INFORMAÇÕES E O 25 DE ABRIL

Rodolfo Bacelar Begonha
Resumo
Testemunho pessoal sobre atividades e acontecimentos relativos a cargos desempenhados em Informações Militares, antes, no 25 de Abril e na reorganização após o 25 de Abril.
Palavras-Chave: Informações Militares; 25 de Abril.
Abstract
Personal testimony about activities and events relating to positions held in Military Intelligence, before, on the 25th of April and in the reorganization after the 25th of April.
Keyords: Military Information; April 25.
A. Introdução
1. Experiência Pessoal
Nos 50 anos do 25 de Abril, desafiaram-me para que me pronunciasse, de um modo geral, sobre questões da área das Informações relacionadas com o 25 de Abril.
Tratam-se, hoje, de assuntos Históricos. Aproveito para relatar factos baseados na experiência pessoal, em funções para que fui nomeado, e que agora são expostos de uma forma simples, incluindo acontecimentos, aparentemente de pouca importância, não esquecendo o ambiente psicológico especial a que dizem respeito. Haverá sempre um esforço permanente para colocar a data das histórias descritas, correndo algum risco face ao tempo dos acontecimentos.
2. Evolução das Informações
As Informações abrangem um conjunto de matérias que, à data presente, sofreram um desenvolvimento tecnológico e de importância mundial que torna difícil compará-las com a situação de há cinquenta anos atrás.
Nos tempos mais recentes, da dificuldade de informação que existia na altura do 25 de Abril passou-se para um período em que cresceu enormemente o acesso a muitas bases de dados. Da dificuldade referida, hoje com computadores modernos, passou-se a uma seleção do que é necessário para os processos das Informações escolherem entre milhares de dados. Por exemplo, para a espionagem, por vezes fundamental, tornam-se indispensáveis várias qualidades como a coragem e a autoconfiança (John Keegan) e o seu recrutamento e formação desenvolveram-se bastante.
Em Portugal foi muito marcante, negativamente, a existência da PIDE/DGS, que tinha no Regime anterior ao 25 de Abril, a responsabilidade nacional das Informações e que estava fundamentalmente preocupada com a oposição ao Regime. A PIDE dispunha de uma liberdade de ação que não a obrigava a respeitar muitos princípios de defesa dos direitos fundamentais, hoje indispensáveis em democracia. Nesse sentido essa imagem negativa originou uma grande desconfiança sobre as Informações, até porque envolve assuntos sobre os quais há que preservar a sua divulgação pública, sob pena da falta de segurança poder prejudicar gravemente interesses importantes para Portugal. Além disso, muitos filmes foram vistos por muitas pessoas, contribuindo para conferir especial realce a ações misteriosas e aventureiras de operações de espionagem com grandes riscos para o seu êxito por parte dos respetivos autores, alguns dos quais transformados em heróis.
3. Ameaças
Para leitores que tenham pouco conhecimento sobre Informações, permitam-me alguns breves comentários. Podemos afirmar, de um modo geral, que um país é considerado seguro quando está protegido da ameaça de terrorismo, espionagem e subversão. A grande questão das Informações é a da obtenção de dados essenciais sobre ameaças que, depois de “estudados e trabalhados" permitam aos decisores as devidas decisões. O estudo das ameaças é permanente e exige, muitas vezes, uma área de serviço secreto nos Serviços de Informações, que vulgarmente se chama de “Pesquisa Coberta".
4. Mentalidade sobre Informações
As considerações que aqui inserimos referem-se a Informações, tendo como referência o 25 de Abril de 1974.
Nessa altura já eu considerava que os vários responsáveis militares e políticos portugueses não conferiam a devida importância às Informações para a tomada de decisões, com consequências, entre outras, na respetiva organização e dimensão.
Em Portugal, o General Pedro Cardoso, pessoa muito inteligente e de grande nível profissional, cultural e humano, viu-se com dificuldade para iniciar a implantação do novo Serviço de Informações, o que acabou por conseguir.
5. Verdade e Independência
Convém salientar que considero que qualquer sistema que se implante deve obedecer à verdade e à lei, e respeitar os direitos humanos e a democracia que foi conquistada com o 25 de Abril, e que precisa ser permanentemente defendida, sempre com o cuidado essencial de nada divulgar que possa provocar prejuízos para Portugal.
Quem estudou algo sobre a História Geral das Informações saberá que um dos grandes problemas é o facto do poder político, por um lado, não saber solicitar às Informações o que lhe parece ser mais importante para o seu trabalho e, por outro lado, noutros casos, o poder político não aceitar as conclusões que as Informações lhe apresentam, por as considerar inconvenientes para a sua ação política.
6. Períodos com Características Diferentes
Pareceu-me, assim, com mais interesse, aproveitar esta oportunidade para relatar alguns acontecimentos relacionados com as Informações Militares Portuguesas em vários períodos, antes do dia 25 de Abril e no período posterior, não deixando de lembrar que estávamos em período revolucionário, com aspetos positivos e negativos, e que em Informações todos os indícios têm de ser analisados e só depois de serem devidamente avaliados se transformam em Informações. Considero que é difícil explicar, neste período, o estado emocional e psicológico em variados momentos de todo o processo revolucionário. Os factos relatados, como é óbvio, não refletem qualquer tomada de posição pessoal sobre eles, a favor ou contra, a não ser quando essa posição for claramente expressa.
B. Período Anterior ao 25 de Abril de 1974
Existem vários acontecimentos e factos que contribuíram para que o 25 de Abril tivesse êxito, felizmente, com violência limitada, e merecem ser referidas seguidamente.
1. Cansaço da Guerra
O facto que me parece mais significativo foi o cansaço da guerra, atingindo significativamente os quadros profissionais militares, com sucessivas comissões de serviço e sacrifícios daí resultantes.
2. Congresso dos Combatentes
No conflito global dos militares com o Governo, foi por este decidido realizar um Congresso dos Combatentes, com o objetivo de obter apoio dos militares e Ex combatentes à política colonial do regime (1,2,3 junho de 1973). Esta posição deu origem a uma “reação dos oficiais do quadro permanente que iniciaram uma movimentação de contestação. Da Guiné foi enviado um telegrama ao Congresso, subscrito por cerca de 400 militares. Este visava a sua participação em massa e de forma efetiva nos trabalhos, de forma a impedir que, com os seus depoimentos, as conclusões do Congresso fossem as que antecipadamente o regime havia definido".
