. A formação inicial do Exército Luso-Brasileiro
O ainda pequeno Rio de Janeiro tornou-se a capital de Portugal e do seu império, de facto. A chegada do Príncipe Regente, depois D. João VI, e da família real, em 1808, acompanhados por cerca de 10000 a 15000 membros da elite portuguesa, um número ainda não claramente definido, transformou profundamente o Brasil. O que era até lá uma grande colónia, a maior do Império Português, tomava a estrutura de um Reino, numa inversão dos papéis do jogo do poder e da estratégia. Ficou sempre a questão: o Príncipe Regente enganou Napoleão? Factos: não se deixou apanhar em Lisboa e levou as naus de 82 e 74 peças que Bonaparte tanto quereria. E assim D. João levou Portugal para os trópicos.
De imediato uma das ações prioritárias foi atender às necessidades militares do futuro Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves. Potencialmente ameaçado pelo mar pelo que que restava da Marinha francesa e com prenúncios de forte agitação independentista nos Vireinados de Nova Granada e outras vastas e ricas regiões do domínio colonial de Madrid, era sobretudo na Banda Oriental em que se disputava o domínio da Cisplatina e que se decidiria o território do que viria a ser o Uruguai. Mas também se sentia o rumor da vaga autonomista no Brasil, mas a formação do Reino Unido de Portugal e do Brasil aplacou momentaneamente essa corrente. O Brasil já não era uma colónia, mas sim um reino, com a extensão de um império. Para isso era necessário desenvolver e modernizar as guarnições, agora luso-brasileiras.
Só como primeiro exemplo, em 1808, foi instalado no Rio de Janeiro um arsenal muito maior para fornecer armas e uniformes para as guarnições do Brasil. Este novo sistema já estaria totalmente implementado e a operar normalmente em 1810 como Arsenal Real do Rio de Janeiro e a Regência fizera vir de Lisboa quase metade os efetivos do Arsenal Real do Exército, quase 600 pessoas, incluindo artífices estrangeiros, maioritariamente os alemães que Silvestre Pinheiro Ferreira contratara na Turíngia em 1805.
A chegada da Corte ao Rio de Janeiro e a conquista da Guiana Francesa iniciaram uma época que legitimou o Brasil e as suas forças armadas, de finais do século XVIII para início do XIX. Um processo e um projeto vasto, quando o território era uma gigantesca colónia dotada de uma infraestrutura complexa de gestão regional como as capitanias, até ao período em que o Brasil se converteu na sede da Coroa portuguesa. Esta reorganização ainda tomou mais impacto quando o Brasil foi formalmente reconhecido no dia 16 de Dezembro de 1815, como um reino paritário a Portugal, formando-se o já referido Reino Unido. Ao contrário dos seus vizinhos instáveis dos vice-reinados da Coroa Espanhola que via as suas colónias nas Américas a separarem-se de forma violenta e a criarem Estados pulverizados também por guerras civis desde 1820, a independência do Brasil foi conseguida, com uma denominada Guerra da Independência, sim, mas que não obstou a que nascesse um novo Estado diretor na América Latina. Mas para o Brasil também o ano de 1820 fora determinante com os acontecimentos de Portugal, devido à sublevação e movimento de 24 de Agosto desse ano, no Porto. Este movimento que levaria ao poder de forma efémera os Liberais radicais portugueses que, por um lado impuseram uma Constituição que limitava fortemente o poder régio, mas por outro, em termos de relações com o império, acabaria por trazer o Brasil para o seu antigo estatuto de colónia por razões de ordem económica e política. Tal foi inaceitável para muitos Brasileiros, mas na verdade tanto de um lado como do outro do Atlântico, o que se configurava era um a divisão entre Liberais e Conservadores, e que em Portugal viriam a tomar o nome de Liberais de um lado, Miguelistas, Legitimistas ou Realistas do outro, culminando com o eclodir da Guerra Civil, depois da Belfastada de 1828. Separado de Portugal desde 1822, com a independência reconhecida por Portugal em 1825, já o Brasil era um Império militarmente capaz de controlar interna e externamente o seu território, mesmo com a perda definitiva do Uruguai em 1828.
