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Operações militares ao tempo de D. Sancho II: a luta pelo Alentejo (1226-1241)
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OPERAÇÕES MILITARES AO TEMPO DE D. SANCHO II. A LUTA PELO ALENTEJO (1226-1241)

 

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José Varandas

 

 

 

 

Resumo

D. Sancho II de Portugal (1223-1248) é, no nosso entender, um dos mais importantes reis do processo de conquista militar português durante a primeira dinastia. Este monarca mantém a tradição de «assalto ao Sul», sobre as terras do Além-Tejo, numa dimensão que acabará por redimensionar o reino, uma nova expressão espacial que implica processos de adaptação, que criam, e depois mantêm, correntes hierárquicas e linhas de comunicação, por onde circula a vontade do rei. Mas existe ainda uma dúvida, sobre quem teve a iniciativa e o comando dessas ações militares. Fontes historiográficas, documentais ou narrativas, dão pouca informação e são contraditórias. Para umas, o envolvimento e liderança do rei é uma certeza, para outras, todas as campanhas militares se devem apenas à estratégia do Mestre de Santiago, D. Paio Peres Correia.

Também as mais recentes obras sobre história militar medieval portuguesa costumam, nos seus planos de trabalho, terminar a ofensiva portuguesa com a conquista definitiva de Alcácer do Sal, em 1217, e apenas voltar a falar de guerra contra o Islão a partir de 1249. Tem ficado por estudar, e analisar, um vasto período de tempo. Praticamente, todo o reinado de D. Sancho II.

Palavras-chave: D. Sancho II; Guerra; Islão; Reconquista; Ordens Militares

 

Abstract

D. Sancho II of Portugal (1223-1248) is, from our point of view, one of the most important kings of the Portuguese military conquest process during the first dynasty. The monarch maintains the tradition of the southern assault, on the lands of Além-Tejo and in a dimension that will eventually resize the kingdom. A new spatial expression implies adaptation processes, which in turn create and maintain hierarchical currents and lines of communication, through which the king's will circulates. But there is still a doubt about who had the initiative and command of these military actions. Documents or narrative sources provide little information and are contradictory. For some, the involvement and leadership of the king is a certainty, for others, all military campaigns are due only to the strategy of the Master of Santiago, D. Paio Peres Correia.

The most recent works on Portuguese medieval military history also tend in their work plans to end the Portuguese offensive with the definitive conquest of Alcácer do Sal, in 1217, and only to speak of the war against Islam from 1249 onwards. It is never studied, from a military perspective, a vast period of time that practically encapsulates the full reign of D. Sancho II.

Keywords;D. Sancho II; War; Islam; «Reconquista»; military orders

 


Introdução

«Bem sei que há-de parecer a muitos cousa nova ocupar a el-rei D. Sancho em guerras, vestir-lhe armas e não hábitos religiosos e, o que mais é, pôr-lhe o elmo na cabeça em lugar do capelo: mas a tudo se dará satisfação com fundamento, com que restituiremos a este rei o que mereceu justamente. Algumas vezes reparei no modo de escrever dos nossos no tocante a el-rei D. Sancho e não acabo de me maravilhar das cousas que publicaram e muito mais das que encobriram ou ignoraram; porque, havendo dele e de seu tempo empresas de muito crédito, vitórias insignes e conquistas de muitas terras, com cuja relação se ficava ilustrando a História e acreditando o reino, passam estas cousas em silêncio, e só falam das faltas de el-rei e da inabilidade de seu governo, com tão pouco recato que se arrojam a dizer o que não foi e exagerar o que sucedeu em parte.»[1].

Assim fala António Brandão da crítica às capacidades militares de Sancho II. Apesar de ter herdado o trono ainda menor, o seu reinado ficará marcado por uma imparável expansão sobre as terras do Sul. Aproveitando fatores conjunturais favoráveis, como a desagregação da estrutura almóada, confrontada com o aparecimento das terceiras Taifas no que restava do Andaluz, ou a pressão castelhana e leonesa nas marcas de Cáceres e de Badajoz, o exército português põe-se em marcha sobre a sua linha natural de expansão, e apesar de algumas vicissitudes, não mais parou até chegar ao Algarve. Esse era um dos objetivos, a aquisição do «segundo reino», a partir da conquista e consolidação das terras alentejanas, procurando assim limitar, de forma definitiva, as capacidades de iniciativa das unidades militares islâmicas que ainda se encontram ativas por todo o Alentejo, depois das importantes vitórias de Navas de Tolosa e de Alcácer do Sal. E, por isso o rei faz a guerra. Sancho II mantém a tradição de «assalto» ao Sul, dos seus antecessores. A dinâmica iniciada com a queda das fortalezas de Leiria, Santarém, Lisboa, Palmela, Évora e Alcácer, não se quebra com este rei. A conjuntura envolve-o e a marcha das tropas conhece novas terras e velhas muralhas. E, o acesso a estes espaços redimensiona o país. E essa nova dimensão espacial implica processos de adaptação, que possibilitem criar, e depois manter, correntes hierárquicas e linhas de comunicação, por onde circula, também, a vontade do rei, embora seja difícil vislumbrar naquelas lides a sua presença[2].

Embora a dúvida subsista sobre a quem se deve a iniciativa e o comando dessas ações nas terras do Sul, fontes historiográficas, documentais ou narrativas, dão pouca informação e, muitas vezes, são contraditórias. Para uns, o envolvimento e liderança do rei é uma certeza, para outros, todas as campanhas se devem apenas à estratégia do Mestre de Santiago, D. Paio Peres Correia, referenciado como único comandante pela Crónica da Conquista do Algarve. O estado atual dos conhecimentos mantém as mesmas dificuldades, ou seja, a ausência de provas documentais que situem o rei diretamente em cada uma das conquistas, com exceção de Aiamonte[3]. Mas, com ou sem a presença do rei, a existência de forças militares, com comandantes nacionais, nos campos do Alentejo, parece-nos indesmentível.

 

O processo militar

O ano de 1217 marca o retomar do movimento expansionista português. D. Afonso II, por intermédio do bispo de Lisboa, auxiliado pelos cruzados, ordens militares e cavaleiros peninsulares conquista a formidável fortaleza de Alcácer do Sal[4]. A captura de tal praça militar irá abrir por completo o ferrolho que impedia o acesso ao Sul, permitindo a futura conquista das terras alentejanas e abertura do caminho para o Algarve. Rei mais virado para a administração e organização do reino, monarca sedentário, provavelmente limitado pela doença que o havia de vitimar, Afonso II, contudo, não deixa de aproveitar o refluxo e a desorganização das forças muçulmanas derrotadas na batalha de Navas de Tolosa, ocorrida uns antes, em 1212, e mesmo não lhe reconhecendo a história grandes façanhas militares, o certo é que a coroa portuguesa não se fez rogada e fez avançar a sua máquina militar.