O Governo tomou a decisão absurda (enorme erro) de proibir os militares dos quadros permanentes de participarem no Congresso. O movimento de contestação agravou-se e as respetivas reuniões sucederam-se até ao 25 de Abril. Destas saliento apenas a de Cascais em 05 de março de 74 em que foi discutido o primeiro grande documento político do MFA: O MOVIMENTO, AS FORÇAS ARMADAS E A NAÇÃO. Além disso foram escolhidos como chefes do Movimento, primeiro o Gen Costa Gomes e depois o Gen Spínola.
3. Livro do General Spínola
O livro “Portugal e o Futuro" (28fev74), do General Spínola, o grupo dos seus colaboradores na Guiné, e o agravamento brutal da guerra na Guiné em 1973, foram influentes. Independentemente de outras considerações o Gen Spínola tocou num ponto sensível: a guerra não teria êxito por meios militares e que, portanto, a solução seria política.
Em determinado dia, entro no Gabinete do Chefe da 2ª Repartição (Informações) do EME, Coronel Gomes Bessa, e ele, em pé, junto da secretária, pega no livro do General Spínola, que acabara de ler, bateu com o livro na secretária e desabafou “está tudo lixado". Percebeu a influência psicológica que o livro viria a ter no processo de contestação em curso no Exército. O Coronel Gomes Bessa, de elevada cultura, tinha ocupado o cargo da chefia da Mocidade Portuguesa. Pareceu-me que fora nomeado num contexto do “Grande Portugal" e não por razões de qualquer enriquecimento pessoal. É claro que esse facto o colocava numa posição difícil face a um processo revolucionário.
4. Os Dirigentes Nacionais
Os dirigentes não aceitaram e não perceberam o movimento internacional, em grande alteração, nem a falta de capacidade de Portugal para se defender se o apoio internacional aos movimentos de libertação aumentasse, o que veio a acontecer, com maior gravidade na Guiné, a partir de 1973.
A oposição política explorou, entre outros, três aspetos de vulnerabilidade do regime: a existência de um partido único (ausência, portanto, de democracia), a existência de um sistema de censura e a ação abusiva da polícia política.
Uma das grandes preocupações de quem acompanhava e tinha responsabilidades sobre a evolução do “Movimento", além de se tentar normalizar ou regulamentar as alterações indispensáveis, era a forma como se podia proceder à descolonização, com um mínimo de prejuízos possível. Houve muitos portugueses que participaram no 25 de Abril, sem outras preocupações que não fosse a da melhor forma do decorrer do processo revolucionário a caminho da democracia.
Não se pode ignorar a ação política forte nas Universidades, donde muitos estudantes foram nomeados para Comissões no Ultramar, por um lado, e igualmente duas leis de 1973, em que oficiais milicianos podiam entrar em Quadros Permanentes, mas com prejuízo para as carreiras dos que já lá estavam, o que não foi bem aceite, como seria de esperar.
5. O Êxito do 25 de Abril
Por fim, a organização do MFA, com as suas reuniões, documentos, tática e estratégia, levou a cabo o sucesso do 25 de Abril, sem guerra civil, mas curiosamente sem aparente deteção pela polícia política (então DGS). A seguir, como é “normal", nos períodos de Revolução, apareceram muitas pessoas a quererem apoderar-se dele, atribuindo-lhe significados próximos das suas posições ideológicas.
6. Apreciação Geral do Serviço de Informações Militares
a. Sistema Geral de Informações
Numa curta apreciação global do sistema de informações militares anterior ao 25 de Abril, podemos considerá-lo fraco e atrasado relativamente ao que deveria corresponder a um verdadeiro serviço de Informações. Estava, naturalmente, voltado essencialmente para a parte operacional, para a missão que as Forças Armadas cumpriam nos teatros de operações (TO) em África. A divisão dos TO em grandes áreas e distâncias, conferiu um grau elevado de autonomia aos Quartéis Generais respetivos, que adotaram os meios disponíveis às condições locais, geográficas e populacionais (incluindo o importante fator étnico).
Os documentos orientadores da técnica base de Informações, caso do Regulamento de Informações Militares, até apresentavam qualidade razoável e foram úteis para a orientação do trabalho e para a possível formação de pessoal.
No Continente, as Informações Militares limitavam-se aos assuntos enviados pelos Comandos Subordinados, isto é, integravam-se na cadeia de Comando. Podemos considerar que este sistema era vulnerável por diversas razões, das quais se salientam as seguintes:
- Não foi considerado importante, nessa altura, a constituição de uma Escola de Informações que pudesse melhorar a formação nesta área.
- Nunca foi sentida ou sequer colocada a questão da criação de uma verdadeira especialidade de Informações, como Ramo Independente, com um quadro próprio, apesar de existirem células de Informações em todos os graus de comando[1].
b. Centralização e coordenação das Informações.
A centralização e coordenação das Informações dos três Ramos apresentava-se fraca, muito pouco consistente. A coordenação geral estaria concentrada na DGS, mas não se efetuavam reuniões periódicas, nem o Exército, tanto quanto me lembro, recebia pedidos de pesquisa. Os assuntos, eventualmente sensíveis, seriam tratados ao nível de Ministro e Chefes de Estado Maior. Após a constituição (1972) do designado Comando Geral de Segurança Interna (CGSI) realizavam-se reuniões sobre assuntos de Segurança com a presença de representantes dos Ramos das Forças Armadas e da DGS. Mais próximo do 25 de Abril um oficial do CGSI telefonava diariamente para as Repartições de informações dos Ramos, e possivelmente para outras Organizações, para recolher elementos de acontecimentos significativos para a elaboração de um relatório diário.
c. A PIDE/DGS
A PIDE concentrava uma série de áreas importantes, entre as quais a Contraespionagem, a Interpol, o controlo de estrangeiros, o controlo de fronteiras, um sistema de escutas telefónicas, uma área de interrogatórios de suspeitos e elaboração de processos judiciais, o que incluía, obviamente, a capacidade legal de prisão de suspeitos, e uma rede nacional de investigadores e de informadores.
Existia, assim, uma hegemonia da PIDE com um consequente poder substancial e sem controlo externo, a não ser uma tutela política, mais ou menos distante, dispondo, portanto, de uma enorme liberdade de ação, que proporcionou abusos de vária ordem (é importante mencionar que havia um acordo tácito e informal entre a DGS e as Forças Armadas no sentido de aquela não interferir na informação interna das Forças Armadas, limitando-se a observar a atividade de militares que tinham sido afastados do serviço ativo).
d. 2ª Repartição do EME (Informações e Segurança)
Na 2.ª Repartição do EME não existia qualquer sistema de informadores. E esta é uma questão central em termos de Informações. O sistema de recolha de Informações provinha essencialmente das Unidades Militares, através dos canais de comando, o que quer dizer que a informação mais sensível nem sempre chegava ou chegava “filtrada". Os Comandos mais elevados, os das Regiões Militares, entendiam-se diretamente com o Chefe de Estado-maior do Exército, ficando, por vezes, a Repartição Central de Informações sem elementos importantes para o seu trabalho que incluía Informação e Segurança.