Em 1822, depois de uma movimentação gerada pelos independentistas brasileiros, tendo à frente José Bonifácio de Andrada, e com D. João VI já de regresso a Portugal, D. Pedro de Bragança, o filho mais velho de D. João VI foi proclamado Imperador do Brasil. A permanência da corte no Rio de Janeiro, desde 1808 a 1821 havia tido um efeito imediato, como já referido, sobre a estrutura militar do Reino Unido de Portugal e do Brasil, que foi reorganizada e aumentada durante os anos que se seguiram, processo que não parou com a Independência, e que claramente a facilitou, permitindo um controle em relação a ameaças externas aos seus limites territoriais.
Em 1816, com a chegada de reforços adicionais oriundos de Portugal, incluindo os Voluntários Reais Real do Príncipe, destinados a reforçar a fronteira sul, o exército brasileiro havia-se transformado consideravelmente desde a chegada da família real, em 1808. Com a proclamação do império, em 1822, a era do Brasil colonial chegou formalmente ao fim. De certo modo, a independência do Brasil fora anunciada em 1808, com a chegada da corte ao Rio de Janeiro. Nessa altura, já os exércitos coloniais do Brasil (não colonial no sentido de tropas de sipaios e auxiliares, mas com unidades de 1ª linha) tinham acumulado quase três séculos de serviços distintos e tradições. Perante o inevitável, Portugal mesmo a custo, compreendeu que o Brasil atingira a maturidade e transferiu esta ímpar herança militar para o orgulhoso exército da nova nação. O Brasil tornou-se o mais poderoso dos novos países independentes da América do Sul. Existiu um Exército Português e um Exército Brasileiro sob a mesma Coroa?
Figura 1: 1810 – à esquerda gravura do Arquivo Histórico Militar e à direita gravura de Washt. Rodrigues.
3. Aparência e Realidade nas tropas Luso-Brasileiras
Mas nesta abordagem, que configura um desafio à abordagem de estudos uniformológicos, dentro de uma conceptualização da estética da imagem militar, nesta dualidade atlântica, pretende-se partir para futuras análises mais aprofundadas daquilo que foi o exército primeiro luso-brasileiro, posteriormente português e brasileiro, onde confluíram e divergiram, e a partir de quando. Nas sequências de imagens das figuras deste texto podem-se observar setas encarnadas que de 1810 a 1825, e mesmo até 1831, denotam a influência dos caracteres uniformológicos portugueses nas unidades das forças brasileiras antes da independência, e durante o 1º Reinado, com D. Pedro I do Brasil. Já no 2º Reinado, a partir de 1831, a influência lusitana esbate-se ou desaparece para dar lugar a modelos de origem marcadamente inglesa e francesa, ao que se adicionaram caracteres nacionais, ou regionais, conforme as características dos vastos territórios do Império do Brasil. Já em Portugal os planos de uniformes de 1806 a 1815, que vigoraram desde a Guerra Peninsular, com a adoção de uma influência marcadamente inglesa, mercê da reorganização levada a cabo por Wellington, Beresford e D. Miguel Pereira Forjaz, também se aplicaram no Brasil, sobretudo com a chegada da Corte ao Rio de Janeiro. No entanto nas questões que se nos levantaram, uma sobressai, que liga a aparência à realidade das forças militares de Portugal e do Brasil colonial. Portugal, durante a Guerra dos Sete Anos, e na sua Guerra Fantástica de 1762/1764, viu o seu quadro uniformológico regulamentado com a intervenção do Conde de Lippe, que reorganizando o Exército português como força de combate credível e que o conseguiu por algum tempo, também impôs uma disciplina visual às fileiras, nomeadamente com a vulgarização dos panos azuis ferrete e dos cortes dos uniformes, claramente de inspiração nos Estado alemães. Estes de onde o próprio Lippe era proveniente, no caso, do pequeno Schaumburg, que não tinha um exército superior a 1500 homens, mas em que o Conde viera a expensas da Coroa inglesa. Este fenómeno também se estendeu às unidades mobilizadas do Brasil, fazendo crédito às gravuras de Washt Rodrigues, comentadas por Gustavo Barroso, ainda uma referência com a sua História Militar do Brasil, de 1911.

Figura 2: Convergência de aparência dos uniformes em Portugal e no Brasil após o comando do Conde Lippe. À esquerda gravura do Arquivo Histórico Militar e à direita gravura de Washt Rodrigues.