A tomada de Alcácer abria novas áreas para a fixação de excedentes demográficos e para a produção de alimentos, vitais para suprir as necessidades de uma população em progressivo crescimento. Maus anos agrícolas, fomes, pestes ajudaram a criar nos primeiros anos da centúria de Duzentos um clima de intranquilidade e de agitação no que a ação política do rei, fortemente centralizadora, não ajudava a apaziguar. A pressão da coroa sobre as famílias nobres e a incapacidade de o país absorver muitos dos juvenes, em atividades específicas, fez com que muitos optassem pela saída para o estrangeiro. Os excedentes do sexo feminino tinham outra opção: a entrada para uma ordem monástica, situação cada vez mais entendida como a melhor saída possível.

O retrato da Península Ibérica durante a primeira dinastia portuguesa é bem vincado pela ameaça constante do poder militar muçulmano, o que obrigou a um estado de guerra permanente, onde o rei se torna no chefe militar incontestado, coordenador máximo da guerra contra um inimigo comum, ao mesmo tempo que líder político cada vez mais enraizado e determinante na ação política dentro do seu território. Senhor, por direito próprio, do esforço da Reconquista, dinâmica fortalecedora do poder da Coroa, o rei português, contudo, viveu ao longo de todo o século XIII momentos difíceis, motivados por contestações, mais ou menos explicitas, dos grupos nobiliárquicos e de outros sectores da sociedade portuguesa, que desde o governo de D. Afonso I, se perfilam contra a monarquia. Quando no ano de 1223, D. Sancho II, sobe ao trono, esta contestação estava, mais do que nunca, ativa. Do conjunto de fontes e informações, ideologicamente bem corporizadas, que chegaram, percebe-se a existência de uma forte crise política, institucional e social ao longo de todo o seu reinado, resultado de opções mais centralizadoras desenvolvidas por seu pai, D. Afonso II e que a incapacidade funcional de D. Sancho II parece acentuar.

Tratava-se de guerra pela conquista. Mas, também, guerra por obrigação vassálica, a que o texto da bula Manifestis probatum vincula os monarcas portugueses e cujas demais bulas que lhe sucedem não deixam de subentender. Este é um dos problemas nucleares do reinado de D. Sancho II, o ser acusado de não pretender fazer a guerra aos Sarracenos. Contudo, o monarca parece estar presente no arranque de quase todas as operações e a sua própria casa participa com grande atividade nos combates. O seu irmão mais novo, D. Fernando de Serpa, infante muito irrequieto, detestado em várias dioceses do reino, recebe não menos de dez bulas papais, exortando-o à guerra contra os mouros e promovendo-lhe condições para que a possa fazer. Um outro aspeto interessante sobre a dinâmica de guerra de D. Sancho II relaciona-se com um episódio muito curioso passado com o Mestre dos Espatários. Depois de morto Sancho, em Toledo, em 1248, D. Paio Peres Correia solicita à Santa Sé a confirmação e a ratificação de todas as importantes doações de castelos, vilas e territórios que D. Sancho II tinha concedido à ordem de Santiago, o que parece indicar que a conquista de praças como Alvito, Sesimbra, Mértola, Cacela e Tavira tenha sido efetuada pelos cavaleiros espatários, eventualmente sem a participação do rei[5].

As duas bulas de Gregório IX, datadas, respetivamente, de 1232 e de 1234 (Fide qua tutilas e Ex parte carisssimi), conferem ao rei proteção enquanto militar, concedendo indulgências de cruzada a todos os que acompanhassem o rei na guerra. Não indicam expressamente a presença de D. Sancho II na tomada de uma determinada fortaleza, mas, também, não a negam. E a tradição na Península Ibérica é a de que nas grandes operações militares o rei desloca-se com o exército. Observados com alguma atenção, os dois documentos pontifícios deixam subentender que o rei participa da dinâmica dos preparativos, sobretudo no segundo, onde parece que o monarca e as suas forças, em conjunto com os Espatários, estão a preparar ou uma ofensiva em larga escala, ou uma operação muito especial e delicada. Certo é que o rei surge referido nesses preparativos. Em 1241, a bula Cum carissimo in Christo incita os cristãos de Portugal a ajudarem D. Sancho II na guerra contra os Sarracenos, concedendo-lhes as mesmas indulgências dos cruzados que vão à Terra Santa[6].

A vitória almóada em Alarcos, a 18 de julho de 1195, tinha criado grande comoção na Cristandade e garantido aos guerreiros almóadas um triunfo como há muito tempo o Islão não conhecia nas terras do al-Andaluz. Centros urbanos, linhas de comunicação, espaços reordenadores e redistribuidores, que as monarquias cristãs tinham consolidado ficaram mais frágeis, na sua defesa, face a estes cavaleiros islâmicos, que durante algum tempo têm a iniciativa das armas. Entre muitas consequências trazidas por este fatídico acontecimento está a desarticulação do conceito superior que privilegiava a existência na Ibéria cristã de um império dominador, cujo epicentro estava, no século XII, em Leão. Este conceito é substituído por uma outra realidade, a dos cinco reinos. Acontece que os equilíbrios de poder e de influência se alteram e a potência leonesa decresce, ao mesmo tempo que reinos como Castela (que detém a antiga capital do império visigótico, Toledo), Portugal, Aragão e Navarra conseguem entender-se contra o seu antigo dominador e limitar-lhe a iniciativa.

Em 16 de julho de 1212, tropas castelhanas vingam Alarcos, ao derrotarem o califa Muhammad al-Nasir, chefe dos exércitos almóadas, que se encontravam em campanha na Meseta Central. Concentrados num local designado Las Navas de Tolosa os guerreiros de Castela desbarataram as forças sarracenas e colocaram-nas em fuga. Está aberto o ferrolho que condicionava o acesso de forças cristãs às ricas planícies da Andaluzia. Para o dispositivo almóada, que inicia aqui o seu processo de declínio há algum tempo, apenas resta a fuga continuada para o Sul e para o Leste. Esta batalha não faz apenas refluir o que resta dos cavaleiros almóadas, liberta, também, a pressão que se fazia sentir sobre os reinos cristãos periféricos, como Portugal.

Não é só a Andaluzia que fica desprotegida, os caminhos para as praças alentejanas e para os contrafortes algarvios ficam mais acessíveis, permitindo a concentração e a deslocação de cavaleiros portugueses sobre essas regiões que, dentro de pouco tempo, estarão na posse do rei de Portugal, já que em 1217 o ferrolho almóada do Gharb al-Andaluz também se quebra, com a tomada da importante praça militar de Alcácer do Sal pelas forças de D. Afonso II. O que resta do dispositivo islâmico, refugia-se cada vez mais nas proximidades do Mediterrâneo ou da costa atlântica do Algarve, e pouco a pouco resta apenas desses poderosos exércitos o reino nasrida de Granada.