A Segurança é vital e tem de se preocupar permanentemente com a ameaça, com as áreas de operações, nos seus aspetos económicos, políticos e culturais; e com os efetivos próprios.
Montando-se um sistema em que as notícias e Informações provêm apenas das Unidades subordinadas, duas conclusões se podem extrair: uma é a de que determinadas Informações de segurança podem não chegar ao conhecimento do Comando Superior, porque o espírito de camaradagem e solidariedade impedem, muitas vezes, uma informação que pode trazer incompreensões e inconvenientes, outra, a de que os próprios comandos evitam comunicar algumas Informações com receio de serem mal interpretados. Por exemplo: se um comando decide não comunicar incidentes pouco agradáveis, para não ser censurado, o que não pode ser atitude correta, e se outro comando, honesta e lealmente, as comunica todas, arrisca-se a ser prejudicado na avaliação superior, porque nem sempre os comandantes têm aquelas qualidades profissionais e humanas que permitam uma avaliação correta.
Uma das questões que se coloca é a da existência, ou não, de informadores nas Unidades, com ou sem conhecimento do Comando, e que se sabe existirem em alguns serviços de Informações militares europeus, por razões de segurança e que se compreende pelas responsabilidades muito sérias a cargo da Instituição Militar e pelo esforço permanente dos Serviços de Informações de alguns países para recrutamento de espiões. Mas como a PIDE era responsável pela Segurança Interna, teremos que admitir que tivesse recrutado um grupo de informadores nas Forças Armadas, o que nunca foi do conhecimento da 2.ª REP. do EME.
e. Escuta Telefónica
Convém tornar claro que não existiam meios de escuta telefónica na dependência ou conhecimento das informações do EME. Será sempre possível colocar a questão de saber se um sistema de Informações Militares, eficientemente organizado, não poderia tornar-se inconveniente ao Regime, que dele teria receio, uma vez que a informação é poder, a que se adicionaria o poder das armas.
f. Análise em Informações
No EME as análises de Informações eram feitas com o estudo de publicações nacionais e estrangeiras, abertas e ilegais, além, evidentemente, das Informações recebidas dos comandos subordinados. Os grupos políticos de oposição ao Regime tinham a maior parte da sua atividade clandestina e publicavam folhetos de diverso tipo, com as suas críticas, posições ideológicas, e que foram aumentando de importância, em quantidade e qualidade, até ao 25 de Abril, com algum relevo para as associações de estudantes universitárias que sempre tiveram alguma capacidade de expressão.
Na parte militar, percebeu-se que alguém tentava constituir células desestabilizadoras nas Unidades.
g. Incompreensão das Informações
Em data difícil de discriminar, mas antes do 25 de Abril, recebi ordem para realizar uma exposição sobre a situação política, ao Curso de promoção a Oficial General, do Instituto de Altos Estudos Militares. Missão que cumpri normalmente. Mais tarde, após o 25 de Abril, encontrei no átrio do EME, um dos Coronéis que assistira a essa exposição. O Coronel Hilário Marques da Gama, que se encontrava a tratar do seu processo de saneamento, certamente por ter sido considerado perigoso por se situar politicamente muito próximo do Regime. Tenho elementos para o considerar como pessoa honesta e com vincada visão patriótica, em que incluía a defesa do Ultramar português na globalidade da pátria portuguesa. Compreendo a situação psicológica do Coronel, voltou-se para mim e disse: “Oh! Begonha digo-lhe sinceramente, você foi ao IAEM fazer a sua apresentação e eu pensei: que grande aldrabão, mas agora devo dizer-lhe que você estava corretíssimo, os números que apresentou estavam certos e nós eramos uma camada de ignorantes." Esta posição, que sei ter sido muito sincera, representa uma das questões importantes nas Informações, a da dúvida ou recusa de aceitação por parte das pessoas ou entidades recetoras, quando não são do seu agrado. E muitas vezes voltam-se contra o resultado do trabalho, em vez de mandarem aprofundar e encararem seriamente os dados que lhes são apresentados. Por outro lado, esta história demonstra o perigo de apreciação negativa dos técnicos das Informações; são riscos inerentes a esta área.
h. Corrupção
- Na 2ª Repartição do EME, fui chamado ao gabinete do General Vice-Chefe do EME, Santos Paiva, por quem tive muita consideração. Deu-me conhecimento da seguinte situação: tinha acabado de visitar a Escola Prática de Artilharia em Vendas Novas. Aí encontrara dois pelotões em instrução, um que se denominava normal e outro de serviços moderados, este constituído por jovens com restrições de atuação operacional, por motivos de saúde. Só que no pelotão dos moderados estava um jovem obeso, que, por coincidência, era guarda-redes da equipa de andebol do Sporting C.P., e no pelotão normal estava um mancebo muito mais obeso. Mas o espanto ainda foi maior quando soube que o pelotão dos moderados (que não teriam atividade operacional na guerra de África) vencera o campeonato de futebol!
O General Vice-Chefe teve também conhecimento de que estavam instituídas tabelas de pagamentos de quantias em dinheiro, menores para os serviços moderados, e mais caras para se ficar isento do cumprimento do Serviço Militar. Sendo assim, o General Vice-Chefe mandou passar-me uma guia de marcha para eu me dirigir à PIDE para solicitar o seu apoio para se poder averiguar e desmantelar essas redes.
Fui recebido na PIDE pelo Dr. Barbieri Cardoso, n.º 2 da Organização. Após eu ter exposto a situação, declarou-me que, embora esta matéria não estivesse incluída nas funções e preocupações diretas da PIDE, iria ver o que se poderia fazer.
- A certa altura, eu e o Coronel Ganhão Palma recebemos ordem e respetivas guias de marcha para nos deslocarmos à PIDE, sem conseguirmos saber os motivos da mesma. À chegada, um funcionário da PIDE expôs-nos a questão: tinha sido capturado um documento classificado em que no respetivo processo se apurou que tinha saído da 3ª Repartição do EME (Operações). Tratava-se de uma importação de material de guerra de Itália para o Exército Português. Conseguido esse documento, um grupo político português entrou em contacto com correligionários, em Itália, que lançaram uma campanha na comunicação social contra a venda desse material a Portugal, por estar envolvido numa guerra em África. Julgo que esse material não chegou a vir para o País. O que a PIDE pretendia saber era a nossa posição, na qualidade de peritos, se entendíamos, ou não, que os documentos devessem continuar classificados ou serem desclassificados para acompanharem o processo judicial.