Como dito, tal verificar-se-á com o Marquês de Pombal a implementar uma organização mais profissional do exército colonial do Brasil, sendo fulcral o papel do conde Wilhelm Schaumburg-Lippe, que trouxe consigo vários oficiais estrangeiros, entre eles João Henrique Böhm. Em 1767 Böhn foi enviado ao Brasil para reorganizar as tropas brasileiras, conforme o Conde de Lippe já havia feito como exército português, o que pressupunha uma uniformização e não uma distinção entre tropas nativas e tropas metropolitanas. Integravam a comitiva de Böhn três Regimentos de Infantaria vindos de Moura, Bragança e Extremoz, das guarnições do Alentejo, dos teatros de operações do Sul de Portugal em 1762/1764, certamente bem treinados na nova doutrina de Lippe e cerca de 70 oficiais. Claramente uma missão militar em larga escala para treinar e estruturar as forças das guarnições do Brasil. A sua missão era uniformizar e unificar o Exército Colonial do Brasil e subordiná-lo a um Comando Geral Superior. Até então o Brasil não possuía uma Doutrina Militar padronizada. Cada Corpo seguia as indicações, caprichos e conhecimentos de cada comandante, além das diferenças de cada Capitania. De entre os planos de Böhn estava a recuperação do Rio Grande do Sul e a fortificação das bases militares terrestres e navais do Rio de Janeiro e da Ilha de Santa Catarina.
No século XIX, já no contexto das Guerras Napoleónicas, as tropas coloniais luso-brasileiras combateram com sucesso na Guerra de 1801 (o que se perdeu em Olivença ganhou-se no Brasil) contra os colonos espanhóis, na Guerra de 1807-1814 contra os franceses e novamente contra os colonos espanhóis da Banda Oriental (atual Uruguai) na invasão de 1811 e na invasão de 1816. Aqui e as imagens mostram tal, a aparência das tropas brasileiras e portuguesas, assim como a organização, havia sido fortemente uniformizada, excetuando algumas doutrinas táticas que tinham que se adaptar à realidade do território brasileiro, o que se refletiu na profusão das unidades de Caçadores, que tanto no Exército Luso-Brasileiro como no Exército Imperial formavam a espinha dorsal da Infantaria, ao contrário do Exército Português que tendo Batalhões de Caçadores sempre foram em número inferior aos Regimentos de Infantaria de Linha. Onde se constatará a exceção será no período das Guerras Civis em Portugal, de 1823 a 1847 onde a maioria das unidades de Voluntários, fossem Liberais ou Realistas, formavam e instruíam como corpos de infantaria ligeira ou mesmo designados como Caçadores. Neste período e com a Corte Portuguesa no Rio de Janeiro até 1821 foram dados os passos que formalizavam o Exército do Reino Unido de Portugal e do Brasil, e onde o termo colonial deixava de ter razão de ser.

Figura 3: Os novos uniformes de 1806 em Portugal e a ainda obsolescente aparência das guarnições do Brasil no mesmo período. Rapidamente essa discrepância seria eliminada com a chegada da Corte ao Brasil. Gravura à esquerda do Arquivo Histórico Militar (AHM) e gravura da direita reprodução de aguarela do Coronel Ribeiro Arthur, também do AHM.
Em 1810, foi criada a Academia Real Militar, também no Rio de Janeiro. A formação, longa, tinha a duração de sete anos. Foram organizados os serviços de intendência, engenheiros, hospitais militares e os arsenais de guerra, sobretudo o já referido Arsenal Real do Rio de Janeiro. A estrutura militar autónoma do Brasil, mesmo com uma lenta, mas gradual ascensão de oficialato brasileiro a postos acima de capitão, consolidava-se rapidamente, face às ameaças externas como as Campanhas da Banda Oriental contra Artigas e Frutuoso em 1816. As tropas de primeira linha começaram a admitir formalmente oficiais Brasileiros nos comandos de Estados Maiores e de escalões regimentais. Estes passaram a integrar unidades de grande dimensão como os regimentos de cavalaria do Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, os corpos de artilharia de Santos, Santa Catarina e as capitanias do Norte ou os batalhões de Caçadores do Rio Grande do Sul e outros territórios onde se requeria a presença de tropas ligeiras. Para além destes efetivos ainda estavam chegados de Portugal efetivos como a Divisão dos Voluntários do Príncipe, que como já referido ascendia a quase 5000 homens, e que tinha centenas de voluntários de quase todos as unidade de Infantaria, Cavalaria Artilharia e Caçadores da Metrópole.