Estão criadas condições para que colunas cristãs, saídas das fronteiras aragonesas, leonesas, castelhanas e portuguesas intensifiquem a pressão sobre as fortalezas intermédias do sul islâmico. Cáceres, Badajoz e Elvas, inscrevem-se neste plano alargado de ofensiva estratégica gizado sem dúvida pelos estrategos das ordens militares e com a conivência dos respetivos reis. Sabemos que em 1226, concertada com o rei leonês a primeira expedição é preparada. Pela primavera marchou D. Sancho sobre Elvas, com a hoste real, comandada pelo alferes-mor Martim Anes e pelo arcebispo de Braga. Assolados os campos em volta, enquanto os leoneses atacavam Badajoz, os capitães de D. Sancho punham cerco a Elvas onde a tradição refere o jovem rei português a acometer pessoalmente as muralhas, ficando mesmo em perigo de vida, acabando por ser retirado a salvo da refrega pelo cavaleiro Afonso Mendes Sarracines. A importante localidade caiu por fim em poder dos portugueses, mas a aproximação do outono e o facto de os leoneses terem abandonado a empresa de Badajoz, deixando o flanco oriental do exército de D. Sancho completamente exposto, pelo que o monarca luso teve de abandonar também Elvas, depois de a desmantelar.

 

O combate pelo Além-Tejo

As campanhas estivais de 1226 não se dirigiram só à fortificação de Elvas. Desta altura é a concessão do foral de Marvão aos novos moradores que ali se vão fixar, definitivamente, garantindo a defesa daquele espaço que defendia uma região estrategicamente importante, sobretudo porque impedia a organização de «raides» inimigos vindos das praças muçulmanas da Extremadura espanhola. O castelo sarraceno de Ielbax foi várias vezes perdido e tomado pelos portugueses antes da sua ocupação definitiva em 1230. Nesse ano, organiza-se de novo o concelho pelo estatuto expedido no ano anterior, e desde então a documentação mostra-nos persistente o povoamento de Elvas (Elvix, 1234; Elvis, 1241; Elvas, 1271) bem como a transmissão de imóveis no seu termo. Em 1241 as ordens de Calatrava e Santiago estavam aí representadas por seus comendadores e já a vila se estendia extramuros, pela freguesia de Stª Maria de Fora. Também Marvão fora um baluarte de grande importância para os Sarracenos e terá dificultado, durante muito tempo, o estabelecimento de colonos cristãos na região (Beira Baixa e Alto Alentejo). Aparece nomeado pela primeira vez em 1214, nas confrontações de Castelo Branco, ao sul do Tejo. Do foral, e dos extensíssimos limites (desde o Tejo até à foz da Ribeira de Ouguela) que D. Sancho II concedeu em 1226 aos seus povoadores, infere-se que se abrigava aí uma guarnição aguerrida. Numa sentença de 1226, D. Sancho II manda demarcar a vila de Marvão além de declarar os seus termos[7]. No entanto, em 1224, o rei tinha doado ao cabido de Évora as dízimas dos quintos régios e das portagens e do pão, bem como dos gados e de todas as casas que o rei possuía em Évora, Montemor e Marvão.

Vencido, em 1230, o forte núcleo de resistência sarracena Elvas-Badajoz, logo Marvão, por perda de influência militar, sofre considerável desfalque na sua área territorial, em benefício de outros baluartes e populações que acorreram a repovoar a região. A parte setentrional é cedida aos Templários em 1232 para a fundação do Crato. A vila de Arronches, com seu castelo é doada a Santa Cruz de Coimbra em 1236[8] e recebe o foral de Elvas no ano de 1255. Em 1230 numa carta do bispo da Guarda ao seu «colega» de Évora, este reconhecia que as povoações de Elvas, Arronches, Monforte, Açumar, Alter do Chão, Crato, Ares e Ameira eram do bispado de Évora[9]. Portalegre, talvez herdade reguenga do alfoz de Marvão, aparece nomeada pela primeira vez em 1249, mas já como povoação importante, e o concelho de Portu Alecri com judex e selo próprio, em 1253.

Era esta uma campanha necessária. Apesar de com a conquista de Alcácer do Sal em 1217, se garantir maior segurança sobre o litoral da Estremadura portuguesa, em particular sobre a entrada das barras do Sado e Tejo, e de no dispositivo de defesa português já se encontrarem as praças militares da zona de Palmela-Sesimbra e as fortalezas de Évora, Montemor e Arronches, a verdade é que quase todas eram fortalezas permeáveis às incursões muçulmanas mais para Norte, e por isso, de facto, a fronteira estabilizada do país situava-se na linha do Tejo, onde Templários e Hospitalários assentavam estruturas defensivas que impediam a progressão daquelas forças inimigas pelos flancos das nossas vilas. Como Idanha-a-Velha, em 1229, localizada num dos extremos desse flanco estava desabitada e sem estruturas defensivas. Mas, a planície alentejana não estava dominada, apesar da presença regular de forças cristãs saídas das fortificações acima citadas. Era necessário «adquiri-la» ocupando as fortalezas islâmicas remanescentes e garantindo o controlo de todas as vias de comunicação, inclusive o controlo da linha de costa.

Na tradição está sempre presente quando se fala das guerras no Alentejo que o rei de Portugal, D. Sancho II, não mostrava muita vontade de as fazer, apesar das reclamações em contrário de Fr. António Brandão e de mais alguns. E, por isso, passou a ser representado como um rei fraco, cujos nobres «desprezavam», os quais por não terem ocupação ofereciam os seus serviços às coroas castelhana, leonesa e aragonesa. Embora não se discuta para já a capacidade ou incapacidade de D. Sancho para conduzir ações militares, ou tão pouco a sua vontade, certo é que quando subiu ao trono existia uma trégua firmada entre D. Afonso II e os sarracenos. Esta paz assinada datava de 1219, e é um dado com que o novo rei tem de contar. Reforça-se este acordo com outro, firmado com a coroa leonesa em 1223, pelo qual D. Afonso II assinava com o seu homólogo de Leão um tratado que levaria Portugal para a guerra contra os mouros ao seu lado. Também este acordo é herdado por D. Sancho II[10].

Sabendo das suas fragilidades na marca alentejana, aproveitando o estímulo que as movimentações leonesas e castelhanas, no flanco oriental português, estavam a desenvolver e dando resposta às solicitações de Honório III, que tinha enviado à península um legado especial e depositado no arcebispo de Braga a responsabilidade de impulsionar o rei para a guerra, o dispositivo português entra, finalmente, em ação. E, de facto, a condução da guerra no Sul assenta melhor aos comandantes indigitados por reis anteriores e confirmados por D. Sancho II, ou seja, os mestres provinciais das Ordens Militares com presença na Península Ibérica. Não passam despercebidas as ações da Ordem de Santiago e do seu prior, D. Paio Peres Correia, na conquista do Baixo Alentejo; ou de D. Afonso Peres Farinha, que à frente dos freires hospitalários arremete sobre Moura, Serpa e outras terras de «Além-Odiana». Nas bulas papais enviadas ao rei e cavaleiros portugueses entrevê-se a participação de outras forças, como privados ou membros da casa real, como o infante mais novo, D. Fernando de Serpa[11], e a intervenção de muitas milícias municipais, especialmente aquelas mais próximas da fronteira com o Islão[12].