Vem a propósito referir a minha posição de considerar que o Exército mantinha um distanciamento claro do Regime e da PIDE. Admite-se, obviamente, diferença de mentalidade da geração mais jovem relativamente à mais idosa, fruto de uma história de vida distinta.
Uma preocupação grave para muitos militares era a de terminar com o Regime, sem que os interesses portugueses e muitos dos seus cidadãos africanos ficassem em posição de enorme vulnerabilidade e perigo face a uma situação de conflito em meio de diversidade étnica, política e religiosa. A independência de espírito dos militares nesse período da nossa História veio permitir o desenrolar dos acontecimentos que conduziram ao 25 de Abril.
7. Outros aspetos salientes
a. Rádio Moscovo
Trabalhar em Informações, com um único objetivo, a defesa dos interesses portugueses, não dispensa de ser alvo de considerações falsas ou deturpadas.
Em 1963 fui nomeado para o CIOE em Lamego, para montar e organizar o primeiro curso, tipo Ranger, de Instrutores e Monitores de Operações Especiais, tendo sido também nomeado para uma comissão no Ultramar, nessa altura não sabendo quando nem onde.
O intenso trabalho não me permitia distrações pelo que, a certa altura, fui informado por pessoas amigas que a nomeação me tinha dado direito a referências na Rádio Moscovo, e referiam que eu seria uma pessoa perigosa…
É natural que esta referência tenha justificação no facto de eu ter sido nomeado e frequentado o Curso Ranger no Exército dos EUA, em 1962, e complexos de ideologia política, em tempo de Guerra Fria, levavam a que algumas pessoas concluíssem que quem fosse aos EUA perfilhava as suas posições políticas, à semelhança do que então se passava com a União Soviética. A independência e liberdade que sempre me orientaram trazem também as suas dificuldades!
O objetivo do Curso Ranger, uma das decisões do EME na guerra de África, era a de preparar oficiais e sargentos para um tipo de operações de contra guerrilha e contra subversão que exigem técnicas de preparação e execução de operações em condições difíceis, para defesa das populações de Angola, Moçambique e Guiné, que ficaram sujeitas a atos terroristas, enquanto se esperava que as políticas interna e externa portuguesas encontrassem soluções que protegessem todas as populações, as suas vidas e interesses.
b. “Mini Manual do Guerrilheiro Urbano"
Num determinado período de evolução de movimentos políticos contra os sistemas estabelecidos, a publicação de um livro de um dos mais célebres terroristas da 2ª metade do séc. XX, Carlos Maringella, o Mini Manual do Guerrilheiro Urbano teve impacto pela orientação e motivação expressas na formação de terroristas. A 2ª Repartição do EME recebeu o livro. Se a ameaça de terrorismo urbano era real, pareceu importante informar as entidades responsáveis pelas ações preventivas e de reação às ações terroristas no caso de se virem a verificar. Ora, as primeiras entidades interessadas não podiam deixar de ser os órgãos de Informações das Regiões Militares. O Exército dispunha de um sistema de tratamento e manipulação de documentos classificados. Se os terroristas dispunham de uma teoria e prática de atuação em terrorismo urbano, parecia fundamental que o Exército as estudasse para lhes poder dar resposta conveniente se e quando necessário. Neste sentido, mandei preparar uma série de exemplares para serem enviados.
Foi com surpresa que recebi a informação de que um General teria mandado perguntar quem teria tido esta iniciativa e proibia o envio do documento. É um dos riscos que se correm no campo das Informações. Há que salientar uma grande diferença de mentalidade. A informação vinha do inimigo!
c. Evolução do MFA
A certa altura do processo, dirigi-me ao gabinete do General Paiva Brandão, Chefe do EME, diga-se pessoa de grande educação que não podia deixar de saber que o País atravessava um período muito difícil e que o Exército apresentava sintomas de contestação interna. Com toda a lealdade, sugeri que recebesse oficiais diretamente empenhados no Movimento, muito bons profissionais, que eu conhecia bem, caso do General Hugo dos Santos. O processo, como já foi dito atrás, foi conduzido no final pelo gabinete do Ministro do Exército, pelo que desconheço os contactos respetivos. Parece-me, no entanto, que a personalidade do General Paiva Brandão o conduziu a não se opor ao processo em ação. O seu comportamento no dia 25 de Abril, será tratado mais à frente, e apoia esta posição.
Outra situação digna de realce e de que me recordo bem, foi uma conversa em passeio no parque do Instituto de Altos Estudos Militares em Pedrouços, com o Melo Antunes (grande amigo, colega do Curso de Artilharia, com quem vivi três anos no mesmo quarto), em período próximo do 25 de Abril, em que lhe perguntei: “o que andas a fazer?" respondeu-me: “Estou a tratar de elaborar o programa do MFA."
d. Briefings de informações no EME
As minhas funções na 2ª Repartição do EME exigiam que nas reuniões regulares no EME eu realizasse uma apresentação verbal das matérias mais importantes na área das Informações. Já próximo do 25 de Abril, na presença do Chefe do EME, sem qualquer preparação, no meio da exposição declarei que estavam a prender oficiais do Exército, sem o nosso conhecimento e eu considerava isso como um desprestígio para o EME. O General Chefe levantou-se e saiu da sala. O chefe da 2.ª Rep ficou preocupado. Foi chamado ao gabinete do CEME e quando regressou fui eu chamado. Entrando no gabinete o General pergunta-me: “o que é que você quer?" Junto do General CEME estava o Vice-Chefe, por quem eu tinha grande consideração. Resolveu fazer uma explicação do assunto antes de eu expor a minha posição. Era difícil fazer compreender que muitos dos assuntos das Informações mereciam discussão séria para apoio das decisões das entidades responsáveis. Neste caso o processo estava a ser dirigido pelo Ministro da Defesa, mas a questão fundamental estava no Exército. E considero que este fator favoreceu o 25 de Abril. Por motivos óbvios, as Informações devem informar lealmente e não se preocuparem com os temas que os decisores gostariam de ouvir.
e. Desaparecimento de equipamento sensível
A 2ª Repartição do EME sentiu a necessidade de adquirir um aparelho disponível nos EUA, com características de escuta mais avançadas. A 4ª Repartição do EME, entendeu que a responsabilidade das aquisições lhe pertenciam, esquecendo-se, ou não, das questões de segurança. O equipamento desapareceu! Para onde terá ido é assunto dos verdadeiramente misteriosos que, por vezes, acontecem no nosso País. A situação revolucionária facilitou os mais organizados no aproveitamento de oportunidades.