Figura 4: Em 1815, e com o Reino Unido, a semelhança entre tropas portuguesas e brasileiras é nula. Estava estabelecido o efémero Exército Luso-Brasileiro e a regra da aparência das tropas do Brasil até 1831 e fim do 1º Reinado. À esquerda gravura do AHM e à direita gravura de Washt Rodrigues.
4. A Divisão dos Voluntários Reais do Príncipe
Com a elevação do Brasil à categoria de reino, e finda a Guerra Peninsular na Europa, a Regência em Lisboa, talvez já ciente do que se avizinhava, sobretudo com os movimentos de independência da América Espanhola, enviou tropas regulares de Portugal para o Brasil, não só para prevenir o inevitável de anos depois, a independência, mas para reforço do ainda pequeno contingente regular do Brasil.

Figura 5: Gazeta de Lisboa de 5 de Julho de 1815, relativa à Ordem do dia de 30 de Maio, para a formação (inicial da Divisão dos Voluntários Reais do Príncipe): Hemeroteca Digital de Lisboa.
A primeira unidade a chegar ao Rio de Janeiro, A Divisão dos Voluntários Reais do Príncipe, depois de El-Rei, com cerca de 5000 homens, sob o comando de Carlos Frederico Lecor era composta por tropas experientes, com infantaria ligeira, cavalaria e artilharia, na verdade uma Legião, muito semelhante à Leal Legião Lusitana de 1809. De notar que no Arquivo Histórico Militar, através da busca online na plataforma Archeevo, com palavra chave direta, surgem 167 documentos relativos a todo o percurso formativo, de inúmeros voluntários das unidades regulares do Exército Português, cargas de armamento e munições, uniformes e outros encargos logísticos.
1ª Organização da Divisão dos Voluntários Reais do Príncipe, 30 de Maio de 1815
Comandante em Chefe: Tenente General Carlos Frederico Lecor 1.ªBrigada de Voluntários Reais do Príncipe
2 Batalhões de Caçadores a 8 Companhias
3 Esquadrões de Cavalaria
1 Companhia de Artilharia
2.ª Brigada de Voluntários Reais do Príncipe
2 Batalhões de Caçadores a 8 Companhias
3 Esquadrões de Cavalaria
1 Companhia de Artilharia
Estrutura de Comando principal
Estado Maior da Divisão
1 Tenente General, Comandante em Chefe
1 Ajudante general & Secretário Militar (Oficial general)
1 Quartel Mestre General (Brigadeiro)
2 Oficiais de Engenheiros
2 Auditores Encarregados (Intendências dos Víveres + Bagagens)
Estado Maior das 2 Brigadas, 10 efetivos (5 em cada Brigada)
Estado Completo dos 4 Batalhões de Infantaria, 3632 homens (Caçadores/Infantaria Ligeira)
Estado Completo da Cavalaria, 894 homens (remonta - 800 cavalos)
Estado Completo da Artilharia, 252 (6 peças de 6 libras e 2 obuses de 6 polegadas)
TOTAL: 4830 homens, 800 cavalos e 8 bocas de fogo
Figura 6: Uniformes das Brigadas de Infantaria/Caçadores da Divisão do Voluntários Reais do Princípe (1815-1816). Imagem composta com gravura de Washt Rodrigues e infogravura de
5. Independência e Rutura
Apesar do agravar da tensão entre Portugueses e Brasileiros, sobretudo com o regresso de D. João VI a Portugal e a permanência do Príncipe D. Pedro no Brasil, a revolução liberal de 24 de Agosto de 1820, em Portugal, acabaria por precipitar o processo da independência do Brasil em 1822, pois de forma alguma este Reino queria regressar ao estatuto de simples colónia, com todas as implicações politicas que não cabem neste texto.