Sobre a primeira expedição a Elvas predomina a tese do «desastre». Na historiografia dos séculos XIX e XX a tónica é de que o rei não tinha condições para preparar e dirigir uma expedição deste calibre e que o abandono da praça resultou numa pesada «humilhação» para o soberano que viu os seus nobres «abandoná-lo» e que foi forçado a retirar[13]. Interessante é ver como a cronística tratou, de facto, este acontecimento. Nas suas próprias descrições ficamos com a impressão de que esta campanha já começou tarde, e só foi lançada por causa da insistência leonesa.

A concentração de tropas e a sua deslocação não são coisas que se processem com rapidez no contexto medieval, por isso o arranque para Elvas levou algum tempo, o que naturalmente diminuiu o tempo para cercar e tomar aquela praça. A resistência muçulmana, relativamente forte, e o facto de as forças leonesas começarem a retirar do cerco de Badajoz levaram o rei português a ter de interromper o assédio. Era muito arriscado permanecer mais tempo sem ter o flanco protegido, sobretudo aquele por onde poderiam chegar reforços inimigos. Qualquer comandante experimentado não teria ficado naquelas paragens por muito mais tempo. A tese de que o rei teria fugido, humilhado, parece-nos um exagero das crónicas e o facto de a nobreza o ter deixado e dado início a uma insurreição, que culminou com a derrota destes e com a saída do infante D. Afonso (o futuro D. Afonso III) para o estrangeiro, também nos parece que não deve ser diretamente deduzida do «fracasso» de Elvas.

Um dos objetivos fundamentais era o de impedir o acesso de forças muçulmanas dos castelos aquém do Guadiana às praças que o Islão detinha na atual Estremadura espanhola, ou seja, Portugal desempenha nesta conceção tática um papel nuclear: cabe-lhe fixar e destruir todos os possíveis reforços que os muçulmanos pudessem ainda reunir nestas praças colocadas na esfera portuguesa, e com isso defender o flanco leonês. A primeira tentativa de conquista de Elvas, em 1226, que parece ser um «fracasso» total, de facto não o foi totalmente. O desmantelamento da infraestrutura militar daquela praça impediu que no refluxo invernal dos guerreiros portugueses e das outras «nações» cristãs, tropas frescas do Islão ali se pudessem voltar a concentrar. De facto, a fortaleza não foi ocupada definitivamente, mas os muçulmanos não a puderam reaproveitar, e pouco tempo depois, quando, numa segunda vaga, as forças militares por ali passam, não existe qualquer guarnição que as possa incomodar e acaba por se integrar no território nacional, cuja marca fronteiriça já se encontra muitos quilómetros à frente. A cidade está abandonada em 1229 e o rei apressa-se a conceder-lhe foral. As razões para o abandono da praça, por parte da guarnição, além da pressão dos cavaleiros portugueses e espatários naquela região, podem ter tido a ver com a conquista de Mérida por D. Pedro Sanches, tio do rei de Portugal e agora ao serviço do rei de Leão. Um exército de socorro saído de Sevilha, comandado pelo xeque Ibn Hud[14], tentou reconquistar essa cidade, mas acabou derrotado pela cavalaria leonesa. O desaparecimento deste exército pode ter criado o pânico nas praças muçulmanas vizinhas e, no caso de Elvas, precipitado o abandono da população[15].

A morte de D. Afonso IX de Leão trouxe uma nova dinâmica às forças de Castela e de Leão. A sua subida ao trono fez com que o dispositivo militar passasse a obedecer a um comando único, o que permitiu uma melhor coordenação das investidas no Sul e uma maior eficácia nas operações combinadas com as Ordens Militares. Esta coordenação, de certa forma, faz-se sentir sobre as guarnições do Sul de Portugal. O que se passa é que o avanço das forças combinadas castelhano-leonesas elimina e fixa eventuais reforços que pudessem ocorrer aos corredores de expansão das forças portuguesas, ou seja, a máquina militar nacional tem à sua frente guarnições inimigas com recursos muito limitados, o que não significa que algumas não ofereçam uma resistência mais encarniçada, como terá sido o caso de Mértola[16].

Esforços combinados dos exércitos cristãos, forte ação dinamizadora da Santa Sé, que envia legados aos reinos peninsulares com instruções para «levantarem o ânimo» e predisporem os governantes para a guerra contra o inimigo, são condições que se combinam para levar com êxito uma investida de grande envergadura sobre as guarnições muçulmanas. A luta intensifica-se a partir de 1234, partindo D. Sancho II para a sua última campanha. E, de facto, a ofensiva portuguesa é surpreendente: Moura e Serpa são tomadas em 1232, Beja, já abandonada, integra-se pouco depois, Aljustrel ocupada em 1234. Em 1238, são lançados ferozes ataques a toda a linha do Guadiana, concentrando-se especialmente sobre os castelos de Mértola e Alfajar de Pena, que caem em 1238/1239.

Sobre Mértola, D. Sancho II, a 16 de janeiro de 1239, assina em Lisboa um instrumento de doação, passado à Ordem de Santiago, na pessoa do seu Mestre, D. Paio Peres Correia, que confere aos cavaleiros espatários a posse da fortaleza daquela vila. Parece ser um ato simples, normal, como outros, em que o rei faz entrega de povoações à ordem de Santiago, sobretudo de vilas e castelos cuja localização estratégica é vital para a segurança da fronteira nacional e se encontram integrados em plena zona de operações daquela Ordem Militar. Era normal, não fora o facto de surgirem algumas dúvidas sobre a data da sua conquista, e também sobre o sobredimensionamento da sua importância estratégica[17].

Em 1240, forças militares combinadas com a Ordem de Santiago, tomam Aiamonte, Cacela, dominando a fronteira da Andaluzia. Estômbar e Alvor caem em 1240 ou 1241 e Tavira, provavelmente, em 1242. Esta última é doada, com seus direitos, termos e padroados à Ordem de Santiago. Segundo a cronística, estas duas guarnições teriam sido tomadas por uma hoste espatária que as teria atacado a partir de Aljustrel[18], e D. Paio Peres Correia procura apoderar-se de Silves e Paderne[19], sem alcançar sucesso, pelo menos nesse ano.

A coroa adquire o Baixo Alentejo e crava uma cunha no Sotavento algarvio, impedindo os mouros da Andaluzia de auxiliarem os castelos do Barlavento ou de acederem às planícies de Beja e de Évora. A paralisia do sistema militar do Gharb al-Andaluz parece-nos quase total, restando algumas praças junto à costa, com possibilidade de receberem abastecimentos, que mantêm alguma resistência, mas as rotas terrestres, os caminhos que dão acesso ao norte, ao oriente e ao ocidente, são patrulhados por cavaleiros espatários, e nas áreas circunvizinhas às grandes cidades já adquiridas movimentam-se milícias municipais, bem equipadas e motivadas, e cujo objetivo é garantirem a segurança de espaços que são cada vez mais vastos.