8. Conclusão
Pode concluir-se que o EME, 2.ª Repartição, não possuía rede de informadores, nem rede de escutas ou vigilância a militares sobre os quais pudessem existir dúvidas de deslealdade, isto é, que pudessem dar conhecimento de segredos militares a movimentos políticos nacionais ou estrangeiros. De qualquer modo, os militares não veriam com bons olhos qualquer organização que vigiasse os camaradas.
C. Dia 25 de Abril
No dia 25 de Abril, de manhã, dirigi-me, como normalmente, para o EME. Não sabia o que se passaria nesse dia, nem ninguém o saberia. Verifiquei, mais tarde, que a hora em que passei no Terreiro do Paço correspondeu à decisão fundamental de não ter havido violência entre dois grupos de militares, o que, em caso contrário, poderia ter alterado o desenrolar dos acontecimentos.
Durante o dia 25 de Abril fiquei no meu gabinete no EME. A certa altura recordo-me que o Major Vítor Alves falou comigo e solicitou-me atenção pela segurança do EME, antes de se ausentar. O General Chefe do EME encontrava-se no seu gabinete do EME, e de certo, com ligações telefónicas a funcionar. Após ter conhecimento do processo em curso, decidiu sair, a pé, para casa. Informaram-me que alguém do MFA, no EME, lhe colocou uma viatura à disposição. O EME, não era, portanto, local de preocupação do MFA. Aproveito para referir que passado muito tempo, falei pelo telefone com o Sr. General Paiva Brandão, e perguntei-lhe se alguém o contactara sobre a sua posição no 25 de Abril e a resposta foi clara, totalmente negativa. Os historiadores portugueses não tiveram interesse em ouvi-lo.
Na tarde do dia 25 de Abril, passei a pé no Terreiro do Paço após terminar o Serviço e verifiquei que alguns grupos de pessoas, pouco numerosas, se deslocavam, gritando slogans, agitando algumas bandeiras. Não podiam disfarçar algum receio de eventuais consequências se a revolução não tivesse êxito, nem a evidência de terem sido convocados para cumprirem uma missão. Por outro lado, os altos responsáveis políticos e militares atribuíram a direção dos acontecimentos ao EMGFA. Em termos gerais pode concluir-se que esta decisão veio facilitar o desenrolar do 25 de Abril e terminou, como afirmou um jornalista: “Caiu como um castelo de cartas."
D. Período da Cova da Moura
1. Organização
Dois ou três dias após o 25 de Abril, face ao vazio criado nas Informações, os Majores Melo Antunes e Vítor Alves convidaram-me para assumir a responsabilidade de apoio nas Informações à Junta de Salvação Nacional. A paralisação da PIDE/DGS suspendera uma série de funções que lhe estavam atribuídas. Embaixadas de vários Países pressionaram pelo facto de terem ficado sem entidade competente para dialogarem, o que é comum entre Serviços de Informações, além da natural e compreensível dificuldade em compreenderem o que se estava a passar. Nessa fase até realizei reuniões em minha casa.
No momento do 25 de Abril eu desempenhava funções de chefe da secção de Contrainformação da 2ª Rep do EME, e foi com honra que aceitei o convite formulado por amigos influentes na Revolução. Fiquei grato por terem acreditado em mim, porque, certamente, me reconheceram competência técnica e lealdade, condições essenciais.
É fácil falar a esta distância dos acontecimentos que encerraram um período da nossa História, mas é difícil descrever o clima psicológico e o ambiente que se viviam e perturbaram muitas pessoas, levando algumas a tipos de comportamentos condenáveis, mas visíveis em muitos outros períodos revolucionários.
Como se sabe, o Conselho da Revolução iniciou a sua ação no Palácio da Cova da Moura, em Lisboa. Comecei por solicitar a indicação de um Membro da Junta com responsabilidade na área das Informações. Foi designado o General Galvão de Melo, personalidade muito educada, séria, firme nas suas convicções, acordos e decisões. Fiquei com grande consideração pela sua conduta.
Para as Informações foi nomeada uma primeira equipa constituída por mim e pelo conhecido revolucionário Varela Gomes, ainda na fase de organização do seu processo de reentrada no Exército.
A revolução em curso precisava dos esforços de todos, mas, consideração oportuna: um bom Serviço de Informações não deve ser orientado ou influenciado por ideologia política, deverá ter uma total isenção e lealdade para poder informar com verdade e apoiar devidamente as decisões.
2. Briefings
A minha preocupação fundamental era a de reorganizar o Serviço de Informações. Entretanto tive a honra de passar a realizar briefings para as reuniões do Conselho da Revolução, como sempre, com lealdade e verdade. Não deixo de salientar que a “verdade", por vezes, pode ferir, mas a sua necessidade absoluta não é discutível. Atravessou-se, como seria previsível, um período difícil. Chegavam Informações sobre aparecimento de armas em alguns pontos do País; interceção de um ciclista com uma G3; outras G3 enterradas numa propriedade; alguns factos com apoio de militares em serviço político partidário; ocupações de propriedades; saneamentos selvagens. Tudo causando preocupação grande e originando medidas para correção.
3. Posições políticas
O meu ponto de vista era o de que o Movimento em curso não colocasse cidadãos contra si, mas sim conseguir unir dentro da lei e democracia a que se pretendia chegar. Dois oficiais extremistas pretendiam prender as pessoas que tinham pertencido à Legião Portuguesa, algumas figuras conhecidas na nossa sociedade. A minha chamada de atenção, nesse momento, não foi atendida, pelo que foram prendê-los. Batiam à porta da casa, os moradores vinham à porta, alguns em pijama. Levavam-lhes as armas que encontravam e depois prendiam-nos. Aqui o procedimento aproximava-se dos métodos da PIDE com que o 25 de ABRIL terminara.
Os mesmos oficiais referidos, com receio da “reação" convidaram vários oficiais para verem um filme escolhido para os colocar em atenção para o que pode acontecer em casos de resistência à revolução, numa perspetiva que me pareceu completamente errada.
4. Outros aspetos com interesse
a. O General Sá Viana Rebelo, fardado, apresentou-se na Junta. Depreendi que quem não rejeitasse a nova situação política podia não ter complicações graves. Entretanto o General Schultz, Ex. Governador da Guiné, foi preso e levado numa chaimite, com a presença da comunicação social. Soube-se que esta ação se deveu a um indivíduo do COPCON, ligado a um partido político.
b. Na sala de trabalho na Cova da Moura, verifiquei que estavam várias pistolas de categoria diversa, certamente deixadas por pessoas, provavelmente com receio de serem apanhadas sem licença.