Esta época foi de importância extrema para a organização e consolidação do sistema militar brasileiro, que na verdade havia sido iniciado por Portugal. Começou a haver maior autonomia em relação a Portugal culminando com a criação do Ministério da Guerra e a centralização de todas as forças militares terrestres e a marinha. Mercenários estrangeiros, como o Lorde Cochrane, foram contratados para combater a Revolução Pernambucana e acabaram compondo o primeiro oficialato fixo do futuro Exército Imperial. Voltando às aparências e realidades, o divórcio entre Portugueses e Brasileiros foi consumado com o reconhecimento do Império Brasileiro por Portugal em 1825. Este divórcio mostra até que ponto é que até à abdicação de D. Pedro I no Brasil, em 1831, este manteve laços com Portugal, e o Exército Imperial não era exceção. As tropas Brasileiras de primeira linha haviam mantido o desenho português dos seus uniformes e equipamentos, e o azul e branco dos Braganças de Portugal das rosetas das barretinas, foi substituída pelo verde amarelos dos Braganças do Brasil. Também outros elementos uniformológicos marcavam subtis diferenças com as aparências do exército da antiga potência colonial, que era a presença do verde e amarelo nos punhos e golas das casacas e outras peças de vestuário das tropas. O verde nunca fora uma cor distintiva de unidades no Exército Português.
Portugal, já dilacerado por uma Guerra Peninsular que o arruinara economicamente, passaria os próximos 20 anos imerso em guerras civis e instabilidade política. D. Pedro, de Bragança, desde 1831 sem Coroa de Imperador e sem Coroa de Rei, entraria em Portugal, em 8 de Julho de 1832, em guerra aberta com o seu irmão D. Miguel, e com a intenção de colocar no trono a sua Dona Maria II, nascida no Rio de Janeiro em 1819.

Figura 7: À esquerda, Praça de Infantaria Portuguesa com Grande Uniforme usado de 1815 a 1833 (Grav. AHM), à direita Praça e Oficial de Infantaria Brasileira em Grande Uniforme e Pífaro em Pequeno Uniforme, usados de 1822 a 1831 (Grav. Washt Rodrigues). O figurino é o mesmo, mas no caso brasileiro as cores das rosetas e penachos das barretinas ostentam o verde e amarelo do novo Império sul americano.
A Guerra Civil Portuguesa de 1828-1834 vai ter a sua própria diversidade uniformológica, nos dois lados da contenda, tanto no Exército Liberal como no Exército de D. Miguel. Para além dos uniformes regulamentares ainda em vigor desde 1815 e iguais em ambos os exércitos, apenas se distinguindo pelas rosetas azuis e bancas constitucionais e as azuis e encarnadas absolutistas, a profusão de unidades de voluntários estrangeiros, muitos deles com os seus uniformes de origem como ingleses, franceses ou belgas ou as inúmeras unidades de Voluntários Realistas de D. Miguel ultrapassavam os limites dos regulamentos e alargavam o espectro da aparência como elementos diferenciadores, não esquecendo a importância das bandeiras de estandartes de batalha. Mas nas guerras civis por vezes é difícil distinguir os lados.

Figura 8: A imagem da Guerra Civil Portuguesa à esquerda com os Batalhões de Voluntários mobilizados durante o Cerco do Porto de 1832-1833 (Grav. Da História do Cerco do Porto, de Simão José da Luz Soriano, Edição de 1890) e à direita as ruturas estilísticas com o figurino português, com claras influências inglesas e francesas e a presença de um voluntário em traje civil (Grav. Washt Rodrigues).
A partir de 1831, com o 2º Reinado, a Regência e D. Pedro II o Exército Imperial brasileiro separa-se, de facto, da carga visual portuguesa que mantivera durante o 1º Reinado. Mercê das alianças estratégicas com a Inglaterra e outros países da Europa que viam os portos do Brasil como um mercado em crescimento no Atlântico Sul, com relativa estabilidade política, pesem as revoltas dos Farrapos em 1836/1837 e com a particularidade de ser a única Monarquia da América Latina (com a exceção do efémero Império Mexicano e do fim de Maximiliano em 1867, fuzilado às ordens de Juárez em Quétaro), tal viria a ser determinante para que o Exército Brasileiro seguisse o caminho de outros países, incluindo Portugal. Esse caminho era o da influência das grandes potências dominantes em termos estratégicos e militares.