Superioridade esmagadora dos exércitos portugueses, novos equipamentos, utilização de engenhos sofisticados, grande concentração de efetivos? Nenhuma destas explicações nos parece adequada para explicar a velocidade das conquistas. Até porque o exército português não apresentava nenhum destes requisitos, quanto mais os três em simultâneo.

Aliás, parte destas conquistas ocorre num período onde a crise interna de contestação ao poder do soberano já é visível, o que naturalmente condiciona a disponibilidade régia para participar mais ativamente no Sul com todos os seus efetivos. O rei tem de manter próximo de si forças que o defendam ou que possam ser chamadas a intervir em situações mais gravosas. Por outro lado, a situação política interna, sobretudo a que caracteriza a margem norte do rio Tejo, deixava de ser favorável ao levantamento de novas unidades militares, embora o rei o tentasse, recorrendo muitas vezes a processos ilícitos. Recordemos, aqui, as queixas dos vários bispos acerca da violação dos privilégios eclesiásticos. Oficiais régios entravam nas dioceses e recrutavam à força, para as tropas do rei, dependentes e até clérigos.

Para onde iam estes homens? Para que unidades? Com que destino militar? Destinar-se-iam ao Sul? Iriam reforçar as milícias concelhias, ou o rei pretendia formar uma hoste própria e partir para a guerra nos campos do Alentejo?

De facto, estes habitantes, dependentes dos bispos, eram recrutados à força, havendo para isso referências documentais substanciais, que colocadas ao lado das bulas que pedem ao rei que organize campanhas contra o Islão criam algum desconforto, pequeno é certo, mas presente, à linha que defende a total exclusão de D. Sancho II como guerreiro da Reconquista.

Muito se tem afirmado sobre a participação, ou não, deste monarca na guerra de Reconquista, assentando a maioria das descrições no facto de o soberano ter tido nela pouco envolvimento. Não estava, não participava, não organizava, não comandava. Os terrenos do Sul caíam desta forma na mão dos portugueses por causa da mera ação das Ordens Militares. Mas, não é D. Sancho II o seu maior patrocinador? Não é o rei português que lhes concede doações importantíssimas? Não vemos os Mestres destas Ordens orbitar em torno de Sancho e dele receberem a necessária autorização para as operações militares? O espaço, as terras, os caminhos, as vilas, os castelos, as gentes que tomam pela força das armas ficam sob que autoridade?

A ausência do rei parece dar maior margem de manobra às Ordens Militares, que têm apenas como rivais no terreno outras Ordens Militares ou milícias municipais, que não possuem a mesma operacionalidade, mas que não podem ser escamoteadas ao processo. Vistas as fontes documentais, lidas as crónicas e os livros de linhagens, produz-se uma imagem, que ainda não sabemos se é distorcida, de que a conquista e ocupação do Alentejo e do Algarve se deve apenas à ação dos freires militares. São esmagadores os testemunhos que nos dão conta da presença destes elementos em todas as operações, de menor ou maior amplitude, contra as forças muçulmanas. Nomes como Paio Peres Correia e Martim Anes do Vinhal, pelos espatários, ou Afonso Peres Farinha, que com os seus Hospitalários assaltou e tomou Moura, Serpa, Aroche e Aracena, continuam a ser referências indiscutíveis. Porém ainda continuamos a desconhecer a verdadeira capacidade desta «específica» demografia militar.

A idêntica movimentação das numerosas forças leonesas e castelhanas de D. Fernando III permitiu que a progressão no Gharb al-Andaluz fosse mais fácil para as unidades militares, sobretudo, para a Ordem de Santiago, mas o processo de aquisição de espaço vital não se reduz a esta questão de saber se foi o rei ou se foram as Ordens Militares. O esforço de guerra é substancialmente atribuído a D. Sancho II, que participa em muitos dos combates, cabendo aos cavaleiros de Santiago e ao seu comendador-mor, D. Paio Peres Correia, parte importante na guerra contra os mouros, e a ideia de que o monarca está presente é dominante. O esforço dos espatários é largamente recompensado pelo rei que lhes entrega vasto património fundiário, doações que a Santa Sé se apressa a confirmar. Mas todas estas conquistas régias são postas em causa pelos cronistas de Castela por causa de um pequeno detalhe: a nomeação, em 1242, de D. Paio Peres Correia para Grão-mestre da Ordem de Santiago. Como a sede dos espatários se encontra em Castela, todas as conquistas e presúrias feitas nos anos trinta pelos cavaleiros de D. Paio Peres nas terras algarvias seriam feitas sob o pendão castelhano. Não importa, para essas fontes, que quando aquelas operações militares foram realizadas o agora chefe militar dos cavaleiros espatários fosse apenas comendador de Alcácer do Sal.

 

D. Sancho II e a acusação de ser um rex inutilis

As conquistas do rei servem também para contrariar as censuras que lhe faziam de que vivia no esquecimento dos seus deveres e numa apatia tal que se esquecia de defender as fronteiras do reino contra as agressões dos Sarracenos. Atribui-se essa maledicência ao facto de, naquela época, nenhum laico escrever sobre os feitos dos reis. Os cronistas eram clérigos que, movidos por uma grande má vontade contra o rei, não escreviam sobre as conquistas de D. Sancho II, nem sobre a sua participação nas expedições de guerra. A certeza da excelente capacidade militar do rei não se pode encontrar nos textos dos eclesiásticos, mas antes nos indícios que as cartas de doação aos espatários deixam entrever. Pormenor com muito interesse, e que resulta do facto de D. Sancho II considerar as conquistas feitas pelos espatários portugueses como propriedade sua, e que era por sua vontade, e do conhecimento dos grandes do reino de Portugal, que concedia as suas novas possessões à Ordem de Santiago.

Falar da Ordem de Santiago no reinado de D. Sancho II é falar de D. Paio Peres Correia e das suas ações à frente dos cavaleiros espatários em terras que iriam ser portuguesas. O período de liderança deste cavaleiro é um dos mais brilhantes na história daquela Ordem Militar, marcado pelas vastas e importantes conquistas realizadas nas atuais regiões do Baixo Alentejo e Algarve, bem como pelas campanhas posteriores conduzidas fora do espaço português, nomeadamente contra as taifas de Múrcia, Jaén e Sevilha. Não se sabe ao certo a data exata em que D. Paio assumiu a comenda-mor de Alcácer, mas provavelmente foi entre os meses de março de 1232[20] e fevereiro de 1235[21]. Esta última data encontra-o já como comendador de Alcácer e a conceder carta de foral aos moradores de Vila Nova de Canha, aos quais dá os mesmos foros e costumes de Palmela.