Solicitei a um oficial jovem para as guardar. Foram fechadas numa gaveta e guardada à chave. No dia seguinte, quando chegámos ao Serviço a gaveta e conteúdo tinham desaparecido. Há sempre quem se aproveite das situações…
c. Este período foi perturbado por um conflito entre o General Galvão de Melo e o Coronel Varela Gomes, em que houve necessidade de proteger a saída do General de um restaurante ou hotel. Facto noticiado na imprensa. O coronel passou a trabalhar em outra área de intervenção política.
d. O 1º de Maio de 1974, como era de esperar, teve grande relevo. Acompanhei o General Galvão de Melo, numa viatura através de Lisboa, vendo a multidão que veio à rua para festejar a queda do velho Regime autocrático e o início da democracia. Viajou, também na viatura o então capitão Costa Martins, que tinha passado a trabalhar com o General.
E. Período da PIDE
1. Responsabilidades
O General Galvão de Melo, a certa altura do processo, decidiu nomear um grupo de trabalho para tratar dos problemas inerentes à paralisação e extinção da PIDE. Foi constituído pelo comandante Costa Correia e por mim. Devo realçar que a relação entre nós foi sempre excelente e considero que o comandante Costa Correia, além de inteligente e muito ponderado, foi sempre de enorme correção.
Um dos factos que só muito mais tarde é que viriam a ser esclarecidos, e mesmo assim mantendo-se algumas dúvidas, foi a presença do então Major Campos de Andrade na sede da PIDE no dia 26 de abril evocando que tinha instruções do Gen Spínola para dirigir a ocupação da sede, tendo porém abandonado de imediato o local a pós a consulta do seu processo individual, para só reaparecer no final do dia para conduzir a operação de transporte do pessoal da PIDE para a prisão de Caxias. Após retirada do pessoal da PIDE as forças ocupantes permitiram a entrada, com o controlo possível, dada a situação eufórica que se vivia, aos jornalistas nacionais e internacionais bem como a visitantes qualificados, muitos dos quais figuras representativas de diversas forças políticas, obviamente interessadas sobre conteúdos de informações de natureza pessoal.
As Forças do Exército ainda presentes na sede receberam instruções, entre os dias 27 e 28, para regressarem aos respetivos aquartelamentos, ficando as de Marinha, tendo-se posteriormente apresentado algum pessoal da Força Aérea.
Em meados de Julho foi decidido transferir para o Forte de Caxias todo o conjunto de informação secreta (arquivos CI e SR), não sem antes de se verificar que tinham desaparecido processos de personalidades relevantes - quer antes, quer depois do 26 de Abril - e de se saber que os ficheiros de "informadores" tinham sido incinerados na noite de 25 para 26 de Abril.
A restante informação arquivada fora da sede foi objeto de decisões díspares (nomeadamente no Porto e em Moçambique).
As gravações de escutas telefónicas tinham sido destruídas no princípio de Maio.
Foi autorizada, ao mais alto nível, a permanência no Forte de Caxias de representantes da grande maioria das forças políticas que então se constituíam.
O quadro inicial observado na Pide não foi nada animador, compreensível face á confusão revolucionária, mas enquadra-se nos casos de aproveitamento pessoal de oportunidades, inaceitável.
Só tratámos da Sede da Pide em lisboa, mas os interrogatórios dos processos que interessavam aos grupos políticos estavam em Caxias. Pode dizer-se que Caxias tinha sido ocupada por homens e mulheres da extrema-esquerda.
Na Sede, os responsáveis pela ocupação não tinham conseguido evitar que se tivessem realizado numerosos furtos, caso do laboratório fotográfico que possuiria equipamentos valiosos que desapareceram, assim como algumas viaturas e os rádios das que restaram no parque. Começou-se a pôr ordem nas instalações. O departamento de estrangeiros da PIDE, a funcionar noutro local de lisboa, continuou a funcionar até bastante tempo sem perturbações. Recordo que o Comandante Costa Correia mandou colocar fechaduras nas portas e estas, durante a noite, foram rebentadas - e obvia e imediatamente substituídas.
2. Operações Pendentes
Uma primeira preocupação era a de saber se haveria alguma operação em curso. Após o 25 de Abril, um dos principais dirigentes da PIDE, Dr. Pereira de Carvalho, continuou a dirigir-se diariamente ao seu Ex local de trabalho. A sua posição foi clara: “eu, como funcionário do Estado, cumpridor e responsável, nada tenho em consciência de que me envergonhe, pelo que não fujo, nem me escondo". Considerou que não tinha responsabilidade pelo que se passava em Caxias. A sua presença, por outro lado, auxiliava a esclarecer o funcionamento da organização que se pretendia conhecer. Mas o ambiente geral contra a PIDE tinha levado a que Ex funcionários tivessem sido atacados na rua por quem os identificou. Combinámos e o ex-funcionário ficou a viver na PIDE, até nova ordem.
Segundo a sua afirmação estava em preparação uma operação secreta em África. Foi dito a Pereira de Carvalho para escrever os contornos dessa operação, o que fez. O documento foi classificado e foi entregue por mim pessoalmente ao Sr. Marechal Costa Gomes, no seu gabinete, no fim de um dia de trabalho intenso, como eram todos os desse período conturbado. Recordo que o Marechal recebeu o documento, leu-o rapidamente e exclamou “Lá se perdeu mais dinheiro" e meteu o documento no bolso.
Um outro dirigente importante da PIDE, Abílio Pires, estava preso em Caxias, para onde me dirigi. Confesso que me impressionou o bom aspeto e descontração de algumas revolucionárias da extrema-esquerda. Abílio Pires encontrava-se extremamente nervoso, o que era natural. Solicitou-me tabaco. Como não fumo, solicitei apoio de uma segurança e foi-lhe fornecido.
Eu conhecia Abílio Pires de reuniões no Comando Geral de Segurança Interna. Declarou que não tinha conhecimento de qualquer operação em curso.
3. Fronteiras
Uma grande maioria de pessoas não fazia ideia das funções que a PIDE desempenhava. Aproveitei a minha liberdade de atuação para que a hierarquia aceitasse as propostas: a PIDE ocupava todos os postos fronteiriços, controlando entradas e saídas. Para isso dispunha de uma rede de comunicações. Dado o vazio criado e a urgência de solução, solicitei ao General Hugo dos Santos, pessoa da minha confiança, que me enviasse um oficial da então Guarda Fiscal que estava implantada, também, nos postos de fronteira. Apresentou-se um tenente-coronel de transmissões que recebeu a missão genérica, mas clara: nova missão para a Guarda Fiscal “tomar conta imediatamente do sistema de controlo dos postos de fronteira que pertenciam à PIDE". O que a Guarda fiscal cumpriu. Era a melhor Instituição para esta tarefa.