Considerações finais
Depois da abdicação de D. Pedro I e o corte com o último Bragança português à frente dos destinos do Brasil Imperial, o seu Exército irá, no início do 2º Reinado, vestir as suas tropas de linha, compostas maioritariamente por Batalhões de Caçadores a Pé, e também montados, num misto entre o figurino inglês e francês. Ao contrário dos Caçadores Portugueses, cujos uniformes castanhos eram a sua imagem de marca desde 1809 e até 1892, os Brasileiros optaram pelo verde, cor usada pela Rifle Brigade inglesa. O próprio desenho das barretinas brasileiras, em topo de sino, segue o modelo britânico, facto atestado na História Militar do Brasil, de Gustavo Barroso.
Assim, em ambos lados do Atlântico, sem aparente interferência mútua, as influências ditadas pelos estilos estrangeiros seguem em paralelo e adoção de estilos em figurinos militares de potências dominantes devem-se a vários fatores, sobretudo a influência política, económica e estratégica sobre os Estados.
Em 1848, enquanto o Brasil ainda permanece com alguma influência inglesa, surgindo lentamente o ideário francês, o novo Plano de Uniformes do Exército Português rompe com o dispendioso e vistoso figurino de 1834 e muda radicalmente para o estilo francês, sobretudo pela mudança para as barretinas troncónicas, praticamente copiadas do modelo de Infanterie de 1845. Razões de economia são o argumento que é evocado no preâmbulo do Plano de Uniformes de 5 de Outubro de 1848, pois o material de guerra continua a ser de modelo inglês, seja importado ou fabricado no Arsenal Real do Exército.

Figura 9: A aparência e realidade das influências das grandes potências nos uniformes. À esquerda, Praça de Infantaria português com o Grande Uniforme do Plano de 1848 (Grav. De Ribeiro Arthur) e onde se pode observar a nova barretina, praticamente idêntica ao modelo francês de 1845. À direita a espinha dorsal do Exército Imperial Brasileiro, já de D. Pedro II, os seus Batalhões de Caçadores a Pé, em uniformes verde, de claro recorte inglês, espelhando a Rifle Brigade britânica (Grav. De Washt Rodrigues).
Já o Exército Imperial Brasileiro, inicialmente com um pequeno efetivo de tropas regulares, que não excedia os 18000 homens, assentava a sua capacidade militar numa criação ainda de D. Pedro I, a Guarda Nacional, que substituía as antigas estruturas de 2ª linha do período colonial e do reino unido, que eram as milícias e ordenanças. Portugal também irá ter os seus Batalhões Nacionais e Guardas Nacionais até 1851 e o início da Regeneração. O Brasil mobilizava também outros corpos como os Voluntários da Pátria, cuja aparência ia desde o seguir dos figurinos regulamentares do exército de linha até vestuário civil onde aplicavam distintivos que identificavam os efetivos com estes corpos. O 2º Reinado Imperial do Brasil e o Exército da Regeneração em Portugal seguiram os seus próprios caminhos, mas recorreram a influências estrangeiras comuns até ao final do século XIX, inglesa, francesa e finalmente prussiana.
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RODRIGUES, J. Washt e BARROSO, Gustavo – Uniformes do Exército Brasileiro 1730-1922. Paris: Editions A. Ferroud - A. Ferroud Succs, 1922.
TELO, António José – Economia e Império no Portugal Contemporâneo. Lisboa: Edições Cosmos, 1994.
Fontes Primárias
PT/AHM/DIV/2/01
PT AHM-DIV-2-01-09-43_m0001
PT AHM-DIV-2-01-09-43_m0003
PT AHM-DIV-2-01-09-43_m0004
PT AHM-DIV-2-01-09-43_m0005
Webgrafia
https://dvr18151823.blogspot.com/p/os-voluntarios.html (em linha - 21/11/22)
https://lecor.blogspot.com/ (em linha - 21/11/22)
https://aorealservico.blogspot.com/ (em linha - 21/11/22)
https://cliomarte.blogspot.com/ (em linha - 21/11/22
SÉRGIO VELUDO COELHO
Professor Adjunto da Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto, Doutor em História (UPortucalense), Mestre em História Moderna (FLUP), Pós-Graduado em História Militar (ULusíada), Licenciado em Ciências Históricas/ Ramo Património (UPortucalense). Auditor de Defesa Nacional e membro da Comissão Cientifica da Comissão Portuguesa de História Militar.
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