A este mesmo período (1232-35), parece, segundo alguns autores, ter correspondido uma fase de intensa reorganização interna, sobretudo ao nível das estruturas dirigentes da Ordem. A 31 de Março de 1235, o rei D. Sancho II outorgou à Ordem de Santiago o castelo de Aljustrel, com todos os seus termos e respetivas demarcações[22]. E começa aqui uma longa lista de doações. É provável que este lugar já tivesse caído antes nas mãos dos cristãos. A doação tem lugar em março, mês que marcava o início das campanhas de primavera/verão e D. Paio Peres era, muito possivelmente, já no estio de 1234, o comandante dos espatários portugueses, provavelmente os principais responsáveis por esta conquista.

As mercês do rei à Ordem de Santiago não se ficam apenas pela doação de Aljustrel. A 1 de outubro de 1235, D. Paio encontra-se em Coimbra, em presença da cúria régia, onde lhe são outorgados, bem como à sua Ordem, os direitos de padroado sobre as igrejas de Palmela e de Alcácer[23]. Os meses de janeiro e de fevereiro do ano seguinte assistem à consolidação da posição dos espatários ao Sul do Tejo, quando D. Sancho II faz doação ao comendador da vila e castelo de Sesimbra[24] e do padroado régio das respetivas igrejas. Mértola é a próxima doação. O estratégico castelo do Guadiana é outorgado ao Mestre dos Espatários em janeiro de 1239[25].

Modificava-se o território português com as sucessivas operações militares que saídas de bases estabelecidas cada vez mais a Sul, incorporavam novas realidades, redimensionando assim o espaço territorial do reino, dando-lhe novos contornos e trazendo novos modelos de ordenamento e administração. Mas alargava-se um território ainda instável, ainda sujeito a perturbações e, sobretudo, avançava-se sobre múltiplas realidades humanas e políticas, características das sociedades de fronteira. A luta pelo Sul não foi a única realidade militar deste reinado. Garantidas as principais praças do miolo alentejano, guardadas as passagens do Guadiana, voltavam-se os olhos para as Beiras[26] e para toda a fronteira leste portuguesa, em especial para a região do Riba Côa e para todo o flanco beirão, de onde poderia sempre surgir outro tipo de ameaça militar – esta cristã.

Condiz o reinado de D. Sancho II, apesar de frágil e turbulento, com as características dos anteriores. Eram simultâneas as suas intervenções, ou seja, a necessidade de manutenção da autonomia levava a que a coroa se preocupasse ao mesmo tempo com várias frentes. Em paralelo com o avanço das Ordens Militares no Sul, o rei olha para as terras beirãs, onde procede à concessão de forais, documentos que privilegiam a manutenção das fronteiras. A Idanha e toda a região da Guarda são um caso paradigmático. A sua concessão a mestre Vicente, que a receberia enquanto bispo, era a resposta para consolidar um dos flancos mais expostos do reino, e fixar, de forma definitiva, fronteiras e zonas de influência. Flanco leste que continua a ser reforçado e protegido mais para Sul com a implantação de castelos e povoados administrados por Templários e Hospitalários e cuja função era exatamente a mesma do bispado da Guarda.

Esta simultaneidade de intervenções muda completamente a perspetiva de enfoque sobre a participação do rei nas operações militares sobre as praças islâmicas. Mostra que a prossecução de políticas de povoamento, seja através da concessão de forais diretos a concelhos cuja ligação privilegiada será com a coroa, quer doando e concedendo territórios e privilégios a unidades institucionais, que garantam a mesma integridade e desenvolvimento, parte de uma conceção estratégica global sobre o território governado. Plano estratégico que sai reforçado por uma outra característica das monarquias peninsulares cristãs dos séculos XII e XIII, a sua grande adaptabilidade a novas situações e a novos problemas e a versatilidade de opções que conseguem produzir.

Em conjunto com a hoste real, e com as poderosas colunas concelhias, utilizavam-se forças de combate altamente especializadas no confronto contra os exércitos islâmicos: as Ordens Militares. Note-se que este não é o único cenário de aquisição e salvaguarda de novos espaços e de consolidação dos já existentes, a utilização de unidades monásticas convencionais, fixadas através de cartas de couto, ou a recuperação dos antigos modelos diocesanos produziam resultados semelhantes[27].

Sendo um reinado conhecido pela sua instabilidade, impressiona observarmos como o processo de aquisição de novas periferias, novas zonas de marca, novas áreas de crescimento, no Sul, contrastam com essa definição. O processo estabilizou-se rapidamente. Em 1249, um ano depois da morte de D. Sancho II, consuma-se a conquista do «Segundo Reino», feito que encerra, pelo menos neste século, o processo expansionista português. A ocupação do Sul islâmico é feita de forma consolidada e coerente, coordenada com os reinos vizinhos e marcada por ritmos e compassos bem escalonados. Foram avanços, recuos e paragens, que observados à distância parecem apresentar um rigor quase matemático. As praças islâmicas esgotadas pelo feroz domínio almóada e agora conformadas na degradação política e militar das terceiras Taifas, são paralisadas, flanqueadas, perdem o contacto com os centros reordenadores e redistribuidores, quer de abastecimentos, quer de liderança, e entregues a si próprias, sem reforços militares, quebram e abrem as portas a outro modelo de poder.

Este cenário de estabilidade e intencionalidade militar não é novidade para as Ordens Militares, nem para a Coroa. Ambas funcionam assim, numa lógica de avanço consolidado, e quando se afirma que, por exemplo, Mértola opôs às forças de D. Paio Peres Correia uma feroz resistência, que terá levado o mestre espatário a retirar e a optar por conquistar pequenos núcleos fronteiriços e pequenos castelos ao seu redor. Provavelmente sobrevalorizam-se as possibilidades daquela fortaleza do Guadiana e subestima-se o modelo de campanha que os cavaleiros de Santiago, e não só, seguiam.

Método, agressividade, velocidade e surpresa. Eram estes quatro valores que os freires militares, às ordens de Paio Peres Correia, aprendiam no castelo e comenda de Alcácer. A estratégia e o plano tático, congeminados pelo Mestre de Santiago, espanta pela sua simplicidade: a partir de Alcácer os cavaleiros de Santiago penetravam no interior do Alentejo, em diagonal, tomando Aljustrel, localizada a sudeste, por onde rodeariam as serranias (serra de Tentudia), fixando os Sarracenos e atacando-os pela retaguarda[28], caindo depois em cima de Mértola, onde se esperava resistência, e quebrando o ferrolho do Guadiana, impedindo que esta fortaleza recebesse reforços e suprimentos quer por via terrestre, onde todos os caminhos estavam controlados por homens de Martim Anes do Vinhal, o responsável pela colocação do dispositivo para o assalto final a Mértola. Os castelos ao redor de Mértola, já nas mãos dos cristãos eram os responsáveis por esta operação de bloqueio[29]. Mas serão as forças espatárias em quantidade suficiente para darem expressão a este plano? Provavelmente, não. É muito curioso como as recentes, e variadas, obras sobre história militar medieval portuguesa costumam, nos seus planos de trabalho, terminar a ofensiva portuguesa com a conquista definitiva de Alcácer do Sal, em 1217, e apenas voltar a falar de guerra contra o Islão a partir de 1249, quando Aljezur e Faro são tomadas durante o segundo ano do reinado de D. Afonso III. Tem ficado por estudar, e analisar, um vasto período de tempo. Praticamente, todo o reinado de D. Sancho II (1223-1248)[30].