4. A Interpol
A PIDE dispunha da responsabilidade das ligações com a Interpol. Na nova situação do País pareceu que a Interpol deveria pertencer a quem tinha responsabilidades claras na Investigação Criminal, e assim aconteceu, a Interpol ficou na Polícia Judiciária. No meio da agitação do ambiente nomearam-me para ir coordenar um plenário de trabalhadores da Polícia Judiciária. Desloquei-me à PJ, com um camarada da Marinha e presidi ao referido plenário. O ambiente psicológico que se vivia, como eu esperava, orientou as intervenções dos trabalhadores para críticas, as mais diversas, sobre o funcionamento da PJ. Destaco uma delas: um dos trabalhadores explicou, de forma muito clara, que em muitos processos chamavam os queixosos, mas o respetivo processo era arquivado sem investigação. Algumas notícias que tinham saído sobre a PJ deixaram dúvidas sérias de pressões políticas sobre investigações. A importância da PJ para a democracia é indiscutível, e por isso trata-se de um assunto grave.
5. O controlo de estrangeiros
A PIDE dispunha de um departamento de controlo de estrangeiros, com funcionários profissionais que geriam o sistema. Só que este apresentava a vantagem de possuir receitas das taxas respetivas. Isso tornavam-no interessante. Naquele momento quem tinha uma dispersão geográfica maior era a PSP, e por isso ficou com essa responsabilidade. Recordo que pedi à PSP para ocupar um edifício na Av. António Augusto de Aguiar, o que fez seguidamente. Efetivamente, a PSP estava presente na maioria das cidades, onde se situam os hotéis, incluindo o Algarve.
6. A Documentação NATO
Num desses dias agitados no processo democrático, quando cheguei ao edifício da ex-PIDE, encontrei um oficial conhecido carregando numa viatura documentação. Tratava-se de documentação Nato. A PIDE recebia documentação Nato. O depósito fundamental situava-se no Ministério dos Negócios Estrangeiros. A documentação referida foi levada para o Estado Maior General das Forças Armadas para ser devidamente arquivada.
7. Os Arquivos da PIDE
Os Arquivos da PIDE foram ocupados no dia 26 de Abril, cerca das 08h00, por pessoal de Cavalaria 3, a que se agregaram, cerca das 08h45, Forças de Fuzileiros (Marinha), e pouco depois, algumas Forças do Exército.
Admite-se que o pessoal da PIDE possa ter feito desaparecer matéria importante nomeadamente ficheiros de informações.
Constava que uma das áreas de maior interesse para os partidos políticos eram as declarações que os antigos presos teriam comunicado à PIDE, nomeadamente denuncias inconvenientes.
Falando na altura com um funcionário da PIDE, técnico das escutas telefónicas, ele não conseguiu disfarçar o seu enorme nervosismo, certamente por receio de represálias. Passada uma semana estava completamente restabelecido. O que se teria passado?
Mais tarde, e já em junho de 1975, soube-se que uma grande viatura carregou carga do arquivo da PIDE existente na sede tendo-a descarregado num avião da Aeroflot para a União Soviética.
Porém os arquivos retirados não tinham qualquer interesse pois respeitavam a processos de acusação judicial a agentes da PIDE visando o seu julgamento em Tribunal Militar - lei 8/75.
8. A Revolução em curso
A História descreve muitas situações pós-revolucionárias, mais ou menos violentas, com períodos mais ou menos longos de vinganças e violações dos direitos humanos. As lutas pelo poder que se seguem são conhecidas. O mesmo veio a acontecer a Portugal com um grau que se poderá considerar baixo quanto a violência física. A violência psicológica e económica, tiveram outra dimensão, com saneamentos em número elevado, com prisões sem culpa formada, além de ocupações selvagens. A PIDE, como se sabe, concentrou os ódios da oposição ao regime de Salazar porque perseguiu muitos opositores ao Regime, uns estiveram presos ou foram destituídos da função pública. Mas a maior responsabilidade pelo funcionamento da PIDE pertence aos responsáveis políticos.
É sempre difícil prever a evolução de qualquer processo revolucionário. Por exemplo, o adido Militar Britânico, figura característica, que terminava a sua comissão em Portugal, ao despedir-se não deixou de dizer que a nossa revolução ia ficar parecida com a solução, na altura, da Albânia. Não acertou! Os briefings para a Junta de Salvação Nacional que tive oportunidade de apresentar foram sempre feitos com a verdade resultante do trabalho efetuado.
Num desses briefings o General Belchior Vieira, num comentário brilhante, solicitou a atenção da Junta para o processo em curso de saneamentos, o que foi desvalorizado pelo Marechal Costa Gomes.
F. Período do Palácio de Belém
1. Transferência
Verificou-se a transferência da Junta de Salvação Nacional para o Palácio de Belém. Enquanto uns se dedicavam às questões de poder, e adquiriam visibilidade em assembleias polémicas, outros dedicavam-se à reorganização e estabilidade dos serviços. As Informações necessitam de muito trabalho e muita discrição. Assuntos que não devem ser tratados publicamente.
2. Fator Psicológico.
Sabe-se que o fator psicológico numa Revolução assume uma enorme importância. Certo dia, já no Palácio de Belém, recebi uma senhora, em grande sofrimento, que colocou a sua questão de forma muito clara: “O meu marido deixou-me, a Junta tem que fazer alguma coisa". Encaminhei a senhora, o mais delicadamente possível, para o Major Vítor Alves que estava numa posição relevante na condução do processo, diga-se, inteligente e amigo. A Revolução para muitas pessoas acarreta a esperança na resolução de problemas, a esperança de uma vida melhor. Neste caso a senhora estava em grande sofrimento.
3. Missão de Segurança
Neste período fui nomeado para coordenar a realização de um curso de “body guards", ministrado por uma equipa inglesa especializada. Foram convidados os vários Ramos das Forças Armadas e as Forças de segurança. Foram criadas condições para a instrução nas diferentes áreas, num hotel, num porto, num aeroporto, etc. Considero que o curso teve bastante interesse para as Forças Armadas e de Segurança.
G. Período do Palácio da Ajuda
1. Instalação
A certo momento chega ao meu conhecimento que no Palácio da Ajuda existia um andar, no piso superior, com cerca de vinte salas alcatifadas, organizado no tempo do Prof. Marcelo Caetano. Fui falar com o Prof. Aires de Carvalho, Diretor do Palácio da Ajuda, pessoa com nível cultural elevado, e estava muito preocupado pela responsabilidade dos valores existentes no Palácio, incluindo o “tesouro nacional de joias da Coroa", com elevado valor Histórico e monetário. Quando lhe disse que pretendíamos ocupar o último piso, ficou satisfeito quanto à segurança que podíamos conferir ao Palácio.