Num golpe de vassoura, Paio Peres e os seus homens varreram as guarnições muçulmanas, do Atlântico ao Guadiana, guardando a planície, e tomando as passagens daquele rio, ligando-se, assim, às hostes leonesas. Restava aos muçulmanos das praças que ficavam para trás, resistirem aí, isolados e sem abastecimentos, passarem o Guadiana antes dos cavaleiros de Santiago ou fugirem para Sul, pelos carreiros da serra algarvia.

Plano simples que o rei conhece, como podemos constatar pelo apoio em forma de privilégios e rendas concedidos a D. Paio e à Ordem de Santiago, bem como pela outorga de um conjunto de castelos nucleares na defesa do Alentejo e do corredor oriental algarvio. Mas o conhecimento do rei é bem mais profundo. O assalto ao «ferrolho» do Guadiana, que era Mértola, pressupunha que nenhum reforço poderia ser enviado rio acima, ou pelo leito, ou pelos carreiros que correm pela margem ocidental, e que saem de Aiamonte. Na mesma altura em que o primo de D. Paio Peres, Martim Anes do Vinhal, dispõe os seus efetivos e prepara o assalto final a partir da Torre de Oeiras, esperando apanhar os defensores de surpresa, uma operação combinada entre a hoste de guerra do rei e a sua frota punham cerco a Aiamonte, que acabam por dominar e conquistar, deixando aí pesada defesa. Sem auxílio, Mértola acaba por tombar e abrir todo o dispositivo de defesa do Guadiana. Faltava Alfajar de Pena, castelo alcantilado que controlava as passagens entre Aiamonte, Mértola e o acesso à planície, e que as forças espatárias libertas do assédio a Mértola se apressam a tomar.

Termina aqui a participação do rei nos confrontos com os muçulmanos do Sul, o que causou algumas dificuldades a D. Paio e aos espatários, que sem o apoio da frota real e da sua hoste bem equipada, não tinham meios de correr pela planície andaluza para tomar Huelva, Gibraléon e Saltes, abrindo o flanco sevilhano. Sem os barcos do rei a executar o mesmo dispositivo que empregaram em Aiamonte, os espatários não se podiam mover. E desde 1238 os corredores do Guadiana deixam de servir para aceder ao Sul e a Sevilha, obrigando os espatários a virarem-se para o interior algarvio e para os seus portos atlânticos, agora que esses castelos estão sem comunicações com a grande taifa.

 

Um novo espaço

O reino integra, agora, nos seus limites, uma vasta área islamizada, cujos modelos administrativos e organizativos são distintos dos do Norte. Os modelos culturais predominantes acercam-se, aí, dos mediterrânicos, e são áreas caracterizadas por uma forte presença urbana, com dinâmicas próprias e cuja relação com a região envolvente pressupõe a existência de hierarquias funcionais. O reino português do final dos anos trinta do século XIII não possui a mesma dimensão que tinha quando o rei subiu ao trono em 1223. Redimensionou-se, alargou-se, ampliou o âmbito do seu centro e atraiu novas periferias, novos subsistemas, com valores culturais, políticos e económicos diferenciados, mas harmonizados num modelo administrativo coerente e funcional. Os problemas internos no centro e no norte do país vão acabar por obrigar, a partir de 1245, o rei a afastar-se do Sul. Passa a caber às unidades administrativo-militares, às Ordens Militares e aos «novos» núcleos urbanos a integração daquele espaço num sistema global.

No século XIII todo o Gharb, ou quase todo, era uma sociedade de fronteira, prenhe de habitats militarizados e em constante estado de guerra contra o outro bloco, exatamente situado sobre o outro lado da fronteira, e também ele, profundamente militarizado. Para ambos a volatilidade do espaço, a invisibilidade da linha divisória e a «livre-circulação» eram elementos comuns, padrões normais de comportamento, cuja opção predominante é a resistência ao centralismo. E as regras da Reconquista trazem contornos diferentes a estas sociedades de fronteira. A guerra feita às cidades do Andaluz pelos reis peninsulares ao longo do século XIII imprime mudanças radicais ao nível dos comportamentos dos núcleos e caudilhos fronteiriços, de ambos os lados, ao estruturar-se sobre estes novos modelos administrativos numa lógica de assimilação cultural. Mesmo unidades militares autónomas e pouco valorativas das identidades nacionais, como as Ordens Militares, imprimem sobre os territórios que lhes são doados pelos reis as regras do sistema central. E a construção dos centros, onde as monarquias se afirmam como modelo definidor veem a fronteira de forma diferente, como algo estável, definitivo, impermeável.

Depois de D. Sancho II, depois de D. Afonso III, depois de D. Fernando III ou D. Afonso X, não mais se verá o livre andar dos homens fronteiriços pelas terras da marca, porque já não há marca.

 

Bibliografia

 

1. Fontes manuscritas

Arquivos Nacionais / Torre do Tombo:

AN/TT, Chancelaria de Afonso III, fls. 147 - 1239, janeiro, 16, Lisboa: doação.

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AN/TT, Ordem de Santiago, DP, mç. 1, doc. 1.

AN/TT, Ordem de Santiago, DR, mç. 1, doc. 7.

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AN/TT, Ordem de Santiago, Livro dos Copos, fol. 240r-242r.

 

2. Fontes impressas:

PEREIRA, Gabriel – Documentos Históricos da Cidade de Évora. Évora: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1998.

Crónica de cinco reis de Portugal. Inédito quatrocentista reproduzido do Cód. 886 da Biblioteca Pública Municipal do Porto, seguido de capítulos inéditos da versão portuguesa da Crónica Geral de Espanha e outros textos ed. diplomática e prólogo de A. de Magalhães Basto. Porto: Civilização, imp. 1945.

Cronicas dos sete primeiros reis de Portugal – Carlos da Silva Tarouca (ed.). Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1952-1953.

2. Dicionários e obras gerais:

AZEVEDO, Luís Gonzaga – História de Portugal. vol. VI., Lisboa: Edições «Bíblion», 1944.

MATTOSO, José, História de Portugal, 2º vol., A monarquia feudal (1096-1480). Coord. de José Mattoso, Lisboa: Círculo de Leitores, 1993.