Ocupei as instalações e comecei a organização com uma reunião com oficiais dos três Ramos. Entretanto era necessário um oficial General. Foi designado o General Pedro Cardoso, com experiência de Informações e com grande nível cultural, inteligência e de Comando, nas suas várias facetas.
2. Organização interna
O General Pedro Cardoso foi organizando a 2.ª divisão do EMGFA. Desse tempo, apenas duas considerações, sob o meu ponto de vista:
- Uma dificuldade de ligação entre os departamentos internos de Informação e Contrainformação, por um lado, e por outro, a independência de um grupo interno que decidiu atuar no exterior, tipo operações especiais, sem conhecimento do General Pedro Cardoso, pelo que, com cuidado e inteligência, colocou superiormente a necessidade de modificar essa situação de atuação fora da hierarquia, alterando o local de trabalho desse grupo, o que foi conseguido. Convém esclarecer que, nesta altura, também tive à minha disposição mandados de prisão distribuídos pelo COPCON, que não foi necessário utilizar.Hou
- Houve, ainda, um incidente no edifício do Palácio. Alguém deu origem a um incêndio numa área pertencente ao Museu. Ficámos sem saber se este acontecimento se dirigia à nossa repartição ou se serviria para justificação de quadros desaparecidos no Museu. Não tive conhecimento de qualquer investigação.
3. Missões de Segurança
a. Inspeção eletrónica ao Palácio de Belém
O chefe de gabinete do presidente Spínola solicitou-me que tratasse de uma Inspeção eletrónica às instalações do Palácio de Belém. A opção veio a recair numa equipa especializada alemã.
b. Inspeção de Segurança ao Banco de Portugal
Foi feita uma visita geral no Porto e também em Lisboa. Os aspetos de segurança com as alterações em vigor no País aumentaram, mas muitos dirigentes no País não sentem a responsabilidade do cuidado que a segurança exige. Não foi o caso do Banco de Portugal.
c. Assembleia da República
O relatório do trabalho foi entregue ao gabinete do Presidente Vasco Gonçalves.
d. Eleições em Portugal
O grupo de écrans com os resultados estava colocado no corredor da entrada da Fundação Calouste Gulbenkian. Relembro a entrada de ilustres figuras responsáveis pararem face aos resultados e o principal responsável, um Almirante conhecido, afirmar de modo muito claro: “Eu bem disse que vocês não deviam ter feito eleições."
e. Comício na Alameda Afonso Henriques (junho 1976)
Fui nomeado responsável pela segurança deste célebre Comício em lisboa. Coordenei os três principais partidos. Distribuí uma ordem de operações e respeitei os resultados eleitorais: O PS ficou responsável pela zona do palco, a área da Alameda ficou a cargo do PPD, os telhados foram entregues ao CDS. Todos cumpriram bem as suas missões.
f. Cimeira de partidos políticos angolanos.
A cimeira teve lugar no Algarve. Dado o volume de trabalho encarreguei o futuro Coronel Veiga da Fonseca, amigo, do meu curso na Escola do Exército, e excelente profissional.
g. Reuniões com pessoal das embaixadas portuguesas colocadas no leste da Europa.
Foram referidas as experiências da Doutrina Nato relativamente à atuação dos Serviços de Informações de Países não democráticos.
h. Viagem à RFA
Em 12 de Março de 1975, com o Eng. Militar Maia de Freitas, um dia depois de data histórica, dirigimo-nos ao Aeroporto de lisboa para seguirmos para uma missão na Alemanha, na área das transmissões. Sem sabermos, tinha havido uma ordem do COPCON para não deixarem partir militares. Resultado, o avião ficou parado na pista. Telefonei para o COPCON e apareceu-me o então major Gomes Marques, do meu curso de Artilharia, a quem consegui explicar que não íamos fugir! E lá partimos. Já na Alemanha, quando estávamos num bar uma funcionária pergunta-nos de que país éramos. Ao ouvir Portugal faz uma cara muito preocupada, fruto de um programa de televisão sobre a situação “grave" do que se estava a passar no País.
i. Viagem à Rússia
Tive o prazer de acompanhar o General Pedro Cardoso a uma viagem oficial à Rússia, que correu bem.
Algumas histórias aparentemente sem importância, nem sempre se esquecem. Estávamos no hotel em Moscovo e, mesmo à nossa frente, uma jovem ia a passar quando um polícia, não fardado, corre e prende-a, levando-a para uma esquadra situada dentro do hotel. Constou que se tratava de uma “profissional" que traria dólares de algum quarto do hotel.
k. Ao serviço do Ministério dos Negócios Estrangeiros
Destaca-se uma missão a Moscovo para analisar a segurança da nossa, na altura, futura Embaixada. Ainda se encontrava em obras e a ser “preparada". Foi entregue no Ministério um relatório classificado.
Fui convidado para a cerimónia, no Estádio de Moscovo, de celebração dos trinta anos do final da 2ª Guerra Mundial, muito bem organizada. Convém não esquecer que a Rússia perdeu milhões de pessoas nessa guerra.
Observação especial
Não queria terminar sem salientar a ação fundamental do Presidente Ramalho Eanes no avanço inteligente e correto para a democracia portuguesa, embora não tratada neste testemunho.
NOTAS
[1] Em 1987, o IAEM enviou para a Revista Militar, um trabalho meu: “Organização e princípios de funcionamento do Serviço de Informações Militares do Exército em tempo de Paz e em Campanha". (Julho e Agosto de 1987).
Rodolfo Bacelar Begonha
Major-General do Exército Português na situação de reforma. Frequentou o Curso de Informações para oficiais superiores estrangeiros na Escola de Informações do exército dos EUA (1973) e foi o primeiro português a fazer o curso de Rangers (EUA, 1962). Cumpriu comissões de serviço em Angola e em Macau. Foi Chefe de contra-Informação da 2.ª REP/EME (1971-74) e Coordenador de Informações da Junta de Salvação Nacional (1974).
Posteriormente foi Diretor Geral dos Desportos, Secretário de Estado da Juventude e Desportos e Representante do grupo português em reuniões de Informações NATO, Comandante Militar dos Açores e Diretor da Polícia Judiciária Militar. Entre 2008-2014 foi Prof. Catedrático convidado da Universidade Lusíada (Segurança e Informações Estratégicas).
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Como citar este texto:
BEGONHA, Rodolfo Bacelar – Informações e o 25 de Abril. Revista Portuguesa de História Militar - Dossier: 25 de Abril de 1974. Operações Militares. [Em linha] Ano IV, nº 6 (2024); https://doi.org/10.56092/JCTY8707 [Consultado em ...].