TEIXEIRA, Nuno Severiano; DOMINGUES, Francisco Contente; MONTEIRO, João Gouveia – História Militar de Portugal. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2017

3. Estudos:

BRANDÃO, Fr. António – Crónicas de D. Sancho II e D. Afonso III. Porto: Livraria Civilização, 1945.

COSTA, António Domingues de Sousa – «Mestre Silvestre e Mestre Vicente, juristas da contenda entre D. Afonso II e as irmãs». Volume 1 de Estudos e textos da Idade Média e do Renascimento. Lisboa: Tipografia Editorial Franciscana, 1963.

FERNANDES, Hermenegildo – D. Sancho II. Tragédia. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006.

GARCIA, João Carlos – «Alfajar de Pena. Reconquista e povoamento no Andévalo no século XII», Actas das II Jornadas Luso-Espanholas de História Medieval, vol. III, Porto, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1989, pp. 907-925.

HENRIQUES, António Castro – Conquista do Algarve. 1189-1249. O segundo reino, Lisboa, Tribuna da História, 2003.

MATTOSO, José, – «D. Sancho II, o Capelo», História de Portugal, Lisboa: Publicações Alfa, 1986, vol. I, pp. 137-156.

REI, António – «A fronteira no Sudoeste Peninsular (1234-1242)», Arqueologia Medieval, 8 (2003), Mértola, pp. 29-41.

VARANDAS, José – «Bonus Rex» ou «Rex inutilis». As periferias e o centro. Redes de poder no reinado de D. Sancho II (1223-1248). Tese de doutoramento em História (História Medieval), apresentada à Universidade de Lisboa através da Faculdade de Letras, 2004.

IDEM – «O assédio a Alcácer. Alguns problemas de História Militar», Da conquista de Lisboa à conquista de Alcácer. 1147-1217. Definição e dinâmicas de um território de fronteira. Lisboa: Edições Colibri, 2019, pp. 365-390.

 


NOTAS

[1] BRANDÃO, Fr. António – Crónica de D. Sancho II, p. 21.

[2] VARANDAS, José – «Bonus Rex» ou «Rex inutilis»..., p. 564.

[3] Sobre estas bulas veja-se as transcrições de COSTA, António Domingues de Sousa – Mestre Silvestre e Mestre Vicente…, pp. 197 e 204, notas 318 e 324.

[4] VARANDAS, José – «O assédio a Alcácer...», pp. 365-390.

[5] VARANDAS, José – «Bonus Rex» ou «Rex inutilis»..., p. 564.

[6] AN/TT, Mç. 36 de Bulas, doc. 77 - 1241, fevereiro, 18, Latrão: bula; COSTA, António Domingues de Sousa – Mestre Silvestre e Mestre Vicente..., nota 533.

[7] AN/TT, Gavetas III, mç. 3, doc. 7.

[8] AN/TT, Gavetas V, mç. 1, doc. 18 - 1236, janeiro, 7: doação.

[9] PEREIRA, Gabriel, Documentos Históricos da Cidade de Évora, p. 253.

[10] FERNANDES, Hermenegildo – D. Sancho II..., p. 130.

[11] MATTOSO, José – História de Portugal..., p. 124, refere que o papa Gregório IX outorga ao reino doze bulas de exortação à guerra contra os mouros, só para o ano de 1239.

[12] VARANDAS, José – «Bonus Rex» ou «Rex inutilis»..., p. 170.

[13] AZEVEDO, Luís Gonzaga – História de Portugal..., pp. 16-18; HENRIQUES, António Castro – Conquista do Algarve... pp. 52-53.

[14] FERNANDES, Hermenegildo – D. Sancho II..., p. 190.

[15] MATTOSO, José – «D. Sancho II, o Capelo»…, p. 560.

[16] VARANDAS, José – «Bonus Rex» ou «Rex inutilis»..., p. 571.

[17] AN/TT, Coleção Especial, Série Preta, cx. 28, doc. 52; AN/TT, Ordem de Santiago, DR, m. 1, nº 8; AN/TT, Chancelaria de Afonso III, fls. 147; BRANDÃO, Fr. António, Crónicas de D. Sancho II e D. Afonso III, Escritura VI, p. 355.

[18] Crónica de Cinco Reis, ed. Magalhães Basto, p. 161 e a Crónica dos Sete Reis, ed. Carlos Silva Tarouca, p. 254.

[19] BRANDÃO, Fr. António – op. cit., caps. XV-XVI, p. 58.

[20] AN/TT, Ordem de Santiago, DP, mç. 1, doc. 1.

[21] Outorga do Foral de Canha: AN/TT, Ordem de Santiago, Livro dos Copos, fol. 240r-242r.

[22] AN/TT, Gavetas 5, mç. 1, doc. 17. A notícia desta doação está ainda publicada em BRANDÃO, Fr. António, Crónica de D. Sancho II, escritura nº 4, p. 352 e liv. 15, cap. 14.

[23] AN/TT, Ordem de Santiago, DR, mç. 1, doc. 7; AN/TT, Gavetas V, mç. 1, doc. 20; AN/TT, Gavetas V, mç. 1, doc. 34.

[24] AN/TT, Gavetas V, mç. 1, doc. 18 - 1236, janeiro, 19: doação.

[25] AN/TT, Colecção Especial, Série Preta, cx. 28, doc. 52; AN/TT, Ordem de Santiago, DR, m. 1, nº 8; AN/TT, Chancelaria de Afonso III, fls. 147 - 1239, janeiro, 16, Lisboa: doação; BRANDÃO, Fr. António, Crónicas de D. Sancho II e D. Afonso III, Escritura VI, p. 355.

[26] FERNANDES, Hermenegildo – D. Sancho II..., p. 206.

[27] VARANDAS, José – «Bonus Rex» ou «Rex inutilis»..., p. 579.

[28] HENRIQUES, António Castro – op. cit., p. 57.

[29] GARCIA, João Carlos – «Alfajar de Pena. Reconquista e povoamento no Andévalo no século XII", p. 910 e REI, António – «A fronteira no Sudoeste Peninsular...», p. 35.

[30] TEIXEIRA, Nuno Severiano, et al. – História Militar de Portugal. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2017, pp. 77-81, entre outras publicações.

 

JOSÉ VARANDAS

Professor auxiliar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa de História e História Militar da Antiguidade Clássica e Idade Média. É diretor do Mestrado Interuniversitário de História Militar e investigador no Grupo de Investigação em História Militar do Centro de História da Universidade de Lisboa. É académico correspondente da Academia Portuguesa de História, membro efetivo da Academia de Marinha e membro fundador e secretário-geral da Associação Ibérica de História Militar.

 

 

Citar este texto:

VARANDAS, José – Operações Militares ao Tempo de D. Sancho II. A Luta pelo Alentejo (1226-1241). Revista Portuguesa de História Militar - Dossier: Da Fundação à Expansão, Séculos XII-XVI. [Em linha] Ano II, nº 2 (2022), https://doi.org/10.56092/MFNS2838​​,[Consultado em ...].

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